Boa parte destas histórias de terror poderiam ser contados pelos refugiados, invisibilizados, mas numerosos como nunca antes no planeta. Segundo dados dados da Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), foram 79,5 milhões de pessoas deslocadas forçosamente de suas casas em 2019, o equivalente a 1% da população mundial. Um dos países que está na lista entre os que mais provocam deslocamentos de pessoas, tanto no plano interno quanto no externo, é também o mais novo país do mundo, o Sudão do Sul.
Após conquistar a independência em 2011, dois anos depois mergulhou em uma violenta guerra civil, e segundo a ONU são 2,3 milhões de sul-sudaneses vivendo em outros países, principalmente vizinhos, e 1,9 milhão que tiveram que sair de suas casas mas permanecem dentro das fronteiras. O filme O que ficou para trás conta justamente a história de dois refugiados que saem do país em busca da sobrevivência, indo parar na Inglaterra.
No país europeu, após passarem um tempo em um centro de detenção depois de uma travessia marítima que vitimou diversas pessoas, entre elas sua filha, conseguem algo raro para poucos migrantes nesta situação. São aceitos em um programa governamental que condiciona sua permanência no país a uma espécie de "manual de boa conduta", recebendo auxílio por parte do governo e uma casa para morar.
Após chegarem na casa, em um bairro operário no qual tomam contato com o preconceito quase de forma instantânea, o comportamento do casal passa a ser distinto. Enquanto Bol busca se adaptar e abandonar inclusive hábitos da sua cultura, Rial se mostra incomodada e não aceita, demonstrando isso a seu parceiro. Além disso, aparições vinculadas à história dos dois começam a surgir na casa, aumentando o desconforto e o estranhamento.
Remi Weeks e a assimilação
A casa de cada um costuma ser o refúgio e o lugar seguro. E mudanças exigem sempre capacidade e vontade de adaptação. Não à toa que lares mal-assombrados são um grande filão do cinema de horror, já que se relacionam a medos e insegurança comuns a quase todos. Mas, no caso, de um refugiado, que perde o direito não só ao lar como de seu próprio chão, as assombrações tomam outro vulto.
O diretor do filme Remi Weeks, que também é autor do roteiro, falou em entrevista que o longa questiona justamente o quanto uma pessoa pode abrir mão para se adaptar a uma nova realidade ou buscar um recomeço. "Tendo crescido em Londres como uma pessoa negra, uma conversa que tivemos em nossa comunidade foi sobre assimilação, e quanto de você você desiste ou deixa de ceder. Esse é o ponto crucial da história", disse ele.
Esse conflito entre aquilo que os personagens, na verdade, não deixaram para trás, e sua nova realidade faz da casa um terceiro personagem que interage com eles durante toda a história. Os fantasmas que ali aparecem simbolizam toda a vivência que é impossível de ser esquecida pelos protagonistas, incluindo uma virada na trama que torna ainda mais palpável o tamanho de suas tragédias.
Entre a perturbação da consciência de um Raskolnikóv de Crime e Castigo, o próprio apego às origens e um outro horror diante do desconhecido, Weeks consegue manter a tensão em um terror que incomoda o espectador o tempo todo, mas mantém sua atenção e é capaz de despertar empatia mesmo perante ações pra lá de questionáveis. No horror que é produzido e mantido pela indiferença alheia, ninguém escapa.