Por Eder Amaral e Silva[1] & Morgana Barbosa Gomes[2]
Ainda aqui, uma vez mais, falamos por códigos. Podemos ser mais simples. Sejamos: ocaso (sic) ocorreu no simpósio em que apresentamos o trabalho citado, numa comunicação oral de breves quinze minutos. Encerramos o ciclo de apresentações da manhã de 28 de novembro por volta de 12h15min. Daí em diante, teve início a série de pareceres dos dois professores presentes, Nilton Milanez e um colega seu (do qual não nos lembramos o nome), então responsáveis pelo simpósio. O curioso da estória é a transformação do parecer em julgamento no exato instante em que ambos os professores iniciam sua fala a respeito do nosso trabalho e da nossa apresentação, na qual experimentamos (e ainda com muita timidez) uma performance poética como condutora da proposta.
Entre outras coisas, ouvimo-los dizer que o nosso texto trazia notadamente um discurso de resistência. Resistência à ordem do discurso acadêmico, porque feito em tintas de apelo literário, resistência à norma por não se alinhar a certa padronização da escrita universitária, resistência, em fim, ao instituído. E que optar por tal modo de expressão na seara acadêmica, devíamos saber, implicava em não ser ouvido, na medida em que a ordem do discurso determina o que pode e o que não pode surgir como discurso, o que pode ou não ser dito numa determinada circunstância, a um determinado público, por determinado sujeito, em determinado tempo. Ou entramos nessa ordem do discurso, ou então...
Está lá, na aula inaugural de Michel Foucault no Collège de France, esta importantíssima constatação. Logo após parafraseá-lo (como o fazemos aqui), o professor Nilton arrematou: “não sou eu quem diz isso, é o discurso, é Michel Foucault!”
Sabe quando se tem a sensação de ter ouvido um canto de sereia? Não foi o que ocorreu. Sem entrar em mais detalhes (quem os quiser saber não terá dificuldade, havia outras pessoas participando do “Simpósio III – Discurso, Literatura e Autoria”), atenhamo-nos aqui apenas à situação já descrita, alem de alguns tragicômicos desdobramentos.
Desde o início da apresentação soubemos que seria aquele nosso primeiro e último momento no evento do prof. Nilton (palavras e possessiva advindas do próprio). Dissera que aquilo que propúnhamos estava fora de ocasião, destoava da proposta do Encontro, e que não apareceria em suas próximas edições, palavra. “Isto que vocês apresentaram não tem lugar nesta sala, neste espaço!”. Para não incorrermos em injustiça, salientamos que o mesmo professor afirmou ter sido favorável à aprovação do nosso resumo, não obstante esta ter sido opinião rara entre os pareceristas, o que resultaria na recusa de nosso trabalho não fosse sua intervenção e assunção da responsabilidade pela avaliação. Foi só depois de uma extremada benevolência, de um devir-socrático, de uma salvação talvez, que o professor entendeu haver a necessidade de um acerto de contas... toc, toc, toc... A ordem do discurso bate à nossa porta, pedindo um pouco de voz:
E a instituição responde: “Você não tem por que temer começar; estamos todos aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que ele lhe advém”.[3]
Duas páginas à frente, Foucault interroga: “Mas, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?” É ele mesmo quem responde:
(...) suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.[4]
Os trechos colados aqui são talvez os mais citados em trabalhos acadêmicos que fazem uso deste livreto. Se a quantidade de citações lhe garantisse compreensão, por certo Foucault (e Sade, e Nietzsche, e Heidegger, e tantos mais...) seria de domínio largo além dos círculos e catedrais.
Uma pesquisadora brasileira[5] dos estudos da cognição nos leva a pensar que dispomos de dois modos de subjetivação do conhecimento, aos quais ela define como “políticas cognitivas”. Por um lado, haveria a política cognitiva “realista”, sendo aquela que percebe o real como aquilo que está dado, desde sempre, e do qual apenas seleciona, coleta, assimila e faz circular informações, única matéria possível num tal regime cognitivo. Por outro, tem-se o que ela chama de política cognitiva “construtivista”, cuja característica fundamental é a de tomar o mundo como uma invenção, um engenho produzido na hora precisa em que atentamos para ele, em que agimos nele, o que implica inevitavelmente o problema ético do conhecimento.
