Um texto que eu costumo recomendar em discussões sobre o fascismo (e sobretudo sobre a sua base social de apoio) é "Fascism - Left, Right and Center" um capítulo do livro "Political Man", de Seymour Martin Lipset (normalmente dizendo "vão a este link, procurem por
The return of De Gaulle to power in France in 1958 e leiam a partir daí").
Assim, decidi copiar esse capítulo e aproveitei para pôr uma letra maiorzinha (eu ia escrever "isto é provavelmente ilegal, no entanto o ficheiro txt na net com o livro todo já deve ser ilegal de qualquer maneira", mas afinal já está "Out of copyright" - possivelmente só por isso é que está o livro todo online), para ser mais fácil da próxima vez que quiser "linká-lo" (é verdade que podia simplesmente linkar https://ia600503.us.archive.org/25/items/politicalmansoci00inlips/politicalmansoci00inlips.pdf#page=135, mas só percebi que também havia uma versão PDF já ia a meio do post, e de qualquer maneira é um PDF que demora a carregar).
Mas antes, algumas observações.
O autor escreve (em 1960...) que há três tipos de movimentos que por vezes são chamados (nomeadamente pelos seus opositores) de "fascistas":
- Os "de direita" têm uma base social similar aos da direita tradicional - as classes altas, as pessoas mais religiosas, mais idosas, e também mais as mulheres que os homens. Quando dão origem a ditaduras, limitam-se a reprimir a oposição aberta, sem exigirem adesão entusiástica. Exemplos; Dolfuss na Áustria, Franco em Espanha, Horthy na Hungria, Salazar em Portugal, os monárquicos italianos, os gaullistas em França.
- Os "de centro" têm uma base social similar aos do liberalismo tradicional - os pequenos empresários e trabalhadores por conta própria, normalmente anticlericais. O discurso é simultaneamente anti-marxista e anti-establishment. Exemplos - o nacional-socialismo alemão e austríaco, o poujadismo francês, a Falange espanhola, o McCarthyismo nos EUA, o Movimento Social Italiano (já o fascismo italiano original, ele considera-o uma mistura de "centro" e "direita", pelo menos até ao rei ter demitido Mussolini).
- Os "de esquerda" têm, como seria de esperar, uma base social similar à da esquerda tradicional - os assalariados com baixos rendimentos. Normalmente ocorrem em países subdesenvolvidos, com um líder carismático, subido ao poder via golpe militar, que combina políticas sociais a favor dos trabalhadores com nacionalismo e glorificação do exército e um discurso a dizer que as oligarquias e o imperialismo são os responsáveis pelo atraso do país. Exemplos - Perón na Argentina, Vargas no Brasil.
Vejo logo uma dificuldade em adaptar esse esquema ao mundo atual - não estou a ver onde encaixar a Frente Nacional francesa, o Trumpismo nos EUA ou grande parte dos partidos que por essa Europa fora são chamados de extrema-direita; ao que tudo indica, a sua base de apoio já não é tanto a classe média, mas largamente a classe operária (bem, na "2ª volta", Trump teve o apoio do eleitorado tradicional republicano, mas nas primárias era sobretudo na classe operária que tinha o seu apoio), sendo de esperar que muitos dos seus eleitores sejam filhos ou netos de votantes Comunistas ou Democratas (é frequente dizer-se que a maior parte dos eleitores da Frente Nacional vêm do Partido Comunista; mas atendendo a que a FN tem mais votos que o PC desde 1985, os comunistas que passaram para a FN já devem ter morrido muitos). Mas todo o seu estilo e temas fazem lembrar muito mais o chamado "fascismo de centro" do que o "de esquerda" - nos dias de hoje, um exemplo quase perfeito ao milímetro do "fascismo de esquerda" seria a Venezuela de Chavez/Maduro.
