João Bernardo despista-se pelos caminhos da termodinâmica no seu mais recente texto, sobre o que entende por ecologismo. Não são antes proclamar que "(…)as grandes empresas conseguiram mostrar que podem ampliar as suas operações e proporcionar uma maior abundância sem com isso esgotarem os recursos naturais(…)". Mostrado, ou demonstrado, fica antes de mais, e mais uma vez, a profunda admiração que João Bernardo nutre pela empresa capitalista, e pelo elevado grau de eficiência económica que é capaz de atingir. Será que nas mãos dos trabalhadores tal fenomenal máquina de produção eficiente manteria a sua performance? Quantos casos há de empresas controladas por trabalhadores a competirem com sucesso no contexto duma economia de mercado Capitalista avançada? Mas, então, ao defendermos o controlo da produção pelos trabalhadores não estaremos, na prática, a defender a sobre-exploração da força de trabalho no quadro empresarial?…
Bom voltemos à termodinâmica. Segundo João Bernardo, existe uma contradição entre a formulação da segunda lei da termodinâmica tal como foi feita por Clausius, e aquela que pode ser elaborada recorrendo aos princípios da física estatística, da qual Boltzmann foi um dos pioneiros. No entanto, tal contradição não existe de todo. A física estatística apenas introduz um novo nível, microscópico, de interpretação dos processos termodinâmicos, que ocorrem ao nível macroscópico.
Eddington terá afirmado, com toda a razão, que: "A lei que afirma que a entropia cresce — a segunda lei da termodinâmica tem, segundo o meu pensamento, a posição suprema entre as leis da natureza. (…) se a sua teoria está em oposição à segunda lei da termodinâmica, então não posso lhe dar esperança alguma: não há nada a esperar dela, senão cair na maior humilhação."
30/09/13
Just who do you think you are?
por
Ricardo Noronha
A visita à Bulhosa de Entrecampos foi tão estimulante e instrutiva como se esperava. Um relato está disponível no Passa Palavra
Sexta-feira, dia 27 de Setembro, dezenas de pessoas compareceram na Livraria Bulhosa, em Entrecampos (Lisboa), respondendo assim à convocatória das Edições Antipáticas. Face à dívida de cerca de 400 euros contraída pela empresa livreira junto da editora sem fins lucrativos, esta propôs a ocupação da Bulhosa para um debate público em torno do tema “A propriedade é um roubo”.
29/09/13
Marx e a nação. Um abraço pela frente e uma facada por trás – I. O nacionalismo
por
João Valente Aguiar
«Neste artigo em seis partes pretendo discutir a tensão entre um vector emancipatório, anticapitalista e internacionalista e um vector nacionalista e estatista nas obras políticas de Marx. Ao contrário da esmagadora maioria da esquerda, que tende a santificar as suas figuras, por mais geniais que tenham sido, o objectivo deste artigo será dar conta de alguns aspectos do nascimento e desenvolvimento do nacionalismo à esquerda. Apresentar-se-ão algumas pistas visando a relação entre o desenvolvimento de vectores antagónicos na obra teórica marxiana e de como estes traduzem conexões com aspectos relacionados com a evolução das lutas sociais no século XIX.
Assim sendo, na primeira parte deste artigo procurarei discutir uma definição minimalista mas abrangente do conceito de nacionalismo. Após essa introdução, na segunda parte, analiso a tensão entre o grito de revolta internacionalista e a solução política nacional que Marx e Engels prescreveram para a mobilização da classe trabalhadora no Manifesto Comunista. Na terceira parte, contextualizo o Manifesto no quadro da sua época, debatendo algumas das suas omissões políticas estratégicas. De seguida, na quarta parte, abordo resumidamente as contradições entre o estatismo e o controlo político do proletariado na Comuna de Paris, conforme Marx o concebeu à época. Por último, nas duas partes finais, o artigo centra-se na análise da formação de duas esquerdas dos gestores. Ali procura-se debater a tensão entre os contributos teóricos de Marx para a compreensão do capitalismo e os seus contributos para a construção de uma plataforma política e organizativa de gestores.»
