28.4.06

Azeviche

Gustav Klimt [1862-1918] | As Amigas | 1916/17
Gustav Klimt [1862-1918] | As Amigas | 1916/17
Gustav Klimt Museum | Viena | Áustria

Nunca saía sem se mirar detidamente ao espelho. Penteava mecanicamente os anéis dos cabelos, compunha com os dedos as sobrancelhas grossas, endireitava os anéis nos dedos. Depois passava sorrateiramente a língua pelos lábios cobertos de baton vermelho e piscava o olho a si própria, num delírio de engate consigo mesma, de loucura libidinosa incontida.
Caminhava com passos largos, cravando sonoramente os saltos dos sapatos no soalho, cinzelando as escadas que chiavam sem pudor à sua passagem. Olhava com desdém o desengonçado corrimão e imaginava num ápice todas as mãos que o teriam já percorrido, todos os corpos que contra ele teriam sido já empurrados, quantas mãos o haveriam já agarrado para adiar o tombo ébrio... E dava por si sentindo nojo daquele mainel seboso que nunca tomava banho nem usava shampoo.
Todos os dias desejava que a mulher-a-dias perdesse menos tempo na verborreia matinal com quem ia e vinha e dedicasse alguns minutos a esfregar energicamente os degraus. Também eles exalavam o cheiro pútrido que a gente imunda entranha nas coisas por onde passa. O prédio, gasto de tanto olhar, ora para quem passava na rua, ora para os que lhe esquadrinhavam as vísceras, arrotava de vez em quando essa gente e o hálito era acre e desabrido, entranhando-se rapidamente nas fendas das paredes e colando-se às roupas, à pele e aos cabelos.
Enquanto se apressava a apunhalar com os tacões as escadas, rezava para que aquele bafo não sobreviesse ao seu dispendioso perfume floral. E repetia a si mesma que não voltaria àquele covil dissoluto. Mas sempre que assim conjurava, sentia-se avelhentar mais depressa, impressionava-se com as rugas que pressentia sulcarem-lhe o rosto e apressava-se a repuxar a alva epiderme com ambas as mãos.
Quando chegava finalmente ao hall, verificava se ainda segurava a chave do carro entre os dedos esguios, ajeitava a saia e o casaco comprido e batia com força com os calcanhares no chão, para se certificar de que nenhuma réstia de podridão se mantinha agarrada às solas dos seus luzidios sapatos azeviche. Abria, então, silenciosamente, o umbral que a separava da concupiscência e a devolvia ao mundo dos negócios. No leito deixara o preço da lascívia, ao lado do corpo ainda cálido e juvenil de Rute.

© [m.m. botelho], ao som de São Paulo 451, dos Belle Chase Hotel, do álbum Le Toilette des Étoiles.

Naquela praça suja, com merda de pombo patrulhada pelo sexo: ele chega às quatro, polindo o sapato, para vender o seu amplexo. E os homens passam, notam seu bigode, mas na coxa se estravasam. Veio sua amiga, a loira José, convidando p'ro café. E ao segundo brandy, já José se expande, esboroando o seu batom!
«Amanhã não estaremos aqui, veja se bebe um pouco e sorri, tira esses olhos do chão. O futuro é lindo, eu já vi, o avião vai directo p'ra lá, vamos embora dessa aflição!»
Emanuel Morena, toma os seus calmantes, por causa dos joanetes; e disse cansado que estava assustado, pois nunca tinha voado. «E se há um acidente, e se o passaporte... será que não sentes o medo da morte? Me dá um cigarro, me dói a cabeça, p'ra quê tanta pressa da depilação?»
No dia seguinte, no canto da praça, quem passou podia ver: duas prostitutas, tão deselegantes, acenando p'ra você.

25.4.06

Por dentro

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | torso feminino | 2006
desenho a tinta da china windsor & newton e aparo sobre papel

Geraste-me no teu ventre de orquídeas e selaste os meus lábios com saliva cor de cobre. Então, soube-me por dentro de ti.

© [m.m. botelho], ao som de Romance n.º 1, de e por Carlos Paredes [guitarra portuguesa] e Fernando Alvim [guitarra clássica], do álbum Guitarra Portuguesa.

21.4.06

Escrevo-te à noite.

Vincent van Gogh [1853-1890] | Noite Estrelada Sobre o Reno | 1888
Vincent van Gogh [1853-1890] | Noite Estrelada Sobre o Reno | 1888
Musée d'Orsay | Paris | França

Escrevo-te à noite.
Quando as estrelas emergem da escuridão preto-azulada, agarro a sua luz entre dois dedos voluptuosos e corro a aprisioná-la entre as linhas horizontais do meu caderno.
Às vezes, sem querer, deixo verter algum desse brilho por sobre a mesa. Ainda tento sustê-lo entre dois lápis de cor, mas ele prossegue revoltoso, incontido, até gotejar orla fora e se libertar na fímbria.
Ao cair no chão escorre para dentro do soalho rangente. Corro então a abeirar o ouvido às tábuas, na tentativa de ouvir o que deixei de ver. Mas o que ouço é nada.
A luz das estrelas não tem sonoridade quando se perde debaixo do solo e, contudo, brada ao plasmar-se em volteios de caneta nas páginas cândidas do meu caderno. Ouço-a clamar por ti, em gritos que se despregam das letras desenhadas e que são o teu nome, o teu nome em riste, solitário. O teu nome é um sabre que me corta e me faz sangrar num lustro...
Não te escrevo só à noite. Escrevo-te com a própria negridão da noite.

