16.2.25

penélope na escarpa

já não conto os dias
nem desfaço o que foi feito

os barcos vão e vêm
mas nenhum traz um nome
que me pese nos lábios

não sou espera
nem promessa
nem teia suspensa no tempo

sou quem decide a fenda na porta
a cor do lençol
o nome que sopro na pele
de quem escolho que fique

15.2.25

Da sublime arte de não fazer nada

Diz-se que a preguiça é o vício dos fracos, mas essa é uma opinião própria de quem nunca experimentou, com rigor filosófico, a excelsa arte de nada fazer. Pois não será, afinal, a contemplação do ócio uma das mais altas manifestações da inteligência? Não é o labor desmedido, pelo contrário, a prova irrefutável de uma falta de engenho? Que ninguém me venha dizer que um burocrata que passa os dias a carimbar papéis é superior a um poeta que passa as tardes deitado à sombra, ruminando versos que nunca chegarão ao papel! O primeiro desgasta-se no ruído inútil da existência, o segundo toca, ainda que levemente, o divino.

Convém, todavia, esclarecer que esta nobre arte não se confunde com a vulgar inércia dos boçais. Nada fazer exige perícia. Há que treinar o olhar para que, pousado sobre o infinito, sugira um pensamento profundo, quando na verdade se está a contar quantos pombos passam por minuto. O corpo deve permanecer imóvel, mas num equilíbrio perfeito entre languidez e altivez, como um aristocrata entediado numa soirée sem interesse. Sobretudo, há que evitar qualquer gesto que revele intenção de trabalhar, pois nada destrói mais rapidamente a ilusão de superioridade do que o ímpeto repentino de utilidade.

Dirão alguns que este estado de perfeita inoperância conduz ao marasmo e à decadência. Puro engano! O verdadeiro mestre da inactividade sabe que é no repouso absoluto que se forjam as grandes ideias — ou pelo menos se adquire o talento necessário para convencer os outros disso. Que ninguém se iluda: o mundo sempre foi governado por aqueles que souberam não se cansar. Napoleão batalhava, mas os estrategas descansavam; os servos trabalhavam, mas os reis meditavam. Por isso, honremos a tradição dos sábios e permaneçamos fiéis a este princípio eterno: quem não faz nada, dificilmente o faz mal.

14.2.25

Crónica do chá verde: Uma declaração de amor velada no dia de São Valentim

Em pleno século XXI, enquanto o mundo se desdobra em corações de pelúcia e chocolates efémeros, ergo-me como devoto de um ritual mais subtil: o meu chá verde. Não é mera infusão, mas uma cerimónia que obedece à liturgia do terroir — folhas colhidas nas encostas de Uji, Japão, onde a névoa matinal beija os brotos como um amante discreto. A água, aquecida a 80°C (nunca mais, nunca menos), é derramada com a precisão de um relojoeiro suíço, porque o amor, tal como a Camellia sinensis, exige temperança. Afinal, São Valentim, o mártir que desafiava imperadores para unir casais, certamente apreciaria esta rebeldia silenciosa contra a vulgaridade das chávenas de micro-ondas.

O tempo de infusão — três minutos exactos — é uma metáfora do cortejo romântico: acelerar é queimar as nuances, hesitar é desperdiçar o potencial. Enquanto as folhas se desdobram na água, lembro-me das raparigas que bordavam lenços com versos secretos para os namorados, transformando linho em poesia. O meu chá, como aqueles panos amorosos, guarda mensagens cifradas: o primeiro gole, marinho como a saudade; o segundo, suave como um compromisso; o terceiro, doce como a cumplicidade. E se os antigos romanos ofereciam grãos a Cupido, eu ofereço à xícara uma pétala de rosa — porque até Vénus, na sua espuma, reconheceria aqui um elixir de sedução.

No fim, o ritual transcende o líquido âmbar. É uma ode ao detalhe, à paciência, ao cultivo do invisível — tal como São Valentim, que plantava sementes de amor em casamentos clandestinos, ignorando a espada do imperador. Enquanto o mundo celebra o amor em versão fast-food, eu brindo ao meu chá: parceiro constante que jamais se ausenta, não procura a Lua em dia de nuvens e, nas manhãs frias, aquece as mãos como um abraço prolongado. Porque, no fundo, amar é também saber esperar — pela temperatura certa, pela folha certa, pelo momento certo. E se isso não é romance, que me devolvam as pétalas da infusão.

19.1.25

O conforto das contradições

É curioso como a expressão “zona de conforto” se tornou a máxima moral da nossa era, uma espécie de mantra motivacional reciclado em palestras, livros de autoajuda e, claro, nas redes sociais, onde aparece invariavelmente acompanhado de fotografias de montanhas ou praias desertas. Quem a proclama fá-lo com uma confiança desconcertante, como se jamais tivesse conhecido a lassidão de um sofá num domingo chuvoso ou a sedução de uma rotina bem calibrada. O paradoxo reside no facto de que os seus maiores defensores costumam anunciá-la de poltronas lustrosas ou escritórios climatizados, enquanto incentivam os outros a trocarem caminhos balizados por terrenos inóspitos.

