28.7.07

Um coração remendado

Ainda não sei se é possível remendar um coração partido. Tenho-me afadigado em busca do melhor modo de intervenção sobre esse órgão magistral onde, dizem, têm início todos os sentimentos, mas a verdade é que ainda não cheguei a conclusão alguma.
Consta, aliás, que em matéria de consertos de coração não há grande coisa a fazer. Não se trata de um relógio que pode abrir-se para afinar. O coração nem sequer é alimentado por um motor à parte que possa ser desmontado, limpo e reparado; ele próprio é que é o motor de tudo o resto.
Começo a achar que o artífice de tão minucioso arranjo só posso ser eu. Uma tarefa solitária, parece-me, ainda que o artífice do desarranjo tenhamos sido nós. Mas descansa, não conto com a tua ajuda. Talvez já não fosse tão mau quanto isso se tivesses, ao menos, o desejo de que o meu coração voltasse a bater descompassadamente. O problema do meu coração é que bate compassadamente demais, discretamente demais, desapaixonadamente demais. E não me serve de muito um coração que não me inquieta, que não me angustia, que não palpita mais do que o estritamente necessário para bombear o sangue para o resto do meu corpo.
Embora não perceba absolutamente nada da arte do remendo dos corações feridos, quase me atrevo a ponderar a possibilidade de, um destes dias, deitar mãos à obra e tentar compôr o que está estraçoado.
Estive a pensar. Talvez o comprima e o distenda até que perca esta ridícula forma que apresenta, esta forma simétrica que constantemente me lembra que cada coração tem duas metades. Talvez retalhe o meu coração e depois o cosa e recosa, dando-lhe uma forma abstracta. É que é bem possível que o problema do meu coração se resolva no dia em que eu aceitar que metade dele está morta, inanimada, sem sentidos.
Pudessem os corações sobreviver apenas pela metade e este seria o método definitivo para solucionar a questão. Pudesse eu viver de funções meramente biológicas e congelá-lo-ia definitivamente. Mas não posso, ainda não posso. Resta-me, portanto, limpar-lhe as feridas e curá-lo, ainda que consciente de que os efeitos secundários de tão longa paragem nunca deixarão de ser sentidos. Vá lá, ao menos se me conserve esta lucidez.
Caso consiga encontrar o tão desejado método, prometo revelar-to. Poderás, então, também tu, resgatar esse teu coração que eu bem sei, que todos bem sabem, está igualmente despedaçado. Uma coisa te garanto: nunca desistirei de o procurar. Pelo menos, não enquanto continuar a acreditar que é melhor um coração remendado dentro do peito do que um coração moribundo a vaguear por aí.

© [m.m. botelho]

25.7.07

Mas desamar-te não chega.

Eu queria tudo. Tu deste-me o bastante para uma vida. Ainda assim não chegou. Não sei se foi o meu se o teu egoísmo, esta estranha relutância de ofertar, esta distância entre o dar e o receber que nos apartou. É que eu queria tudo, tudo, e tu só me deste o bastante para uma vida.

Não sei o que faça agora destes restos do que me deste que ficaram espalhados dentro de mim. Eu queria tudo, tudo. Até que me ensinasses essa fórmula que tão bem conheces de desamar. Mas desamar-te não chega. A vida não chega para me bastar de ti.

© [m.m. botelho], ao som de Todo o Amor do Mundo Não Foi Suficiente, poema de José Luís Peixoto interpretado pel'A Naifa, do álbum 3 Minutos Antes de a Maré Encher [2006], aqui numa versão ao vivo (apenas a partir de 1:11).



todo o amor do mundo não foi suficiente porque o amor/ não / serve / de nada. ficaram / só / os papéis e a tristeza, ficou só a amargura e a cinza dos cigarros / da / morte.
os domingos e as noites que passámos a fazer planos não / foram / suficientes e foram / demasiados porque hoje são como sangue no teu rosto, são / como / lágrimas.
sei que nos amámos muito e um dia, quando já não te encontrar / em / cada instante, cada hora, / não irei negar isso. não irei negar nunca que te amei. nem / mesmo / quando estiver / deitado, / nu, sobre os lençóis de outra e ela me obrigar a dizer que a / amo / antes de a / foder.

14.7.07

Amor a tiracolo

Os dias da semana passam muito mais depressa do que as minhas cansadas pernas desejariam. Ando o dia inteiro a correr de lá para cá, de pasta ao ombro.
Continuo a preferir usar a pasta a tiracolo e não na mão.
Um amontoado de papéis lá dentro, alguns com as pontas dobradas.
Continuo a detestar as pontas das folhas dobradas.
Entre esses muitos papéis encontrei, há dias, uma carta tua. Não pode dizer-se que se trate, em rigor de uma carta. Um recado, talvez. Pedias desculpa por teres de sair sem te despedires; falavas do pacote de sumo que deixaste no frigorífico a gelar para mim.
Continuo a gostar do sumo gelado, pela manhã.
Qualquer dia hei-de debruçar-me a sério sobre o que vem a ser isso a que chamam «cartas de amor». Durante os anos em que fui tua, todos os papéis que me escrevias foram para mim cartas de amor.
Ainda guardo todas as tuas cartas de amor.
Há já muito tempo que ninguém me escreve. Na verdade, só tu me escreveste, recadinhos de amor em pedacinhos de papel rasgados à pressa...
Por tua causa é que dobrei o meu coração em muitas partes, como uma folha velha que já não interessa e se joga fora. Eu, que detesto as pontas das folhas dobradas.
Por tua causa é que tenho o coração cheio de vincos.
Por tua causa é que tirei o amor do peito e o meti na pasta. Escondi o coração no fundo da pasta, soterrado por um sem número de tralhas inúteis.
Por tua causa é que ando com o amor a tiracolo.
O meu amor por ti jaz no fundo da minha pasta, embrulhado nos teus recadinhos matinais.
O meu amor por ti morreu embalado ao som das nossas cartas de amor, papéis que já não te interessam.