Aliás, suspeito que a tal classe média de pequenos empresários e trabalhadores por conta própria já não tem grande relevância política (e, sobretudo, demográfica) no mundo "ocidental" - se os partidos ditos de extrema-direita já não têm a sua base nos merceeiros de esquina e taxistas, creio que o mesmo se passa com os partidos liberais. Posso estar a dizer um enorme disparate, mas quase que apostava que, hoje em dia, a base de apoio dos partidos liberais clássicos (estilo FDP alemão) é sobretudo a classe alta (ou no mínimo média-alta) "progressista nos costumes" (versão moderna do que ainda em 1960 se chamaria "anticlerical"), e que dos liberais-sociais (estilo LibDems britânicos) será uma classe média "progressistas nos costumes" mas composta mais por assalariados bem pagos (quadros técnicos e intermédios, empregados de escritório qualificados, etc.) do que por micro-empresários. Aliás, no caso dos liberais clássicos, nem me admirava que hoje em dia os seus apoiantes e eleitores sejam, mesmo controlando para a religiosidade, mais abastados economicamente que os dos conservadores ou democratas-cristãos.
Diga-se que há um região do onde o tal radicalismo dos pequenos empresários parece estar bem vivo - o mundo muçulmano, onde vários estudos indicam que os pequenos comerciantes e categorias similares são o grupo social que mais apoia os movimentos islamitas, o que até os tornaria bastante parecidos com o fascismo tradicional (e talvez dando razão ao tal conceito de "islamofascismo"?), se não fosse pela parte de os apoiantes dos tal "fascismo de centro" até costumarem ser pouco religiosos - mas talvez seja difícil transpor conceitos desenvolvidos no mundo ocidental para o mundo muçulmano; sobretudo, nos países muçulmanos o islamismo não me parece ter o papel conservador, de pilar do establishment e das elites respeitáveis, que o catolicismo tem (ou pelo menos tinha) nos países católicos. Será o resultado do islamismo não ter uma "Igreja" centralizada e hierarquizada (o que aliás também poderia, aplicado às versões mais radicais do protestantismo, explicar algumas peculiaridades do conservadorismo norte-americano)? Mas o xiismo tem quase uma "Igreja" e mesmo assim Khomeini foi o aliados dos comerciantes do bazar contra o Xá e a sua corte. Ou será o resultado de nos países muçulmanos as elites, ou serem laicas (como nos países "progressistas" estilo Síria), ou serem, pelo menos em termos de política externa, pró-ocidentais (como nos países "conservadores" estilo Arábia Saudita), o que leva, em ambos os casos, a que os pregadores mais extremistas não se sintam muito bem com o status quo?
E, já agora (já que estamos por lá), será que o Egito de Nasser, a Líbia de Kadafy e a Síria ou o Iraque baathistas (quase tudo regimes surgidos ou consolidados depois do artigo ter sido escrito) poderão ser vistos como versões do tal "fascismo de esquerda"? O estilo é praticamente o mesmo - um nacionalismo socializante e militarista, com uma retórica anti-imperialismo e anti-oligarquias (ainda que Jean Touchard, na sua obra "História das Ideais Políticas", refira que "a ideologia nasseriana é muito menos rica em declarações anti-capitalistas que a peronista"); mas pelo que sei, a base de apoio de esses regimes é/era sobretudo na classe média, não entre o operariado (aliás, penso que pouca ou nenhum indústria esses países tinham quando da implantação dos regimes referidos) - talvez o regime de Atassi e Salah Jadid na Síria (1966-1970) tivesse apoio "proletário", mas nem disso estou certo.
Outra coisa - o autor considera que tanto o liberalismo como o fascismo são/foram movimentos da classe média em oposição às grandes organizações; ocorre-me se outro exemplo (embora aí já não a nível dos pequenos empresários e trabalhadores por conta própria, mas sobretudo da classe média assalariada - ou pelo menos dos seus filhos) não seria a esquerda radical dos anos 60/70, e os seus derivados atuais (e aqui reconheço que isto andará perto do Álvaro Cunhal, que falava de "radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista", ou mesmo do Lenine em 1920, que dizia que a classe média arruinada era a base do "esquerdismo" e da "posição ultra-revolucionária"). Não que essas correntes defendessem a pequena propriedade e a pequena empresa (pelo contrário, até diria que por norma eram bastante críticos da politica comunista ortodoxa de alianças "anti-monopolistas" com os "pequenos e médios comerciantes/agricultores/industriais"; embora por outro lado, hoje em dia, se calhar é nessa área que há mais entusiasmo por tudo - seja cinema, fanzines ou cervejas - que seja "independente", "artesanal" ou "caseiro"), mas à sua maneira defendiam algo que combinasse o coletivismo económico com a iniciativa e a criatividade dos trabalhadores (acusando tanto o capitalismo ocidental como o comunismo soviético de mecanizar e "alienar" os trabalhadores), estilo alguma versão de propriedade coletiva gerida por assembleias plenárias em que todos participem e deiem ideias - talvez a reação de estudantes universitários que viam que os "empregos para licenciados" cada vez tinham menos autonomia?
