sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Microfábula coreana

Havia, certa vez, uma cabeleireira em Seul. Chamemo-lhe D. Luísa Kim – chamemo-lhe isto e não outra coisa por duas razões: à uma, porque a cabeleireira da minha mãe, durante longos anos, se chamava D. Luísa (se bem que não fosse a própria D. Luísa a justificar a fama do salão, mas sim uma jovem roliça e de boas cores chamada Cristina que, dizia-se, nascera já imbuída da mais solene e difícil mestria na nobre arte do secador de mão); à outra porque há mais gente de apelido Kim na Coreia do que Santos no Martiriologium.

Aos 62 anos, D. Luísa Kim era uma empresária individual de sucesso moderado. O seu salão ocupava o primeiro andar de um edifício do seu tempo: um espelho, em tijolo, cimento e vidro, de toda uma geração; pequeno; atarracado, mesmo; com um certo ar de ter sido mal nutrido na infância e de ter passado por muito; ataviado de alguma bijuteria moderna em remendos que potenciavam, mais do que escondiam, as marcas deixadas pelo tempo. Um edifício abnegado, ele mesmo um sacrifício em favor de algo em que se acreditava como valor, então: a ocupação pragmática e pobre de uma parcela de espaço para mais um berço da classe média, fronteiro ao mercado da electrónica na zona de Yongsan. Um restaurante de galinha frita e cerveja, no rés-do-chão, e D. Luísa Kim ao cimo de uma escada mal lançada. Porta de vidro automática, um secador de pé para cada uma das duas cadeiras, plantas tísicas em vasos de plástico, que eram já um caso de estudo sobre a não bio-degradabilidade do material, decoravam as três janelas que pontuavam a fachada – termo que se devia mais à orientação que a qualquer cuidado extra com o aspecto da dita em relação aos outros três lados do edifício. Um chão de linóleo azul, enxaguado muitas e muitas vezes, a limpeza deixando ver melhor as marcas da sua maioridade. Muita luz branca, verdadeiro dilúvio da dita, sinal último do espírito do lugar: modesto, sim, mas não humilde. Que o que ali se operava não era qualquer manobra de encobrimento mas a assunção plena, no espaço e nas clientes que o demandavam, de que certas coisas não têm reparo. A idade.

Como é que tudo começara? Como tudo o mais, naquele tempo: para evitar algo pior. Não se lembrava de alguém que, na sua geração, tivesse podido escolher. Depois da guerra e da pobreza, a única aspiração era por algo que tivesse qualquer sabor de normalidade. Talvez tivesse sido esse o segredo do milagre económico; gerações inteiras que de bom grado prescindiram do presente, que só desejaram ter o que fazer, ter com que se ocupar todas as horas do dia, para que o sal não fosse chegando às feridas. A sua mestra, Grace Park, havia aprendido o ofício com as mulheres dos militares americanos. E o ofício era simples: permanentes e mises de rolos. Ponto final. Eram esses os dois caminhos da normalidade e mais nenhum. Quarenta e seis anos de rolos e papel de alumínio, muito mais engenho que qualquer sombra de arte, fidelizando uma clientela perfeitamente alheada de qualquer desejo de beleza, que só queria ser como os outros e sentir que agora estava tudo bem.

Casara, como todas. Homem taciturno, de vida digna, vendendo material eléctrico. Afogado, por fim, num poço de soju e de silêncio. Uma década de viuvez e um filho de 36 anos ainda em casa. Lento e inseguro, Samuel Kim era já da geração que tinha à sua frente escolhas demais. A transição: atrás de si, os que se apagaram no trabalho; à sua frente, os que davam uns tíbios primeiros passos no caminho estranho de tentar assumir alguma individualidade. E ele no muro.

Agora que tinha mais tempo para isso, D. Luísa Kim dava por si alimentando um só desgosto: o de não ter casado com um americano. Mesmo se da soldadesca, conquanto não fosse preto. E havia tantos, no seu tempo. De repente, e havia sido de repente, reparara como o seu filho era ainda uma prova física do passado que ela queria ver enterrado de uma vez por todas. De repente, o corpo do seu filho ofendia-a pelo excesso de normalidade, daquela normalidade antiga em que tudo se anulara. Independentemente do que ele viesse a fazer com a sua vida, estava ali a sua protuberante cabeça coreana, o seu largo e baixo pescoço coreano, as suas coxas coreanas grossas como troncos. E hoje viam-se tantos estrangeiros na rua; cabeças pequeninas, pernas delgadas, pescoço alto... Os próprios coreanos mais novos pareciam ser já de outra qualidade, qualquer coisa mais de laboratório, como a batata holandesa. Mas o seu filho... ali estava o passado, em grossas vigas, mesmo à frente dos seus olhos. Tudo mudara tanto, no seu tempo, e as pessoas não se haviam importado porque estavam a produzir essa mudança – havia mises e permanentes, mais destas que das outras porque duravam mais e ficavam mais em conta; fazia-se assim porque era assim que se fazia. Só que agora, agora que parecia ser tempo de começar a pensar em pousar o secador, parecia também ser uma altura em que, como dizê-lo... as pessoas pensavam em si, ainda que nem sempre por si. Na forma do seu filho, D. Luísa Kim via a materialização de uma coisa que parecia não mais ter lugar nos dias de hoje: o trabalhador, um corpo nascido já como uma função subordinada.