© [m.m. botelho]

20.4.06

Sem título

© [m.m. botelho]
© [m.m. botelho] | fotografia | serra do gerês | dezembro de 2005


Todos os dias parto para toda a parte.
Da minha para a tua pele nácar,
despojada
e crepuscular.
Tem aroma de cravo-da-índia,
a tua pele,
e dela é a essência que corre
liberta entre os ramos das árvores
e no vento glacial do Norte.
Cheiras a chuva
ao fim das manhãs,
quando tens os braços
expostos pela ausência
do lençol que te descobre
e me amortalha.
Viajo pelos recantos de ti
nos gestos espiralados
dos meus dedos
licenciosos.
Dou por mim imóvel,
submersa
no aguado dos teus olhos
quando me sentes erguer
e rumar
para longe.
E mesmo não saindo daqui,
sei que são meus
aqueles sapatos
sempre empoeirados
que vão trilhando os caminhos
da extravagância
imensurável
da Utopia.
Todos os dias chego a lado nenhum.

© [m.m. botelho]

7.4.06

Ânsia

© [m.m. botelho]
© m.m. botelho | fotografia | abril de 2006


Ter-te... para descobrir nos teus lábios um sabor que seja saber.


© [m.m. botelho]

5.4.06

«Et cognoscetis veritatem, et veritas liberabit vos.»

Leonardo da Vinci (1452-1519) - desenho para o estudo anatómico do crânio (1510)
Leonardo da Vinci [1452-1519] | desenho para o estudo anatómico do crânio | 1510
Royal Collection | Royal Library | Palácio de Windsor | Londres | Reino Unido

Então, Jesus pôs-se a dizer aos judeus que n'Ele tinham acreditado: «Se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres.»
Replicaram-lhe: «Nós somos descendentes de Abraão e nunca fomos escravos de ninguém! Como é que Tu dizes: 'Sereis livres'?».
Jesus respondeu-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: todo aquele que comete o pecado é servo do pecado, e o servo não fica na família para sempre; o filho é que fica para sempre. Pois bem, se o Filho vos libertar, sereis realmente livres.


Evangelho Segundo São João, 8, 31-36


No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: «faz isto, evita aquilo». [...] A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem [...]. Não raro, porém, acontece que a consciência erra, por ignorância invencível, sem por isso perder a própria dignidade. Outro tanto não se pode dizer quando o homem se descuida de procurar a verdade e o bem e quando a consciência se vai progressivamente cegando [...].
Mas é só na liberdade que o homem se pode converter ao bem. Os homens de hoje apreciam grandemente e procuram com ardor esta liberdade; e com toda a razão. Muitas vezes, porém, fomentam-na dum modo condenável, como se ela consistisse na licença de fazer seja o que for, mesmo o mal, contanto que agrade. A liberdade verdadeira é um sinal privilegiado da imagem divina no homem. [...] Exige, portanto, a dignidade do homem que ele proceda segundo a própria consciência e por livre adesão, ou seja movido e induzido pessoalmente desde dentro e não levado por cegos impulsos interiores ou por mera coacção externa. O homem atinge esta dignidade quando, libertando-se da escravidão das paixões, tende para o fim pela livre escolha do bem e procura a sério e com diligente iniciativa os meios convenientes. [...]

Documentos do Concílio Vaticano II - Constituição Gaudium et Spes [Pontos 16. Dignidade da consciência moral e 17. Grandeza da liberdade]

4.4.06

Antologia de letras e luz

Michelangelo Buonarroti (1475-1564) | estudo para «O Juízo Final» (Capela Sistina) | figura de S. Lourenço | desenho a giz negro | c. 1545-6
Michelangelo Buonarroti (1475-1564) | estudo para «O Juízo Final» (Capela Sistina)
figura de S. Lourenço | desenho a giz negro | c. 1545-6
The British Museum | Londres | Reino Unido

Olhei ainda há pouco para o teu retrato. Ficaste bem, naquele retrato. A mão direita, lânguida, cobre-te parcialmente o rosto cuja inclinação obriga os anéis dos cabelos a libertarem-se uns dos outros e irem arrimar-se às unhas. As tuas unhas são as pestanas dos dedos: tens os olhos nas polpas desses dedos que tantas e tantas vezes passearam pelas páginas do livro que deixaste ainda aberto sobre a secretária...
Deixaste um livro aberto sobre a secretária. A leitura fica-te a meio, esquartejada na lombada grossa que agora repousa inerte sobre a madeira tíbia da mesa. Um destes dias, entra a claridade pela janela e deixa-se pousar naquelas letras até as secar e já ninguém as conseguir ler. A luz do sol tem o condão de haurir a tinta dos livros, dos papéis e dos retratos, em pequenos haustos... Vem sobre ela, depois, o Tempo e devora-a, espalhando o crepúsculo. Com a luz somos também nós que decaímos, empobrecemos.
O Tempo é uma gigantesca antologia de letras e luz que nos verga todos os dias e se dissolve em estilhaços de um mosaico que só daqui a muitos anos seremos capazes de decifrar. Então, possuiremos a sabedoria indispensável para conhecer se somos nós que consumimos o Tempo, se somos antes consumidos por ele.
O gesto largo e perene do Tempo é o esculpir dos nossos dias, que vão tomando feições que nos são estranhas porque dissemelhantes das que se fixam nos retratos. Na inevitável hora, o seu cinzel quebrar-nos-á o espelho da alma e deixaremos de ver com os olhos. E fecharemos, por fim, todos os livros que ficaram esquecidos em cima de todas as secretárias.

© [m.m. botelho], ao som de Actus Tragicus, cantata Gottes Zeit ist die allerbeste Zeit, BWV 106, de Johann Sebastian Bach (1685-1750).

Coro
Gottes Zeit ist die allerbeste Zeit: in ihm leben, weben, und sind wir, solange er will; in ihm sterben wir zur rechten Zeit, wenn er will.
O Tempo de Deus é o melhor de todos. Nele vivemos, nos movemos e existimos, tal como a Ele lhe apraz. Nele morremos na hora fixada, quando ele quer. (Actos dos Apóstolos, 17, 28)
Arioso (tenor)
Ach, Herr, lehre uns bedenken, daß wir sterben müssen, auf daß wir klug werden.
Ó Senhor, ensina-nos a contar os nossos dias para que sejamos prudentes. (Salmos, 90,12)
Ária (baixo)
Bestelle dein Haus; denn du wirst sterben und nicht lebendig bleiben.
Dá ordens em tua casa, porque morrerás e não viverás mais. (Isaías I, 38,1)
Coro
Es ist der alte Bund: Mensch, du mußt sterben!
És a antiga aliança: Homem, deves morrer! (Eclesiastes, 14,18)
Arioso (soprano)
Ja, komm, Herr Jesu, komm!
Vem, Senhor Jesus! (Apocalipse, 22,20)

1.4.06

Abril será sempre o mês mais cruel

Jacob Isaacksz van Ruisdael [1628/29–1682] | Paisagem com vila ao longe | c. 1670
Jacob Isaacksz van Ruisdael [1628/29–1682] | Paisagem com vila ao longe | c. 1670
The Metropolitan Museum of Art | Nova Iorque | Estados Unidos da América

April is the cruellest month, breeding
Lilacs out of the dead land, mixing
Memory and desire, stirring
Dull roots with spring rain.
Winter kept us warm, covering
Earth in forgetful snow, feeding
A little life with dried tubers.
Summer surprised us, coming over the Starnbergersee
With a shower of rain; we stopped in the colonnade,
And went on in sunlight, into the Hofgarten,
And drank coffee, and talked for an hour.
Bin gar keine Russin, stamm' aus Litauen, echt deutsch.
And when we were children, staying at the archduke's,
My cousin's, he took me out on a sled,
And I was frightened. He said, Marie,
Marie, hold on tight. And down we went.
In the mountains, there you feel free.
I read, much of the night, and go south in the winter.



Abril é o mês mais cruel, gera
Lilases da terra morta, mistura
A memória e o desejo, agita
Raízes dormentes com chuva da Primavera.
O Inverno aconchegou-nos, cobriu
A terra com o esquecimento da neve, alimentou
Uma pequena vida com bolbos ressequidos.
O Verão apanhou-nos de surpresa, veio por sobre o Starnbergersee
Com um aguaceiro súbito; parámos na colunata,
E seguimos, já com sol, para o Hofgarten,
E tomámos café e ficámos uma hora a conversar.
Bin gar keine Russin, stamm' aus Litauen, echt deutsch.
E quando éramos pequenos, e ficámos em casa do meu primo,
O arquiduque, ele levou-me a andar de trenó
E eu apanhei um susto. Disse, Marie,
Marie, segura-te bem. E fomos por ali abaixo.
Nas montanhas, aí sim sentimo-nos livres.
Leio, quase toda a noite, e vou para o sul no Inverno.



T.S. Eliot (1888–1965), início de The Burial Of The Dead [O Enterro dos Mortos], parte I do poema The Wasted Land [A Terra Devastada], in Quatro Quartetos, tradução de Gualter Cunha, Relógio d'Água, 2004