A respeito de Lipset ter posto o McCarthysmo na mesma categoria que o nazismo - não sei se não haverá aqui uma componente de bias ou quase de hit job: por volta de 1960, atacar McCarthy e a "nova direita radical" era talvez o desporto favorito dos académicos "liberais" norte-americanos, frequentemente à mistura com acusações que ele e os seus apoiantes nem sequer seriam verdadeiros conservadores, mas, à sua maneira, rebeldes populistas contra o establishment (os mesmo académicos irão se tornar neoconservadores, uns dez anos depois, em reação a outra revolta contra o establishment - a dos seus alunos esquerdistas anti-guerra do Vietname), o que encaixa perfeitamente na análise que lhe é feita no artigo.
Uma nota acerca do voto por sexos, com o autor a dizer que os movimentos de direita têm normalmente mais apoio das mulheres do que dos homens - creio que nos últimos 50 anos isso teve uma quase total reviravolta: nos EUA, se alguma coisa, há uma total inversão, com os Democratas a ganharem esmagadoramente aos Republicanos entre o eleitorado feminino; na Europa (ou pelo menos no Reino Unido) li algures que a direita continua a ter mais votos entre as mulheres, mas que esse efeito desaparecerá quando se controla para a idade (isto, o maior direitismo das mulheres será apenas uma ilusão estatística derivada do eleitorado feminino ter mais pessoas idosas).
Agora uma nota pessoal sobre este artigo - há uns anos, na sequência de uns posts meus sobre o fascismo, o leitor "c." (que penso ser o mesmo que por vezes assina "HO"), depois de criticar bastante algo que eu tinha escrito, escreveu "No entanto, a sua grelha faz algum sentido (embora tema que por mero acaso). Aconselho leitura de Lipset sobre o assunto. Também ele analisou os movimentos radicais nessa perspectiva (de forma mais cuidada, preparada e elaborada). Conclui que algum fascismo é um radicalismo do conservadorismo de direita (por exemplo, salazar em portugal), e o nazismo um radicalismo de centro. Os argumentos de autoridade são abomináveis, mas por favor, pare de fazer estes posts até o ler, sim?" Na verdade, não foi totalmente por acaso - embora eu não tivesse lido o artigo de Lipset na altura, já tinha lido alguma coisa do Jaime Nogueira Pinto e do Nuno Rogeiro (os mais parecido que se encontra em Portugal com intelectuais fascistas?) sobre o artigo. Além disso, talvez possa ter havido outro fator - nos meus tempos de simpatizante do PSR, lí várias coisas de Trotsky e Mandel sobre o fascismo (nomeadamente a sua teoria que o fascismo começa como uma revolta dos pequenos empresários, que depois é cooptada pelo grande capital para atacar a classe operária, que contrasta com a teoria dos comunistas ortodoxos, de que o fascismo será simplesmente a "ditadura aberta da burguesia"); penso que Lipset nunca foi trotskista e que também nunca alinhou totalmente com os neoconservadores, mas ao longo da sua vida andou sempre mais ou menos próximo daqueles que fizeram o caminho trotskismo-schachtmanismo-"liberalism"-neoconservadorismo (como Lipset, muitos eram intelectuais judeus nascidos em Nova Iorque nos anos 20, filhos de emigrantes da Europa de leste), pelo que não me admirava que também tivesse havido alguma influência (sobretudo da parte do fascismo como um movimento dos pequenos empresários).
Bem, após esta introdução, o artigo: