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10 de julho de 2017

A MORTE NÃO MANDA RECADO (THE BALLAD OF CABLE HOGUE) – SAM PECKINPAH CÔMICO E ROMÂNTICO


Sam Peckinpah
Quando tiveram início as filmagens de “A Morte Não Manda Recado”, em janeiro de 1969, Sam Peckinpah não havia ainda tido o reconhecimento da crítica por seu último filme, “Meu Ódio Será Sua Herança” (The Wild Bunch). Esta obra-prima filmada em 1968 somente estreou em junho de 1969. Mesmo assim a Warner Bros. deu mostras de uma inesgotável paciência com o diretor que já havia estourado em muito o orçamento de seu filme anterior. Com cronograma de filmagens previsto para 36 dias e orçamento de 880 mil dólares, “A Morte Não Manda Recado” só foi finalizado em abril ao custo de três milhões e setecentos mil dólares, ou seja, quase três milhões a mais do que o inicialmente previsto. Além das intempéries criadas por Peckinpah, foram muitas as tempestades de areia que ocorreram nas locações no deserto mexicano e muitos os dias em que as filmagens foram suspensas o que elevou as despesas e também a conta na cantina em Sonora, onde Peckinpah e sua turma se encharcavam de vodka e tequila. Sam estava mais enlouquecido, desumano e autoritário que nunca, tendo despedido mais de 30 pessoas da produção aos quais humilhava antes de demitir. Até mesmo sua filha Sharon, incumbida de fazer um documentário sobre as filmagens, espécie de making-of, não suportou as atitudes do pai que sadicamente sacrificou cobras, coelhos e lagartos. O lagarto mostrado no início do filme foi morto com um tiro, o que definitivamente revoltou Sharon. Problemas na produção, estouro de orçamento e comportamento opressivo de Peckinpah ocorreram também em seu filme anterior que resultou num marco cinematográfico. O mesmo, no entanto, não aconteceu com “A Morte Não Manda Recado”.


Jason Robards; Stella Stevens;
L.Q. Jones e Strother Martin
O mais precioso bem do deserto - Peckinpah obtivera em 1967 os direitos de filmar a história “The Ballad of Cable Hogue”, de autoria de John Crawford e Edmund Penney. Pretendendo dar um tom de comicidade ao roteiro Sam inseriu muitas situações que, entendeu ele, tornariam o filme mais engraçado ao contar como o nômade Cable Hogue (Jason Robards) é abandonado no deserto por seu ex-parceiros Bowen (Strother Martin) e Taggart (L.Q. Jones). Sem cavalo, arma, comida e principalmente sem água, Hogue se vê diante da morte certa mas milagrosamente descobre um poço justamente no trajeto por onde passam diligências. Hogue registra a área em seu nome e torna o local uma parada obrigatória onde passa a vender o tão precioso líquido. Indo à cidade Hogue conhece Hildy (Stella Stevens), uma prostituta que perseguida pela população acaba se juntando ao próspero empreendedor. O pregador Joshua (David Warner) vive por um tempo também no posto de Hogue, mas tanto ele quanto Hildy não permanecem ali. Ela há tempos tencionava viver em São Francisco e Joshua devia seguir em busca de almas necessitadas de seu amparo espiritual, de preferência mulheres bonitas. Tempos depois uma diligência faz uma parada e entre os passageiros estão Bowen e Taggart. Este último acaba morto por Hogue que consuma parcialmente sua vingança, nomeando Bowen como novo administrador da parada, isto porque Cable Hogue decide abandonar o negócio. Essa decisão se deu em razão de Hogue perceber que novos veículos passam a trafegar pela estrada concorrendo com as diligências. São os automóveis e um deles atropela mortalmente Hogue que sucumbe ironicamente aos novos tempos.

Jason Robards
Mudança de estilo - O que levou Sam Peckinpah a se interessar pela história do miserável que se torna empreendedor foi a narrativa original tocar em seu tema preferido que é o fim dos tempos do tão decantado pelo cinema e literatura Velho Oeste. O crepúsculo da existência daqueles homens endurecidos pela forma de vida que levavam permeou “Parceiros da Morte” (The Deadly Companions), “Pistoleiros do Entardecer” (Ride the High Country) e “Meu Ódio Será Sua Herança” (The Wild Bunch). A triste história de Cable Hogue seria mais uma possibilidade de Peckinpah discorrer alegoricamente sobre o assunto que tanto o atraia. Mas o diretor queria mostrar que era também capaz de fazer um filme engraçado, uma quase comédia com aspectos românticos sem deixar de lado o conflito de tempos em transformação. E a violência que era a marca de seus filmes foi amenizada, ainda que não totalmente eliminada, e sendo mostrada de forma mais pilhérica que dramática. Afinal Peckinpah vinha sendo chamado de ‘o John Ford dos tempos do Vietnã’, rótulo que lhe caiu admiravelmente após o violento e ao mesmo tempo poético “Meu Ódio Será Sua Herança”. Ford emocionava as plateias com os momentos românticos e engraçados de seus westerns e Peckinpah devia isso a seu público.