«Se o internacionalismo veicula o princípio da dissolvência das fronteiras, do Estado e da exploração, "o modo nacional do poder valoriza forçosamente uma outra concepção. Porque quer mobilizar o todo nacional, o modo nacional valoriza o poder representante, particular, territorializado e centralizado que é o do estado nacional, sendo através deste que ele pretende constituir-se parte do mundo" (Neves 2008: 398).Por outras palavras, o nacionalismo desenha uma unificação entre trabalhadores e capitalistas do mesmo país, ao mesmo tempo que recorta em pedaços nacionais a transversalidade global da condição proletária/assalariada. Separam-se assim trabalhadores na mesma exacta medida em que se unificam ideologicamente membros de classes sociais antagónicas. No dizer de um especialista, o nacionalismo é um "processo que cria um universal sobre a dualidade social" (Trindade 2008: 44)».
O resto da primeira parte (de seis) do meu artigo sobre a tensão entre o internacionalismo e o nacionalismo na obra do Marx pode ser lido aqui no Passa Palavra.
O anti-ecologismo primário é um tigre de papel (*)
por
joão viegas
Olá camaradas,
Li com interesse mais este texto do João Bernardo
referido pelo João Valente Aguiar neste post, que me inspira as
seguintes reflexões :
- Lutar contra moínhos de vento é uma actividade salutar e altamente recomendável Fazê-lo aproveitando para prestar úteis esclarecimentos sobre termodinámica torna o exercício ainda mais meritório.
- Admitindo que existem ecologistas que pugnam pelo restabelecimento imediato da era jurássica, em nome de estarmos em estado de pecado mortal desde que provámos determinado fruto que importa agora restituir pela via oral (com exclusão de qualquer outra via, uma vez que São Tomás prova, na Suma Teológica, com palavras mais doutas do que as minhas, que no paraíso ninguém defecava), concordo que há nesta doutrina um evidente exagero e que o seu programa político abraça despudoradamente o ridículo.
- Em França, dentro da constelação de correntes diversas de que é feito o partido Europe Ecologie Les Verts (EELV), os partidários da doutrina descrita pelo João Bernardo são perfeitamente invisíveis. Dado que, no partido EELV, uma corrente é visível a partir do momento em que reúne mais de 7 pessoas, penso que podemos afirmar sem medo que os iluminados que lutam pelo “decrescimento” tal como descrito no texto são uma pequena minoria entre os ecologistas.
- Em Portugal não sei bem como é, porque não conheço exactamente o programa do partido “Os Verdes”. Se eles perfilham mesmo a doutrina descrita pelo João Bernardo, percebo melhor a energia que ele gasta para os ridiculizar.
- Em França (e suspeito também que na Alemanha, na Bélgica, nos Países Baixos, etc.) a grande maioria dos ecologistas é progressista e reclama-se claramente da esquerda. Aproveito para dizer que para mim, é relativamente pacífico o que se deva entender por “esquerda”, que identifico com a ideologia que procura alcançar a igualdade efectiva entre os homens, restituindo a riqueza a quem a cria com o seu trabalho.
- Mas a questão que me parece dever levantar-se após leitura do texto do João Bernardo é a seguinte : admitindo que alguns ecologistas são ridículos, será legítimo concluir que todos os ecologistas o são, que os problemas ecológicos são falsos problemas e que as preocupações dos ecologistas não passam de uma cortina de fumo destinada a esconder os óbvios benefícios do progresso tecnológico ?
- Por exemplo, quando alguns ecologistas apontam para os excessos desastrosos da civilização automóvel, devemos achar que eles não passam de loucos perigosos e que o seu alarmismo é descabido, porque o progresso tecnológico vai encarregar-se de inventar já amanhã automóveis que não poluem, que não fazem ruído, que não ocupam espaço, e que trazem benefícios incontestáveis para todos, a tal ponto que vamos acabar por desejar que sejam produzidos à razão de meia dúzia por cada Chinês ?
28/09/13
A resposta ao ecologismo conservacionista não é o produtivismo, mas a democracia
por
Miguel Serras Pereira
A crítica da naturalização da dominação hierárquica e da despolitização da dimensão social e política por via do "conservacionismo" não devem fazer-nos esquecer que o produtivismo e o elogio incondicional crescimento dos PIBs e da extensão sem limites do mercado consumo alimentam mitos igualmente funestos e reproduzem, à sua maneira, as "condições ideológicas" da subordinação hierárquica e do poder político pelas oligarquias da gestão económica.