© [m.m. botelho], ao som de Se Por Acaso (Me Vires Por Aí), de J.P. Simões, do álbum 1970 [2006], aqui ao vivo.



se por acaso me vires, por aí / disfarça, finge não ver, / diz que não pode ser, / diz que eu morri / num acidente qualquer, / conta o quanto quiseste fazer, / exalta a tua versão; / depois suspira e diz que esquecer / é a tua profissão.
e ouve-se ao fundo uma linda canção / de paz e amor.
se eu, por acaso me vires por aí / vamos tomar um café / diz qualquer coisa, telefona, enfim / eu ainda moro na Sé. / encaixotei uns papéis e não sei / se hei-de deitar tudo fora, / tenho uma série de cartas para ti / todas de uma tal de Dora.
e ouve-se ao fundo canções tão banais / de paz e amor.
se por acaso te vir por aí / passo sem sequer te ver. / naturalmente que já te esqueci / e tenho mais que fazer. / quero que saibas que cago no amor / acho que fui sempre assim / espero que encontres tudo o que quiseres / e vás para longe de mim.
e ouve-se ao fundo a velha canção / de paz e amor.
na sexta-feira acho que te vi / à frente da Brasileira / pareceu-me mesmo o teu fato azul / e a pasta em tons de madeira. / o Tó gostava de te conhecer / nunca falei mal de ti / a vida passa e era bom saber / que estás em forma e feliz.
e ouve-se uma triste canção / de paz e amor.

13.7.07

Memória de uma janela que já foi minha

sé velha | coimbra | 2007
fotografia da autoria de rui velindro *


Memória de uma janela que já foi minha, mas já não é. E tive saudades do tempo em que a abria, à noite, para fumar um cigarro a meias com o lampião, enquanto ambos namorávamos a «Cabra». Quem diria, saudades até de uma janela.

© [m.m. botelho]

* Inesperadamente encontrada aqui.

11.7.07

Um ano

Passou já um ano desde que te foste embora. Eu não sabia que uma despedida podia ser tão demorada como esta nossa está a ser. Todos os dias te digo adeus e todos os dias te reencontro. Hoje cruzo-me contigo muito mais do que quando estavas aqui, junto a mim. Tu ainda continuas aqui, junto a mim - basta pôr a mão sobre o peito e depressa te sinto lá dentro -, mas a verdade é que já não estás aqui, junto a mim, como estavas dantes. Agora estás mais, mais aqui e mais junto a mim. Por isso, este nosso adeus tem sido, afinal, uma série de sucessivos «até já». Passo a vida a esbarrar-me contigo em tudo e em todos. Haverias de ver como és tão evidente, tão evidente, nos olhos da avó a todas as horas.
Continuas a fazer-me uma falta terrível, dentro do coração e dentro de casa. Tenho saudades do teu assobio, do barulho das chaves quando chegavas, de te ouvir chamar os nossos nomes. E de que me peças os sapatos para engraxar, que me perguntes as horas.
Nunca haveria de imaginar ser capaz de descobrir a revelação da tua presença de outro modo: na minha memória. Mas fui, aliás, tenho sido. E de ti tenho a melhor memória que se pode ter de alguém.
Ainda assim, não importa os dias, os meses, os anos que passem, hás-de fazer-me sempre uma falta terrível.

© [m.m. botelho]

In memoriam José Francisco Botelho [1930-2006].

10.7.07

Gostar muito do teu nome

Durante longo tempo, sucedeu apenas que eu gostei muito do teu nome e tu do meu. Nunca soubemos quem éramos, nem tão pouco sabemos quem somos. Não tento sequer imaginar como viremos a ser. Não quero. Para já, só este imenso aguado de distância entre a matéria dos nossos dois corpos. Pouco mais resta do que a certeza de que, ao menos, durante longo tempo, sucedeu apenas que eu gostei muito do teu nome. Hoje gosto muito somente da certeza de que, um dia, tu também gostaste muito do meu. Gosto da certeza de que se eu tiver a certeza ninguém ma poderá tirar. Nem mesmo tu.
Por isso sei, tenho a certeza de que, durante longo tempo, sucedeu apenas que eu gostei muito do teu nome e tu do meu. Depois amei-o, cada letra, cada palavra do teu nome. De vez em quando ainda nascem dias em que dou por mim a gostar muito do teu nome. Noutros, não me vem à memória, simplesmente. Dizem que é costume ser assim, à medida que cada vez mais horas vão sendo contadas.
Quem sabe um dia, entre o teu nome e a minha memória, só outro imenso aguado de distância como este que separa a matéria dos nossos dois corpos. E eu, sem me dar conta, gostarei muito de cada gota desse aguado, a coisa única que ainda me aproximará, embora afastando-me, de ti.

© [m.m. botelho]