David Warner; Strother Martin
e L.Q. Jones
Pregador e bandidos divertidos - Os pregadores dos filmes de Peckinpah (quase sempre encarnados por R.G. Armstrong) eram irados fanáticos religiosos e em “A Morte Não Manda Recado” o pregador interpretado por David Warner é também fanático, mas não pelo que pregam os textos bíblicos e sim por mulheres. Podem ser até casadas, mas a condição essencial é serem bonitas e carentes de conforto espiritual que o libidinoso pastor de almas, com facilidade transforma em conforto licencioso através de versículos que ele mesmo cria. Não menos engraçada que o pregador é a dupla de escroques que atraiçoa Cable Hogue e mais tarde lhe cai em mãos para consumar a vingança, interpretados pelo pândego Strother Martin e pelo sempre psicótico L.Q. Jones. Nem o mais imaginativo roteirista do mais grotesco western spaghetti seria capaz de forjar a armadilha que Hogue prepara para ambos, no próprio buraco que escavaram em busca de dinheiro e no qual Hogue atira sua coleção de cobras. Completa a comicidade deste western a simbólica tragédia final com Hogue desesperadamente tentando conter o pesado automóvel que teve os freios soltos e que o atropela e mata.

Stella Stevens e Jason Robards
Interlúdio romântico - Se Peckinpah foi bem sucedido com os momentos engraçados da história de Cable Hogue, o mesmo não ocorreu com o romance entre o rato do deserto e a prostituta de coração de ouro. Jason Robards e Stella Stevens desempenham brilhan-temente seus personagens mas a história de amor entre ambos não funciona a contento. Assim como ocorreu em “Butch Cassidy e Sundance Kid”, filmado um ano antes e que será sempre lembrado pelo interlúdio romântico ao som de “Raindrops Keep Fallin’ on My Head”, o idílio entre Hogue e Hildy é emoldurado por uma canção. “Butterfly Mornin’s” é cantada por Hildy e Hogue e nem de longe é palatável como o sucesso musical de Burt Bacharach e Hal David. Não faltou atrevimento a Peckinpah que mostra Stella Stevens inteiramente nua numa longa e deliciosa sequência de banho, para alegria dos espectadores, sequência que pouco acrescenta à aventura amorosa do casal. Muito melhor que o encantamento de Hogue e Hildy é o ciúme que toma conta dele quando o pregador volta seu olhar impúdico para a prostituta.

Stella Stevens e Jason Robards; Stella Stevens

Stella Stevens

David Warner e Jason Robards
Western arrastado e com pouca ação - “A Morte Não Manda Recado” tem duração de 121 minutos que parecem se alongar em alguns momentos tornando o filme um tanto arrastado. Mestre da ação, Peckinpah não cria nenhum momento mais trabalhado de confronto, mesmo porque o roteiro não foi pensado para esse tipo de filme. Em se tratando, porém, desse diretor este seu filme frustra as expectativas e nem toda comicidade e enlevo dos momentos entre Hildy-Hogue são suficientes para manter o ritmo ideal. Não faltam as belas paisagens que a câmara de Lucien Ballard captura primorosamente mas ressente-se da música de Jerry Fielding, compositor preferido de Peckinpah. As três canções ouvidas no filme são de autoria de Richard Gillis, duas delas musicadas por Jerry Goldsmith, que compôs a trilha incidental. Nenhuma das canções é inspirada o suficiente para tornar marcante “A Morte Não Manda Recado”.

Stella Stevens
Inesquecível Stella Stevens - Acusado muitas vezes de imitar Humphrey Bogart, a quem lembrava bastante fisionomicamente, tendo inclusive se casado com Lauren Bacall, a viúva de Bogey, Jason Robards é um magnífico ator que brilha como Cable Hogue. Faz esquecer o empostado ‘Cheyenne’ de “Era Uma Vez no Oeste” (C’Era Uma Volta Il West). Stella Stevens como Hildy tem o melhor desempenho de sua carreira não muito pródiga em boas oportunidades como esta que Peckinpah lhe deu. Delicadamente sensual e inocentemente divertida, Stella está inesquecível como a meretriz que conquista Hogue. David Warner passa, por vezes, do ponto exagerando como o pregador vigarista. Mas seu personagem é ótimo e seu discurso fúnebre memorável. O grupo de atores que formava uma espécie de Peckinpah Stock Company tem destaque maior para Strother Martin com seu olhar de covarde sempre pronto para dar um bote traiçoeiro. L.Q. Jones, Slim Pickens, R.G. Armstrong e Gene Evans completam esse time especial de coadjuvantes. Último filme de Peter Whitney que viria a falecer em 1972, aos 55 anos de idade.

Jason Robards
Lançamento de segunda categoria - Não poucos críticos consideram “A Morte Não Manda Recado” o melhor filme de Sam Peckinpah, o que é um exagero. E assim também não pensaram os executivos da Warner Bros. que relegaram este western a uma distribuição em cinemas de segunda categoria e com insignificante publicidade. Diante de seus melhores filmes, ambos faroestes – “Pistoleiros do Entardecer” e “Meu Ódio Será Sua Herança” – este “A Morte Não Manda Recado” é um filme menor e Peckinpah não tencionava repetir a grandeza de seu western anterior mesmo porque sabia que o material que tinha em mãos não tinha a mesma magnitude. Com a balada de Cable Hogue Sam Peckinpah fez aquilo que mais gostava de fazer, falar do fim do Oeste mítico. Pena que com um filme que não se tornou lendário como o Velho Oeste.


David Warner, Slim Pickens, Jason Robards, Peter Whitney e R.G. Armstrong;Stella Stevens e Jason Robards