A ironia é particularmente comovente quando observamos que, na maioria dos casos, essas vozes são emanadas de uma posição invejavelmente estável — emocional, financeira ou geográfica. Dizer a um público menos afortunado para abandonar a sua “zona de conforto” soa menos a conselho altruísta e mais a uma tentativa de exportar um incómodo inexistente. Afinal, não é difícil pregar o desconforto como virtude quando se tem um colchão de penas metafórico (ou literal) à espera. Aqui, o conceito não é apenas uma contradição: é um privilégio mal disfarçado sob o manto de uma suposta coragem.

Sejamos francos: o conforto não é o inimigo, mas sim o bode expiatório. Na ânsia de tornarem a inquietação produtiva, os promotores de caminhos pedregosos para os restantes, esquecem que algumas das melhores ideias — e das mais perigosas, para quem vende certezas — surgem precisamente no aconchego do ócio. Talvez devêssemos desafiar quem usa a dita “zona de conforto” de outrem como estandarte de moralidade a experimentar o desconforto genuíno de se calarem, uma vez que sair desse hábito discursivo seria, sem dúvida, uma verdadeira aventura.

14.1.25

Pequeno tratado sobre o retrocesso civilizacional

Há uns dias, dei por mim a questionar as virtudes da vida moderna, talvez porque o meu telefone esperto me alertou para uma reunião que esqueci, enquanto tentava carregar a bateria a cinco por cento com um cabo que só funciona em posição de yoga. Foi nesse momento de epifania – ou cansaço extremo – que decidi fazer o impensável: regredir. Comecei com uma agenda em papel, que me pareceu o equivalente existencial de plantar uma árvore. É bonita, cheira a tinta fresca e, ao contrário do calendário digital, não se apaga sozinha.

Claro que uma agenda em papel não podia andar sozinha. Repesquei as minhas canetas de tinta permanente, incluindo uma que, na faculdade, me fazia sentir o herdeiro espiritual dos profícuos escritores dos tempos pré-teclas. Enchi-as com uma cerimónia quase litúrgica, só para descobrir que a tinta tem uma vontade própria e acha que “manchar” é um verbo subvalorizado. Deixei marcas de azul pela mesa e, por um instante, considerei que retomar os hábitos digitais talvez não fosse a pior das opções. Mas haja longanimidade, diria Camilo! Ainda assim, houve algo poético naquele momento de fracasso: a escrita, afinal, é também sobre deixar marcas – mesmo que sejam das que nenhum detergente soluciona.

A verdadeira revolução estava, contudo, guardada para o final: recuperar o meu Nokia, um objeto que, no seu tempo, sobreviveu a quedas, cafés derramados e até à inveja dos amigos. Lembrei-me de que tinha um toque polifónico do Crazy Frog e senti um misto de nostalgia e vergonha. Liguei-o à corrente, esperei umas horas e, quando a luz verde acendeu, senti-me invencível. Não me importei com a ausência de internetes, notificações ou emojis. Ali estava eu, com um dispositivo cuja única utilidade era… telefonar. No fundo, é uma espécie de minimalismo tecnológico. Ou masoquismo ligeiro. Seja como for, aqui estou, à espera que me liguem – ou que a civilização volte a precisar de telefones indestrutíveis.

11.1.25

Sábado à mesa dos heróis do suor

Há algo de heróico, quase mítico, num café junto a um health club ao sábado de manhã. Não falo da minha modesta tosta mista — que, diga-se, chegou à mesa com uma determinação que nem todos os atletas na sala pareciam ter — mas sim do espetáculo humano: um desfile de fatos de treino que prometem glórias inalcançadas e cabelos ainda gotejando, como se tivessem emergido, triunfantes, de uma batalha aquática. A humidade capilar, aliás, parece ser o novo perfume do sucesso, exalando um certo «eu estive na piscina enquanto tu estavas na cama». E eu, munido apenas de um galão e da ironia, senti-me um infiltrado nesse universo de endorfinas alheias.

Enquanto mordiscava a tosta, observei uma jovem a espreitar o menu como quem consulta uma bula médica — quase como se as calorias listadas fossem enredos de um destino trágico. Na mesa ao lado, um homem de meia-idade, com um fato de treino que dizia «Team Nike» nas costas (embora o espírito de equipa estivesse claramente ausente), dissecava o seu iogurte natural como um cirurgião hesitante. Tudo nesta cena tinha um rigor involuntariamente cómico, como se o café fosse uma extensão do health club: aqui, não se burilam músculos, mas sim resoluções de vida. E eu, pecador confesso, a saborear o meu pequeno-almoço sem qualquer remorso.

No final, paguei a conta sob os olhares vigilantes de um grupo de veteranas de zumba, todas com toalhas sobre os ombros como gladiadoras modernas. Saí para a rua com a sensação de que o meu galão havia sido uma pequena rebelião contra a austeridade nutricional da sala. Mas o mais curioso é que, enquanto atravessava a porta, ouvi uma frase de um instrutor — que ecoará pela eternidade: «É tudo uma questão de equilíbrio». Naquele momento, soube que tinha vencido: não a batalha do corpo, mas a da alma. Afinal, há mais sabedoria numa tosta do que em muitas repetições de supino.