Com efeito, a apologia do crescimento e a justificação da ordem estabelecida em nome do crescimento que assegura é uma mistificação grosseira. Não é verdade, por exemplo, que seja porque o desenvolvimento das forças produtivas é ainda quantitativamente insuficiente que existe a miséria do terceiro mundo e/ou se exacerba a precariedade nas sociedades economicamente mais fortes. E não será através do crescimento e da expansão do consumo dos assalariados que o capitalismo poderá ser transformado numa sociedade de iguais, ou cidadãos que governem de facto a esfera económica e da produção de bens e assumam o exercício político do poder de que a dominação os expropria.
Não se trata de disputarmos ao capitalismo o exercício do poder para produzirmos ou consumirmos mais. A questão é que queremos, porque queremos a democracia entendida como democracia governante, produzir de outra maneira e decidir em pé de igualdade sobre o como, o porquê e o para quê da produção. Na medida em que nos formos tornando capazes de o fazer, é evidente, dir-se-ia, que produziremos mais certas coisas e menos outras, que consumiremos de modo diferente e redefiniremos noutros termos a escassez e a abundância, e assim por diante.
Por fim, cair na apologia do crescimento pelo crescimento e do consumo pelo consumo equivale a cedermos ao primado da economia e à absolutização do capitalismo, esquecendo que ao "trabalho forçado" que hoje nos é imposto corresponde, como dizia Henri Lefebvre, um "consumo forçado" e uma vida quotidiana submetida a um regime de servidão que estão nos antípodas da liberdade.
Entretanto na Grécia...
por
João Valente Aguiar
O Guardian noticia hoje que o líder do partido neo-nazi Aurora Dourada, bem como o seu porta-voz e dois deputados, foram detidos. No total, as autoridades judiciais gregas deverão ter emitido um total de 35 mandatos de captura. Esta notícia surge na sequência directa de uma outra dada pelo mesmo jornal britânico onde era mencionada a ameaça que a uma associação de reservistas da Forças Especiais gregas teriam ameaçado com um golpe de Estado. Outro dado relevante (e muito preocupante) encontra-se no facto de que altos quadros das forças policiais gregas estariam a colaborar com o Aurora Dourada, havendo inclusive rumores de que estariam a ocorrer treinos militares e para-militares a militantes daquele partido.
Neste contexto, verifica-se a colaboração entre sectores da polícia e as milícias neo-nazis, facto demonstrativo de que os dois eixos típicos do fascismo se estariam a articular mutuamente. Este é, do que se conhece, o dado mais perigoso naquele contexto. Todavia, a verificar-se a prisão de dirigentes daquele partido e de polícias, então isso significa que, provavelmente, o controlo do conjunto da polícia ainda não terá escapado ao Estado grego.
Num contexto de uma austeridade galopante, de um decrescimento económico que já atingiu os 23% acumulado do PIB e de uma falência histórica da esquerda nacionalista (com os seus apelos anti-europeus), a situação grega apresenta alguns dados preocupantes. Para os que andam a clamar pela soberania nacional, e para os que andam a difundir as teses do decrescimento económico, talvez o exemplo grego lhes obrigue a pensar sobre quem pode vir a seguir se as suas teses se difundirem massivamente.
Post-scriptum: contra a ecologia. 5) Georgescu-Roegen e o decrescimento económico
por
João Valente Aguiar
O texto do João Bernardo que desmonta as patranhas dos ecologistas que defendem uma austeridade permanente e contínua pode ser lido na íntegra aqui no Passa Palavra.
«No plano dos factos, o último recurso dos ecologistas e, entre eles, dos partidários do decrescimento económico é a forma como definem a segunda lei da termodinâmica, pretendendo que a entropia de qualquer sistema aumenta com o tempo, ou seja, que caminhamos para um aumento da energia dissipada e inacessível. A energia total mantém-se constante, mas a sua distribuição tenderia a nivelar-se numa energia latente, inutilizável. Assim, anunciam estes profetas, mesmo que o crescimento económico pareça sustentável graças a uma adequada gestão dos recursos naturais, a segunda lei da termodinâmica estabelece que quanto mais energia despendermos no processo produtivo, mais aumentaremos a entropia. É essa lei que nos dita o apocalipse.
