28 de nov. de 2005

vendaval da mente - I

Prólogo esboçado

Pensou que a maneira mais imprecisa para contar a história daquele homem seria analisar apenas o que ele fez. Contrariando os historiadores, pesquisadores e jornalistas, iniciou seu mais profundo exercício de montagem. Quando paralizou para contemplar os primeiros resultados, um suspiro. Ao reunir todas as coisas que aquele homem fez, e mais, todas as coisas que aquele homem deixou de fazer - por motivos diversos, os quais também foram reunidos, todas as coisas que aquele homem conseguiu completar e todas as coisas que aquele homem não foi capaz de completar - por incompetências diversas, as quais também foram reunidas, e assim por diante, ou seja, traçando um mapa dos momentos em que aquele homem esteve presente e os momentos em que ele esteve ausente, deparou-se com aquele suspiro. O homem tinha ressucitado, ali, bem na sua frente. Passou o pouco resto de vida que ainda tinha espantado com aquilo. Em sua morte, as pessoas comentavam maldosas que tinha suicidado-se com uma cabeçada no espelho com tamanha força que cada caco de vidro abrigou um pedaço da sua face.

O ínicio rascunhado

Um sono que não adianta dormir. Um sonho que não adianta acordar.
Minhas olheiras são as pegadas do sono em meu rosto. Sim, o sono passou por aqui. Mas parece que não voltará mais.

Pai está no quintal com sede do alambique. Ele diz que bebe cachaça para deixar mais água para nós. A única pessoa colorida em casa é a televisão.

Então eu percebi que não adiantava mais. A minha memória tinha se tornado a minha imaginação. Assim, me conformei quando as lembranças da infância começaram a inventar alguns dos meus dias já velho. Apesar de ainda ser díficil aceitar que talvez algumas das recordações dos tempos de criança tenham sido livros escritos com terra e lápis.


p.s: No domingo, comecei a gestar um livro no estômago. Mas estou mijando devagar cada frase. Algumas colocarei aqui.

26 de nov. de 2005

coleções de fatos

Diálogo verídico.

No carro, mãe e filha. 38 e 5, anos. A mãe, observa crianças pedindo esmola na rua e vê uma grande oportunidade para educar sua filha.

- Tá vendo ali, minha filha? Aquelas crianças não tem brinquedos nenhum. Não tem bonecas. Não tem as coisas que você tem. Elas tem que morar na rua. Muito triste.

A menina olha. Olha. Olha. Sorri. E responde.

- Mas elas tem a rua inteira, mamãe.

11 de nov. de 2005

BOM DIA

"Nada abalou sua fé"

Fui para Lavras Novas encontrar meus irmãos - de alma, de prosa e verso, de cuspe e sangue, de segredo e comunhão. Os guerreiros do Bom dia. Saravá.

Eu volto. Não Eu, esse, que, hoje, sou. Volto outros. Volto o carnaval deles. Volto na quarta-feira de cinzas. Mas não cinzas, dessas. Volto reconstruído.

8 de nov. de 2005

IPTU resumido da vida

Entrou pela janela na casa dos vinte.
Saiu pela cozinha na casa dos trinta.
Entrou pelo quintal na casa dos quarenta.
Ficou na varanda na casa dos cinquenta.
Caiu do telhado na casa dos sessenta.

Com 69 anos de idade, foi morar num apartamento. Não acostumado, poucos meses depois, se jogou. Caiu do décimo andar na rua dos setenta.

anterior mente

O castigo refez o crime. Ele está aguardando a pena para abstrair a palavra. Vá para cadeirinha-de-pensar, sentenciou a única adulta da sala. Ficava de frente para uma parede branca com detalhes de azulejo bege. Ninguém conseguiu contar quanto tempo durava aquele castigo. Era o tempo necessário para se perder a conta. Percebeu que se não aproveitasse aquele tempo do castigo para fazer outras coisas além de pensar, não conseguiria dar conta de tudo que era preciso fazer na infância. Na sala, ao fundo, estava lá, um pequeno trono do desespero virado de costas para o resto dos alunos. A cadeirinha de pensar. Era rei absoluto daquele império bege sem lição-de-casa. Assim, inaugurou seu mais íntimo exercício de criação, de frente para parede.

Foi tão convincente, que não conseguiu enganar.

