NNaquela noite não vieste para casa. Nem naquela noite, nem nesta. Bebi, comi, dormi, acordei, tomei banho, saí para o trabalho, voltei para casa, sempre à tua espera. Tudo fiz, estes três dias, à tua espera, sempre à tua espera. Mas tu não voltaste, nem para casa, nem para lado nenhum onde eu esteja.
A revolução foi na madrugada de ontem. A vida lá fora continua agora num sereno reboliço. Ouvi dizer que no Alentejo já falam em tomar propriedades e ocupar moradias vagas, cheias de poeira sobre lençóis brancos e fiapos de sol a espreitar das frinchas das persianas e que ninguém acha estranho que assim seja. Alheado de tudo isto, hoje fiquei em casa. Cheguei mesmo a pensar que valeu a pena ter sido pobre toda a vida para viver estes dias com alguma calma. Pela primeira vez na vida dei por mim a dar graças, não sei a quê ou a quem, por viver numa casa que não é minha e por ir a pé todos os dias para o trabalho. Não tenho nada que me possam tirar, já não tenho nada que me possam tirar.
Disseram-me que te viram ontem no Largo do Carmo em cima de uma chaimite, abraçada a um homem. Disseram-me que estavam ambos a fumar o mesmo cigarro. Nós costumávamos fumar o mesmo cigarro, à varanda, nas noites quentes de Estio. Eu abraçava-te, a minha mão na tua cintura, a tua mão sobre a minha, o cheiro dos teus cabelos misturado com o do tabaco, o fumo a escapar-se por entre os teus dentes e a preencher de névoa a negridão do céu da nossa varanda. Eu de olhos pousados em ti, inebriado de ti, dos teus caracóis, do fio de ouro que te afagava o pescoço, do pingente onde brilhavam discretamente as nossas iniciais entrançadas. Eu perdido no teu perfil, no teu nariz pequenino, eu encontrado nas nossas mãos juntas na tua cintura.
Disseram-me que rias muito, que gritavas, que aplaudias, que ele te olhava com admiração, que se beijaram muitas vezes. Talvez um preso político, talvez um estudante, talvez o dono de uma loja. Ninguém soube dizer-me quem ele é. Não é que faça qualquer diferença que eu saiba quem ele é. Faz-me diferença é aquela porta muda e queda. E os teus brincos de filigrana em cima da cómoda do nosso quarto. Dizias muitas vezes que aqueles brincos eram a coisa mais valiosa que tinhas. Faz-me diferença o leite a azedar em cima da mesa, o teu avental pendurado atrás da porta, abanado pelo vento. Faz-me diferença os teus chinelos debaixo da nossa cama, pousados um sobre o outro, descalçados à pressa na última manhã em que te vi. E o frasco de perfume quase vazio no armário da casa de banho.
No Carmo já não está ninguém a gritar, a aplaudir e a rir muito. Já só se vêem militares. Nas poucas imagens que vi na televisão do café não apareceste. Esperava ver-te de cravo vermelho ao peito, ou preso na orelha, um cravo vermelho nas imagens a preto e branco que a televisão do café irradiava. Mas não, tudo a preto e branco, nada de cravos vermelhos presos na orelha.
Disseram-me que não voltas, que fugiste com ele. Mas tu não fugiste, eu sei. Tu nunca te deixaste prender. Dormíamos na mesma cama, mas tão separados quanto é possível que duas pessoas que não se amam estejam. Nunca gostaste do arroz que eu sempre fiz com tanto empenho. Sabia há muito que não poderias, portanto, amar-me. E eu sempre achei que o teu arroz sabia a arroz, que tinha o mesmo sabor dos demais. E não tinha.
Tantas coisas que eu achei sempre iguais às demais e não eram. Até aquela madrugada em que te esperei eu julguei ser como as demais. E não foi. Tu não voltaste e eu deixei-me afundar em copos de um vinho mau, de um vinho francamente mau. Esta espera não é como as demais, porque tu não voltas. Disseram-me que não voltas e eu sei que não voltarás. Foste embora naquela risada, naquele grito, naquele aplauso, naquele cravo vermelho que eu em vão procurei nas imagens da televisão. Foste embora e eu não te vi ir, como nunca fui capaz de te ver enquanto estavas aqui.