As teses do decrescimento económico estão na moda e em Portugal é um espectáculo deplorável ver pessoas — todas elas reivindicando-se daquilo que, por razões complexas, continua a chamar-se esquerda — defenderem um decrescimento económico definitivo, quando a troika e o governo o propõem apenas temporário. Mas não vou ocupar-me aqui com os teóricos em voga, já que, precisamente por isso, são eles os mais superficiais».
«Abordei a segunda lei da termodinâmica nesta série de artigos somente porque ela é invocada como justificação pelo fundador da teoria do decrescimento económico. E no decurso do artigo tive de me cingir às formulações de Georgescu-Roegen e à terminologia por ele usada — apesar de saber que não são as melhores — porque é desse autor que se trata. Penso que deixei bastante claro que o meu objectivo neste quarto artigo não é o de fundar um modelo de crescimento económico na termodinâmica estatística, mas apenas o de negar que se possa recorrer à termodinâmica clássica para fundar um modelo do decrescimento económico».
27/09/13
A Gaiola Dourada ou o regresso da propaganda (I)
por
Jorge Valadas
Não é de hoje nem de ontem, é de sempre.
Estou em crer que é algo de recorrente e repetitivo
na história das migrações desta sociedade. Provavelmente nas migrações em geral…
Na emigração, na vivência da condição de imigrante, os indivíduos descobrem-se,
revelam-se, escondem-se do que descobrem ser ou não ser. A história da emigração
portuguesa em França é um exemplo deste processo de construção ou desconstrução
de uma identidade. Foi através da condição de imigrante que centenas de
milhares de proletários pobres acederam à identidade de «Portugueses». Os mesmos
que, durante séculos, tinham vivido nas margens miseráveis de uma sociedade rural
pobre que os obrigara a procurar a sobrevivência para além das fronteiras de
uma pátria que mais não era do que uma abstracção ou, no pior dos casos, uma
justificação para uma morte em terras africanas. E foi assim que os imigrantes
de Portugal se tornaram Portugueses, em terras de França e noutras. Para a maioria,
o humano foi reduzido ao seu denominador mais pequeno, atrelado a esta «forma
particularmente abjecta de mesquinhez colectiva à qual se dá o nome de
nacionalismo» (Georges Bernanos). Para uma minoria, ao contrário, foi esta
mesma condição de Estrangeiro que lhes revelou a dimensão cosmopolita do
humano, a existência de uma identidade mais universal. Para muitos a emigração
foi um empobrecimento do espírito, um fechar sobre si próprio, mas para outros
representou um enriquecimento, a abertura sobre o Outro e sobre o Mundo, um
ultrapassar do patriotismo tacanho. Uma minoria solidamente rebelde às
identidades nacionalistas, da qual me orgulho de fazer parte.
Os tempos recentes deram-nos exemplos de atitudes
radicalmente opostas face aos acontecimentos da história. Assim, em Maio 68, a linha de fractura na
emigração portuguesa separou a maioria, imbuída do terror do comunismo inculcado
pelo salazarismo e a Igreja, dos que, instantaneamente, reconheceram a sua
revolta no movimento. Sobre os efeitos desconcertantes e contraditórios deste
momento, há os inteligentes filmes de José Vieira, Le drôle de mai. Chroniques des années de boue, 2008 e Deserteurs et insoumis dans le mouvement de
Mai 68, le printemps de l’exil, 2011. Uns anos mais tarde, no 25 de Abril e
nos anos quentes que se seguiram, a mesma maioria comportou-se como vanguarda
das forças reaccionárias, mobilizando-se em defesa da propriedade privada, vivendas
e prédios de aldeias, vazios de gente e de vida durante 11 meses do ano… É
assim que os que se tornaram Portugueses na emigração se mostram mais
Portugueses do que os que estão fartos de o ser. Instituições diversas e variadas
tiveram o seu papel na construção da identidade de «Português» para imigrantes.