3 de nov. de 2005

boca-vulva



Sobre foto de Ivana Cabral

A espera de melodia

quem dói de amor
diz amém a toda dor
janela aberta
vento entrando
sem pudor
ah, meu amigo xangô
você é o único que não pergunta
para onde vou

é um canto assim
saravá
é um canto assim
devagar
uma mão pra esconder
uma ferida na mão
um corpo pra esconder
uma ferida no coração
é uma prece
uma única reza
ah, xangô
E meu senhor do Bomfim
sozinho em casa
mas a casa não está sozinha
em mim

quem dói de amor
diz amém a toda dor

Os deuses sem beleza
Caminhando sem certeza
Todos próximos, todos aqui
Os deuses que não queiram me salvar

Um Deus, que saiba compartilhar
uma dose de silêncio
na mesa do bar.

berequetê

"Como os passarinhos do céu,
tem Deus por Tupã
por Tupã, por Tupã,
Sou Tupi-guara...
Sou Tupi-guara dessa terra de Tupã
Iarerê por erê de xexéu
Como os passarinhos do céu"
(...)

31 de out. de 2005

226


Terminei. 226.
Era o número de azulejos azuis. Esperei alguns instantes, mas ninguém tinha visto, ninguém para parabenizar. O banheiro fedia o mofo do quarto. Então os cabelos reiniciaram seu cotidiano hábito, pedindo perdão ao shampoo. A sala tem gordura da cozinha. O almoço esfria o corredor e desabotoa a carne das saias. As saias vestem primas desejosas. No corredor, passos lentos, correr é uma ousadia contra o chão encerado de Dida. E concede o atalho para fora, mas ainda dentro. É a varanda, que nunca admitiu ser cemitério dos brinquedos, chegando a cuspir crianças pra dentro da casa. O barro molhado nunca saiu completamente das mãos. Nenhum joelho saiu ileso do mármore que une a sala ao corredor. Apenas o silêncio vergonhoso das visitas comentava aquela união promíscua. Os joelhos são sempre os móveis mais antigos. A mão é a cômoda que mais tem a falar sobre a morte. Pronto. E todos sentaram para jantar. Não houve variação no cardápio. Sopa de tudo de ruim, batido no liquidificador. A mãe era a família inteira na mesa. Era por isso, que, às vezes, ela não podia ser mãe.

Foto: Tatiana Cardeal

28 de out. de 2005

antiga história reencontrada nos papéis

O corpo só dói, de verdade, uma vez na vida. As outras dores apenas compõem a história. Era esse o ensinamento de Elias. Nunca satisfeito fui. Deveras voltei. Nem todo amor veio para amar, explicava-me. Há os amores que vieram para isso, aí. Então apontava com seu dedo sujo. Não era sujo de sujeira. Era sujo de si. Porque nada que sai de si pode ser considerado sujeira. Pensava ele. Nem os excrementos. Saiu de mim, gritava ele, fedido. Elias não era louco. Eu também não era louco. Elias era meu companheiro de nada. Quando não havia o que fazer, era Elias que compartilhava comigo, isso, esse angustiante tempo nulo. Não havia monotonia. Era suor, que pairava nos trilhos. Não saber para onde se vai, e correr, não saber o ritmo da música, e dançar. Elias disse que aquele amor não havia mais. Puxou um resto de ferida e me deu o cascão fazendo pose de nagô defecal. Senti, ali, naquele mísero e maldito instante: Iansã cuspiu meus pecados e tinha mais fome do que barriga. Catei meus miúdos como se fossem búzios. E pedi para Elias decifrar pela língua de gente ignorante. No caso, de gente eu. Pedi para não enrolar nos detalhes. Esse canto que embebeda. Me conte desse amor que não se ama. Elias ficava lindo quando falava de maneira com sabedoria. Mas Elias só foi lindo aquela vez na vida. Eu chorei da sua lindeza. Quando ele abriu a boca, já havia até redemoinho na lágrima. E continuou. Nem todo amor veio para amar. Parece até uma coisa distante de entender. Mas é perto, de tão simples. Existe sim o amor que não consegue amar. O amor que não consegue. O amor que é incapaz ou incompetente. O amor que é derrotado antes de levantar a mão. O amor que é desafinado mesmo sem nunca ter aberto a boca. O amor que está ali, quieto. E só se sabe amor, porque mesmo quase inexistente, é inconfundível. Está lá. Bebendo com Deus a cachaça da saudade do que nunca virá.

04.03.2003

22 de out. de 2005

não entenda. apenas tenda.

a boa notícia é que temos poucas más notícias, hoje.

não, não estamos bem. mas nunca estivemos tão bem mesmo sabendo que não estamos bem, antes.

"o cinema argentino fala de coisas que podem acontecer em qualquer lugar, mas são feitos somente na argentina. o cinema brasileiro fala de coisas que só acontecem no brasil, mas podem ser feitos em qualquer lugar."
Não é para discordar ou concordar. Apenas fiquei pensando a respeito.