PÚBLICO27.07.2008, Pedro Vaz Patto
Foi o intelectual italiano Giuliano Ferrara quem propôs, numa carta dirigida ao secretário-geral da ONU, esta iniciativaFoi há mais de um ano que se realizou entre nós o referendo que conduziu à liberalização do aborto. Poderia pensar-se que a questão foi encerrada, cá como noutros países, que o direito ao aborto passou a ser mais uma "conquista irreversível" e que estamos perante leis intocáveis e indiscutíveis.Mas não é assim. Não só porque tal lógica de "intocabilidade" não se compatibiliza com os princípios democráticos, como também porque um cada vez maior número de circunstâncias vem acentuando o anacronismo dos argumentos que levaram à liberalização do aborto desde há já várias décadas.Tudo isto vem a propósito de uma iniciativa lançada em Itália pelo intelectual laico Giuliano Ferrara (movimentos católicos apoiam-na, mas ela não partiu de nenhum deles), que está a ter eco em todo o mundo. Trata-se de, na sequência da aprovação pela Assembleia Geral das Nações Unidas em Dezembro do ano passado, de uma moratória mundial relativa à aplicação da pena de morte, propor, numa carta dirigida ao secretário-geral dessa organização, uma moratória relativa ao aborto.Já anteriormente o Governo polaco (entretanto substituído) havia associado estas duas causas de defesa da vida, opondo-se à celebração de um dia europeu contra a pena de morte se não fossem também contemplados o aborto e a eutanásia enquanto atentados à vida. Mais sensatamente, não se trata, agora, de levantar qualquer obstáculo à abolição da pena de morte, mas, antes, de pedir coerência a quem, justamente, clama pelo respeito da vida de pessoas condenadas pela prática de crimes graves. De pedir que, coerentemente, tal respeito se estenda à vida inocente.Um primeiro alerta que é suscitado pela iniciativa diz respeito à dimensão quantitativa do fenómeno. O aborto deveria ser, para muitos partidários da sua liberalização, "legal, seguro e raro" ("legal, safe and rare"). Não ouvimos repetir este slogan tantas vezes no referendo de há cerca de um ano? Do carácter falsamente "seguro" do aborto, falam os dados cada vez mais consistentes sobre as suas sequelas psíquicas para a mulher. Mas o aborto também está muito longe de ser "raro". O texto da referida carta evoca a crueza irrefutável dos números. "Nos últimos trinta anos, foram praticados mais de mil milhões de abortos, com uma média anual de cinquenta milhões." Poderia recordar-se o exemplo da Rússia, onde o número de abortos chegou a superar, durante vários anos, o número de nascimentos (mas também na "avançada" e "exemplar" Suécia o número de abortos é de mais de um quarto dos nascimentos) e onde, por razões demográficas, se procura, agora, introduzir limitações legais ao aborto. São números que deveriam arrepiar, pelo menos, tanto como os (também arrepiantes) 9,7 milhões de mortes anuais de crianças nascidas (segundo o recente relatório da Unicef).Mas há também outros aspectos do fenómeno que nessa carta são evocados e que muitas vezes são esquecidos. "Na China, milhões de nascituros correm o risco de ser vítimas de abortos, incentivados e também coagidos em nome de uma planificação familiar e demográfica do Estado." Onde está o aborto como afirmação de liberdade pessoal, quando ele é, assim, um instrumento de coacção em âmbitos pessoalíssimos? "Na Índia, devido a uma selecção sexista, foram eliminadas antes do nascimento milhões de meninas nos últimos anos." Onde está o aborto como bandeira da emancipação da mulher? "Também no Ocidente, o aborto torna-se o instrumento de um novo eugenismo que viola os direitos do nascituro e a igualdade entre os homens, desviando o diagnóstico pré-natal da sua função de preparação ao acolhimento e ao cuidado para com o nascituro para uma situação próxima de um critério de melhoramento da raça, destruindo, assim, os ideais universalistas que estão na origem da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948." Já Jurgen Habermas (apesar de não se opor à legalização do aborto) tinha alertado para este novo eugenismo, um "eugenismo liberal", no seu livro O Futuro da Natureza Humana (Shurkamp Verlag, 2003, Almedina, 2006). Neste contexto, não será muito mais difícil criar uma cultura de autêntica inclusão das pessoas com deficiência?A iniciativa pode parecer provocatória. Pretender alterar de imediato a legislação que, em muitos países, liberalizou o aborto pode ser irrealista. Mas o mérito indiscutível desta proposta é o de não deixar morrer a discussão, o de alertar as consciências que, distraídas ou manipuladas, não se apercebem de um fenómeno que, como ofensa ao primeiro dos direitos humanos, dificilmente encontrará paralelo, em gravidade e dimensão quantitativa.A luta contra o aborto tem várias vertentes: a da política legislativa, mas também a social (o combate às suas causas) e a cultural (a difusão de uma mentalidade acolhedora da vida, de toda a vida, como um dom). É o que importa salientar, entre nós de modo particular a propósito do aniversário do referendo. A discussão não morreu. Nessas três vertentes, a luta continua.