As da «velha senhora» antes de mais, a igreja católica e apostólica, proprietária
eterna do espírito dos pobres camponeses das terras do demo. Outras - em
aparência mais modernas - vieram pouco a pouco substituir-se aos militantes do
Vaticano. Não sem menos jesuitismo, os partidos e vanguarda políticas do marxismo-leninismo
lusitano, procuraram enquadrar o bom povo emigrado nas actividades folclóricas,
ranchos, fados, associações desportivas e outras, consideradas como lugares
naturais das massas populares. Os anos 1960 e 1970 constituíram o auge deste
militantismo, que consumiu a energia de muita gente generosa e intrinsecamente
revoltada em tarefas de animação de verbena. Os tempos passam e, não obstante a
insistência de alguns originais, tais práticas passaram de moda. Os imigrantes
ligam mais a sua identidade às máfias do futebol que aos ranchos folclóricos. Tudo
se vai diluindo a ponto de alguns espíritos nostálgicos perguntarem: mas afinal
o que é um imigrante português ? Pergunta que interessa também aos bancos que
cheiram o bom negócio.
É assim que, não tanto por obra do espírito santo
ou por imaginação criativa de uma meia dúzia de totós do meio cinematográfico, veio
à luz o filme Gaiola dourada. Visto já
por um milhão de pessoas na França e em breve por um outro milhão em Portugal…
Para grande regozijo dos produtores envolvidos.
Comentários do estilo «é uma homenagem aos
Portugueses de França» ou mesmo «tem piada mesmo se é cliché», não são aceites
nesta repartição. Porque o filme não é mau, é pior do que isso! Encoberto pela mediocridade
e superficialidade da história há um temível projecto de propaganda. Numa
entrevista a uma das publicações com maior tiragem da imprensa francesa, o
realizador Ruben Alves revela ingenuamente a ideologia que defende. «Para a
geração dos meus pais, que chegaram na década de 1970, a abnegação no
trabalho é uma forma de gratidão ao acolhimento da França.» (Télérama, 28 agosto 2013). Mas de que
acolhimento está o Ruben Alves a falar, os bidonvilles
dos anos 1960 e 1970, a
exploração dura e violenta que continua hoje a atingir os milhares que
continuam a chegar e a procurar trabalho, muitas vezes levada a cabo por gangues
de compatriotas? E se há assim que agradecer à França pela sobrevivência da
espécie, então qual a razão desta identificação com o país que os levou à fome?
Mistérios da sétima arte! O discurso obsceno da abnegação face à exploração, do
elogio da doença do trabalho, da atitude servil de gratidão perante quem
explora, delimitam a imagem dos Portugueses na mente dos seus exploradores. E é
precisamente esta imagem que é lembrada, promovida, apresentada como conforme à
«natureza» do «verdadeiro português». Como o sugere aliás, com um paternalismo
cínico, alguma imprensa francesa.
Há na Gaiola
Dourada três mensagens. O banal cidadão francês fica confortado na ideia de
que os Portugueses são realmente o que ele pensa que eles são, gente simpática
e submissa, resignada. Aos imigrantes é lembrado que devem ser o que os outros
pensam que eles são. Finalmente, transmite-se ao público português a ideia de que
os imigrantes são apreciados nas terras de França porque são o que os seus
patrões gostam que eles sejam. Mais um exemplo para que a Troika se convença da
natureza pacífica do povo. Para quem não se reconheça nestas categorias, a
violência dos «clichés» da Gaiola Dourada constitui
um atentado contra a dignidade. Dos salazaristas Serões para Trabalhadores (para os amnésicos, os programas radiofónicos
do regime que se destinavam a inculcar no bom povo português os valores
cristãos e nacionalistas) passámos à neoliberal A Mala de Cartão, para chegarmos hoje ao pós-modernismo da Gaiola Dourada. Com um mesmo fio
condutor: a promoção dos valores de submissão à exploração, ao respeito do lugar
que é o dos pobres. Ruben Alves fez o filme de que se precisava, um triste
filme de propaganda embrulhado num enredo que faz rir sem fazer pensar.
«Sede determinados a não mais servir, e sereis
livres », a máxima de Etienne de la Boétie, é provavelmente incompreensível para o
realizador e seus colaboradores. Inaceitável para os produtores da obra. Mas seria
errado deduzir que todos os que se deixaram seduzir por este filme de
propaganda são inconscientes da alienação em que vivem, insensíveis aos valores
universais de fraternidade, ao desejo de emancipação social. As confrangedoras
caricaturas que nos são impingidas na Gaiola
Dourada dizem mais sobre quem as criou que sobre a realidade contraditória
da colectividade proletária em questão.