[Também publicado em PNETcrónica.]
© Marta Madalena Botelho
A revolução foi na madrugada de ontem. A vida lá fora continua agora num sereno reboliço. Ouvi dizer que no Alentejo já falam em tomar propriedades e ocupar moradias vagas, cheias de poeira sobre lençóis brancos e fiapos de sol a espreitar das frinchas das persianas e que ninguém acha estranho que assim seja. Alheado de tudo isto, hoje fiquei em casa. Cheguei mesmo a pensar que valeu a pena ter sido pobre toda a vida para viver estes dias com alguma calma. Pela primeira vez na vida dei por mim a dar graças, não sei a quê ou a quem, por viver numa casa que não é minha e por ir a pé todos os dias para o trabalho. Não tenho nada que me possam tirar, já não tenho nada que me possam tirar.
Disseram-me que te viram ontem no Largo do Carmo em cima de uma chaimite, abraçada a um homem. Disseram-me que estavam ambos a fumar o mesmo cigarro. Nós costumávamos fumar o mesmo cigarro, à varanda, nas noites quentes de Estio. Eu abraçava-te, a minha mão na tua cintura, a tua mão sobre a minha, o cheiro dos teus cabelos misturado com o do tabaco, o fumo a escapar-se por entre os teus dentes e a preencher de névoa a negridão do céu da nossa varanda. Eu de olhos pousados em ti, inebriado de ti, dos teus caracóis, do fio de ouro que te afagava o pescoço, do pingente onde brilhavam discretamente as nossas iniciais entrançadas. Eu perdido no teu perfil, no teu nariz pequenino, eu encontrado nas nossas mãos juntas na tua cintura.
Disseram-me que rias muito, que gritavas, que aplaudias, que ele te olhava com admiração, que se beijaram muitas vezes. Talvez um preso político, talvez um estudante, talvez o dono de uma loja. Ninguém soube dizer-me quem ele é. Não é que faça qualquer diferença que eu saiba quem ele é. Faz-me diferença é aquela porta muda e queda. E os teus brincos de filigrana em cima da cómoda do nosso quarto. Dizias muitas vezes que aqueles brincos eram a coisa mais valiosa que tinhas. Faz-me diferença o leite a azedar em cima da mesa, o teu avental pendurado atrás da porta, abanado pelo vento. Faz-me diferença os teus chinelos debaixo da nossa cama, pousados um sobre o outro, descalçados à pressa na última manhã em que te vi. E o frasco de perfume quase vazio no armário da casa de banho.
No Carmo já não está ninguém a gritar, a aplaudir e a rir muito. Já só se vêem militares. Nas poucas imagens que vi na televisão do café não apareceste. Esperava ver-te de cravo vermelho ao peito, ou preso na orelha, um cravo vermelho nas imagens a preto e branco que a televisão do café irradiava. Mas não, tudo a preto e branco, nada de cravos vermelhos presos na orelha.
Disseram-me que não voltas, que fugiste com ele. Mas tu não fugiste, eu sei. Tu nunca te deixaste prender. Dormíamos na mesma cama, mas tão separados quanto é possível que duas pessoas que não se amam estejam. Nunca gostaste do arroz que eu sempre fiz com tanto empenho. Sabia há muito que não poderias, portanto, amar-me. E eu sempre achei que o teu arroz sabia a arroz, que tinha o mesmo sabor dos demais. E não tinha.
Tantas coisas que eu achei sempre iguais às demais e não eram. Até aquela madrugada em que te esperei eu julguei ser como as demais. E não foi. Tu não voltaste e eu deixei-me afundar em copos de um vinho mau, de um vinho francamente mau. Esta espera não é como as demais, porque tu não voltas. Disseram-me que não voltas e eu sei que não voltarás. Foste embora naquela risada, naquele grito, naquele aplauso, naquele cravo vermelho que eu em vão procurei nas imagens da televisão. Foste embora e eu não te vi ir, como nunca fui capaz de te ver enquanto estavas aqui.
[Também publicado em PNETcrónica.]
© Marta Madalena Botelho