Sofia Lee, a sua assistente no salão desde há dois anos, iria ser sua nora, mais mês menos mês. A moça e o seu filho ainda não se conheciam – nem isso interessava. Já era altura, para um e para outro. Já falara com a mãe dela e as contas haviam ficado acertadas. Sofia era uma rapariga das de agora; cabelo liso em cima de uma cabeça que pensava em roupas e cosméticos. Tinha jeito para as unhas e não se saía mal com o secador. Fora isso, tinha duas qualidades fundamentais: era baça e maleável. Não era feia. Nem bonita. Uma ausência de qualquer brilho próprio, de densidade e, por isso mesmo, adequada para o seu filho. Não se desmereciam, um e outro. E já era altura. A sua esperança era a de lavar, nas águas daquela união, qualquer traço de passado das suas mãos. O capítulo final dos deveres e obrigações. Depois disso, algum descanso e talvez a cirurgia para as varizes.

Na pequena cozinha nas traseiras do salão, D. Luísa Kim tirou a caixa do kimchi do armário onde tudo se guardava: arroz, café instantâneo, tubos de tintas para o cabelo meio usados, até espuma de barbear para uma cliente que tinha certos problemas. Duvidava que a cachopa soubesse fazer kimchi, pensou, mas teria tempo para aprender. Tirou os pauzinhos metálicos da gaveta e sentiu um ligeiro arrepio aos pensar nos netos que aqueles dois lhe dariam. Olhou para o salão, deserto, e para o prédio novo que agora ficava mesmo em frente das suas janelas. E não haveria maneira de terraplanar o passado por inteiro?...

Nisto, vzzzzzzzzzzzzzzzzzzt!

Moral 1: o teor de amoníaco das tintas para cabelo é altamente tóxico quando ingerido

Moral 2: que a classe média descanse em paz

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Product placement - São Valentim




- Eu seja ceguinha... – disse ela, balouçando a chinela de felpo rosa no seu delicado pé esquerdo.
- Ceguinha era a Astérias, a doudivanas que desencaminhou o São valentim. – disse ele, entretido no hábito de fazer um nó no preservativo usado, não fosse aquilo verter.
Ela olhava, ausente, pela janela do quarto que cheirava a mosto, carapaus alimados, Brise de alfazema e à flor do castanheiro. A mão direita pesava sobre o seio nu como quem não teme ainda a próxima mamografia e os seus dedos brincavam distraidamente com o colar “Canções para Senhoras”, à venda na loja online da Chifre por apenas 6 euros.
- Lá vens tu, – despertou ela repentinamente – lá vens tu com essa merdice do conhecimento de pacotilha. Fosses tu como o Diego Armés a fazer canções para toda a gente com e sem literacia...
- Já ouviste o Canções para Senhoras? – perguntou ele, brincando com o preservativo como se fosse um iô-iô. Ou um pega-monstro.
- O quê? Tu também já ouviste? Muito me espanta...
- Até te comprei o CD por apenas 10 euros na loja online da Chifre! Uma espécie de pré-presente de São Valentim. – disse ele, impante de orgulho e disfarçando a porcaria que um buraco no latex havia feito à sua volta.
- Pois... parece que entretanto o teu corpo mudou... não sabes estar quieto com essa merda e pô-lo de uma vez no caixote do lixo?
- Olha. E se eu te levasse amanhã a jantar ao Burgau?
- Não sejas parvo, tenho que trabalhar... – a chinela tombou-lhe do pé quando se levantou para vestir o robe-de-chambre rosa decorado com os pins Canção Sentimental, Entre Dentes, A Cadeira, Canções para Senhoras e Senhora, comprados cada um por apenas 3 euros na loja online da Chifre.
- Dizes isso, assim... a medo e entre dentes.
- Querias o quê? Uma rima excepcional? Tenho que trabalhar, o que é que queres que te diga?
- Já vi... estás com a telha, não vale a pena falar nisso, nem perco tempo a tentar nas horas más.
- Que gracinha que o moço tem... Anda, vai tomar duche. Estou para ver como é que vais tirar essa merda dos tapetes de carpélio.
- Não lhe chames merda. Podiam ser os nossos filhos...
- A sério...
- És um querido. – ela olhou-se ao espelho, ele seguiu para o chuveiro. – Se conseguir sair mais cedo, amanhã, podemos ir ao frango da guia...