Fico por aqui. Para mais e melhor em breve vos
convidarei à leitura de mais reacções que circulam entre os rebeldes à
portugalidade folclórica, entre os alérgicos à imagem do «bom e trabalhador
povo português». A verdade é que, se a Gaiola
Dourada fez rir muita gente há também quem tenha ficado zangado com a
brincadeira de mau gosto.
26/09/13
O moralismo, a moral e a esquerda
por
joão viegas
Ja diversas vezes constatei, inclusivamente aqui
no Vias de Facto, algum embaraço perante a acusação barroca de “moralismo”, que
aparece frequentemente nos debates entre pessoas de esquerda. Quanto mais penso
no assunto, mais me parece que há aqui uma questão mal resolvida, mas nem por
isso menos importante. Ora vejamos.
Numa primeira análise, a acusação de “moralismo”
tende a confundir-se com a contestação de regras morais (e mais precisamente de
normas restritivas da liberdade individual) impostas sem deliberação e de forma
autoritária. Isso talvez corresponda a uma realidade histórica, no tempo em que
a moral dos dominantes era imposta pela força em nome de Deus, mas hoje em dia,
a acusação já não tem grande razão de ser. Com efeito, se exceptuármos o João César
das Trevas, ninguém contesta que a sociedade deva reger-se por princípios
“liberais”, o que implica que as normas restritivas das liberdades individuais
(que devem ser adoptadas de forma democrática) só fazem sentido quando são necessárias
para permitir o exercício de outras liberdades. Julgo também que ninguém
contesta que sejam precisas algumas regras restritivas das liberdades
individuais. Reparem que tais restrições assentam necessariamente na moral, tal
como a necessidade de as manter excepcionais. Penso que tudo isto é relativamente
pacífico e que não merece grandes desenvolvimentos. Imaginem se uma pessoa acusada de sequestrar
outra se insurgisse dizendo : “esta sociedade é abusivamente moralista, com que
direito vêm restringir a minha liberdade de sequestrar pessoas ?!?”. Absurdo.
Ora bem, na grande maioria dos casos, quando uma
pessoa acusa outra de ser “moralista”, esta última está apenas a defender a
legitimidade de restringir algumas liberdades, não porque pensa que isso seja um obscuro
comando de Deus, mas porque entende que é racional proceder assim em nome do
interesse colectivo, que inclui a preocupação de proteger outras liberdades
colectivas ou individuais. Os exemplos são infinitos. Nestes casos, o argumento
do “moralismo” equivale, em termos lógicos, a dizer “mas olha que tu estás a dizer o contrário daquilo que eu penso” o
que, convenhamos, tem um poder persuasivo relativamente limitado...
No entanto, a acusação de “moralismo” pode também
ser entendida de uma outra maneira, mais subtil, que se enraíza em preconceitos
cientificistas bastante comuns entre as pessoas de esquerda. Nesta accepção,
acusa-se de “moralismo” uma pessoa que apela para valores que se reputam
obscuros, imotivados ou insuficientemente motivados porque não podem ser
aferidos pelo método científico, tido como o único capaz de estabelecer
certezas suficientemente sólidas para orientar as nossas decisões. Neste sentido, o argumento tem uma inegável
força retórica : “Vais seguir o
feiticeiro ou o engenheiro ? Vais
acreditar nas patranhas dos padres sobre o respeito da natureza criada por Deus,
ou analisar friamente os dados científicos de que dispomos sobre a elevada
probabilidade de conseguirmos rapidamente colonizar o planeta Saturno onde
vamos produzir num ano géneros alimentares em quantidade suficiente para
satisfazer Xn gerações futuras ?” (exemplo completamente inventado...).
Este tipo de argumentação, muito frequente em
pessoas que se reclamam do marxismo, doutrina nascida no auge do positivismo
cientificista, parece-me duplamente perigoso.
