Compilação de textos e comentários: Amauri Ferreira
“Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o que chamo de interiorização do homem. [...] Todo o mundo interior [...] foi se expandindo e se extendendo, adquirindo profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido em sua descarga para fora. Aqueles terríveis bastiões com que a organização do Estado se protegia dos velhos instintos de liberdade – os castigos, sobretudo, estão entre esses bastiões – fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre e errante se voltassem para trás, contra o homem mesmo. A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência. [...] esse animal que querem ‘amansar’, que se fere nas barras da própria jaula, este ser carente [...] esse tolo, esse prisioneiro presa da ânsia e do desespero tornou-se o inventor da ‘má consciência’. Com ela, porém foi introduzida a maior e mais sinistra doença, da qual até hoje não se curou a humanidade, o sofrimento do homem com o homem, consigo: como resultado de uma violenta separação do seu passado animal, como que um salto e uma queda em novas situações e condições de existência, resultado de uma declaração de guerra aos velhos instintos nos quais até então se baseava sua força, seu prazer e o temor que inspirava.” Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 16.
[Interiorização das forças ativas: impedidas de serem vazadas, as forças ativas tornam-se reativas, voltando-se para dentro do próprio homem, multiplicando as dores. Esse primeiro aspecto da má consciência é uma operação efetuada através dos castigos impostos pelo Estado – castigos realizados pela vingança, pelo ódio. Através dos castigos produziu-se uma memória: a da obrigação pessoal. Somente assim o homem tornou-se domesticado, culminando no homem civilizado moderno. Diagnóstico de Nietzsche: o homem moderno degenera porque ainda não se curou da má consciência – essa sinistra doença. É através da interiorização dessas forças ativas que o homem faz uma concepção fictícia de um desejo como falta. Ora (como é evidente), separado da capacidade de afirmar a sua natureza, o homem moderno continua a ser movido por uma vontade de potência, porém, sob o signo da carência. É a potência como representação, como objetivo, como alvo, como solução para os tormentos]
“Neles [os fundadores de Estado] não nasceu a má consciência, isto é mais do que claro – mas sem eles ela não teria nascido, essa planta hedionda, ela não existiria se, sob o peso dos seus golpes de martelo, da sua violência de artistas, um enorme quantum de liberdade não tivesse sido eliminado do mundo, ou ao menos do campo da visão, e tornado como que latente. Esse instinto de liberdade tornado latente à força – já compreendemos –, esse instinto de liberdade reprimido, recuado, encarcerado no íntimo, por fim capaz de desafogar-se somente em si mesmo: isto, apenas isto, foi em seus começos a má consciência.” Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 16.
“[...] pois todo sofredor busca instintivamente uma causa para seu sofrimento; mais precisamente, um agente culpado suscetível de sofrimento – em suma, algo vivo, no qual possa sob algum pretexto descarregar os seus afetos [...] pois a descarga de afeto é para o sofredor a maior tentativa de alívio, de entorpecimento, seu involuntariamente ansiado narcótico para tormentos de qualquer espécie.” Genealogia da Moral, Terceira dissertação, 15.
[Como as forças ativas, interiorizadas, não cessam de multiplicar as dores, o sofredor precisa de um alívio, por isso quer encontrar um culpado. O sacerdote judaico realiza o ressentimento como tipo, como forma, como criação de valores, ao apontar o indivíduo “mau”, que age de modo egoísta, feliz por si mesmo, como objeto de ódio do seu rebanho impotente. Já o sacerdote cristão realiza a má consciência também como tipo - ou forma - ao interpretar a dor do sofredor como uma falta, um pecado, ou seja, o sofredor mesmo é culpado pela dor que sente]
“De fato, ele defende muito bem o seu rebanho enfermo, esse estranho pastor – ele o defende também de si mesmo [...] ele combate, de modo sagaz, duro e secreto, a anarquia e a autodissolução que a todo momento ameaçam o rebanho, no qual aquele mais perigoso dos explosivos, o ressentimento, é continuamente acumulado. Descarregar este explosivo, de modo que não faça saltar pelos ares o rebanho e o pastor, é a sua peculiar habilidade, e suprema utilidade; querendo-se resumir numa breve fórmula o valor da existência sacerdotal, pode-se dizer simplesmente: o sacerdote é aquele que muda a direção do ressentimento.” . Genealogia da Moral, Terceira dissertação, 15.
“Apenas nas mãos do sacerdote, esse verdadeiro artista em sentimentos de culpa, ele veio a tomar forma – e que forma! O ‘pecado’ – pois assim se chama a interpretação sacerdotal da ‘má consciência’ animal (da crueldade voltada para trás) – foi até agora o maior acontecimento na história da alma enferma: nele temos o mais perigoso e fatal artifício da interpretação religiosa” Genealogia da Moral, Terceira dissertação, 20.
“[...] com Paulo, o sacerdote quis mais uma vez o poder – e só podia utilizar conceitos, doutrinas, símbolos, por meio dos quais se tiranizam as multidões e se formam rebanhos”. O Anticristo, 42
“Paulo [...] contra Roma, contra o ‘mundo’, o judeu, o judeu errante par excellence... O que ele adivinhou foi o modo como poderia atear um ‘incêndio universal’ com a ajuda do pequeno movimento sectário dos cristãos, à parte do judaísmo; como com o símbolo ‘Deus na cruz’ conseguira reunir num poder imenso tudo quanto era inferior.” O Anticristo, 58.
“[...] o próprio Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio Deus pagando a si mesmo, Deus como o único que pode redimir o homem daquilo que para o próprio homem se tornou irredimível – o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!...” Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 21.
[O golpe de gênio do cristianismo, diz Nietzsche. Paulo de Tarso estabelece uma interpretação da crucificação de Jesus como um ato de amor... aos fracos, oprimidos, amargurados, pisoteados, enfermos. O ódio judeu dá lugar ao “amor” cristão (‘Perdoai-os Pai, pois eles não sabem o que fazem’). Mas esse “amor” é abastecido por um imenso ódio à vida, aos indivíduos fortes e saudáveis; ódio tornado explícito como nessa frase de Tomás de Aquino (que Nietzsche cita na Genealogia da Moral, primeira dissertação, 15): ‘Os abençoados no reino dos céus verão as penas dos danados, para que sua beatitude lhes dê maior satisfação’. O ‘Juízo Final’, reino dos céus e inferno como armadilhas sacerdotais que servem para capturar a massa enferma. A dor interna passa a ser espiritualizada, encontra-se até benefícios ascéticos para continuar a experimentá-la, pois, desse modo, a alma enferma será curada no ‘além’ e será finalmente feliz - é sempre por vontade de potência que essas sandices são investidas...]