Em primeiro lugar, assenta numa crença altamente
contestável, e aliás desprovida de justificação científica, na capacidade
ilimitada da ciência de nos proporcionar um conhecimento exacto e exaustivo da
realidade, não apenas da realidade objectiva, mas também das considerações a
ter em conta nas nossas decisões morais e políticas. Julgo que é relativamente
pacífico, hoje em dia, que a ciência não tem pretensões tão elevadas e que,
muito pelo contrário, ela se reclama de um rigor que nasce em grande parte da
consciência que tem das suas próprias limitações.
Em segundo lugar, o argumento esconde também outra
coisa, bastante mais preocupante, que é uma recusa frontal de debater acerca das
finalidades e dos valores. Com efeito, de acordo com esta concepção, das duas
uma : ou falamos de realidades objectivas, e então exigimos provas
testadas com rigor científico (que não se discutem), ou falamos de realidades
impermeáveis à ciência e deixadas ao critério puramente subjectivo das emoções
(que também não se discutem). Só que esta alternativa assenta numa perigosa
falácia, que consiste em negar que possa haver um debate racional e frutífero sobre
valores ou sobre finalidades. E esta falácia parece-me ser, paradoxalmente, a
semente do rigorismo em que se enraízam a intolerância e o autoritarismo...
Escrevi aqui em cima que esta segunda forma, mais
subtil, de desqualificar o “moralismo” era frequente em pessoas que se reclamam
do marxismo. Queria no entanto deixar claro que ela não me parece poder apoiar-se
no pensamento de Marx. Muito pelo contrário, julgo que o pensamento de Marx pode
descrever-se como uma tentativa profundamente libertária de alcançar uma moralização do capitalismo.
Mas posso estar enganado...
PS : E com esta provocação me estreio no
Vias de Facto, blogue que leio há muito tempo. Abraços a todos, camaradas, e indulgência
para com este vosso criado !
25/09/13
Cobranças difíceis
por
Ricardo Noronha
Nada o ilustra como o caso da Bulhosa Livreiros – Sociedade Comércio Livreiro S.A., que despede quem denuncia os salários em atraso dos seus trabalhadores e contrata estagiários e reformados para os substituir. Desde o início de 2013 que o calote se agravou, estando neste momento por pagar vários meses de salário e largas centenas de euros em dívidas a pequenos editores. As Edições Antipáticas (uma editora sem fins lucrativos) pertencem a este segundo grupo, sendo-lhes devidos há mais de 16 meses os valores referentes à venda de 50 livros (mais de 400€), que a Bulhosa se recusa pagar invocando os mais variados pretextos. Hoje somos editores a quem não pagam, amanhã seremos trabalhadores que não recebem o seu salário e nos dias seguintes todo e qualquer um que se confronte com quem nos rouba a vida e o futuro. O que está em dívida é mais do que o dinheiro e a Bulhosa irá pagar.
Para começar, propomos ocupar a Bulhosa Entrecampos para um debate público no dia 27 de Setembro, pelas 18h00. Convidamos todos e todas para uma conversa com o título “A propriedade é um roubo…” onde todas as participações são bem-vindas.
O conjunto de tarefas que não puderam ser delegadas na automação/automatização formam uma nebulosa de lugares que, por não serem ocupáveis pelas máquinas, são ocupados por qualquer humano – pessoal da manutenção, lojistas, trabalhadores da linha de montagem, trabalhadores temporários, etc. Esta mão-de-obra flexível, indiferenciável, que passa de uma tarefa a outra e nunca fica muito tempo numa empresa, já não pode agregar-se numa força, não se encontrando nunca no centro do processo de produção mas sim pulverizada numa multitude de interstícios, ocupada em tapar os buracos do que não foi mecanizado. O trabalhador temporário é a figura deste operário que já não o é, que já não tem um ofício, mas antes competências que vende no curso das suas missões e cuja disponibilidade é também um trabalho. [...] O actual aparelho de produção é então, por um lado, esta gigantesca máquina de mobilização psíquica e física, de sugar a energia dos seres humanos tornados excedentários e, por outro, esta máquina de triagem que concede a sobrevivência às subjectividades conformes e deixa sucumbir todos os “indivíduos em risco”, todos os que encarnam um outro emprego da vida e, dessa forma, lhe resistem. De um lado fazem viver os espectros, de outro deixam morrer os vivos. Tal é a função propriamente política do actual aparelho de produção.
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