A situação que vivenciamos no I ENEDIS nos remeteu imediatamente a este problema, porque nos vimos diante de uma nítida manifestação daquele tipo de “realismo”. Porque o problema não está em repetir constatações de um pensador a respeito da realidade que vivemos (e esse “viver” é necessariamente “criar”); o difícil é ver o desperdício da leitura que faz da afirmação crítica mera informação a ser armazenada no repertório técnico, mera unidade de informação; o que espanta é ver o que força os limites da norma ser convertido em regra a ser reproduzida ad eternum e por toda parte, como se estivesse diante de uma prescrição e não de uma análise.
Em função de quê é possível uma tal disposição ao uso de filosofias como a de Michel Foucault – um pensamento que tem por mote justamente a crítica aos poderes instituídos – para rebater o exercício do poder sobre o que quer que se manifeste à margem da ordem? Parodiando o cientista político Jacques Donzelot, seria necessário teorizarmos ainda sobre uma “Polícia do pensamento”?... toc, toc, toc... A ordem do discurso bate novamente à nossa porta, querendo fazer uma pergunta:
O que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra; senão uma qualificação dos papéis para os sujeitos que falam; senão a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso; senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes?[6]
Da forma que foi possível fazê-lo na ocasião, interpusemos o questionamento acima ao “parecer” que nos foi dado. Entre outras coisas (como, por exemplo, o alerta do outro professor/avaliador, ao fato de que Foucault não defendeu suas teses cantando nem declamando poemas...), surgiu como tréplica que estávamos “pulando o muro do vizinho para falar mal dele”, que ao nos apresentarmos daquele modo dentro de uma academia não podíamos nos furtar do lugar que ocupávamos na própria academia etc., etc... Sim, sim, tens razão, passemos a outra coisa, por gentileza, que essa cantilena já fala por conta própria de tão repetida! Para tranqüilizar quem se aterroriza, não queremos acabar com a academia, viveremos pouco, temos mais o que fazer (dentro dela inclusive). Só não temos esse estranho senso de pura pertença que transforma alguns em guardiães da ordem, incumbidos de controlar qualquer variação que surja ao seu redor para conservar o que já se alcançou, mesmo que seja pouco, mesmo que não seja. Pra quê exemplo maior da piedosa avareza que não cessamos de aprender, que não cessa de nos consumir?
Vai ficando difícil achar leitor com este tamanho de texto, que só quer expressar nossa gratidão pela receptividade. Pra não haver mais delongas, deixamos ao menos uma explicação, já que todo o resto dispensa: o título. Que papo é esse de “eles lêem Foucault como homem”? Quem tiver oportunidade e desejo, por prazer, leia um texto intitulado “A literatura e a vida”, de Gilles Deleuze[7]. Lá Deleuze tenta responder à questão do que faz valer a pena uma escrita... questão que responde, provocativamente, com outra pergunta: “A vergonha de ser um homem: haverá razão melhor para escrever?”. Esse “homem” de que Deleuze afirma se envergonhar não é outro senão a forma-Homem que nos atravessa, qualquer que seja nosso gênero (e se é que eles realmente existem), forma que planta o poder em nós, e nos faz querê-lo como se fosse o ar que respiramos. Dessa perspectiva, como entender que aquele que diz “Não se apaixonem pelo poder”[8] possa ser lido e posto em discurso como um homem? Não precisamos ir além dessa pergunta. Como dissemos no simpósio, fizemos aquela proposta como um jogo, não como uma missão de catequese; queríamos uma dança, não uma competição. Talvez Capoeira... Vale Tudo nunca!
De resto, convidamos Foucault e um seu parceiro saxão, que também não é homem (porque está para além dele, em qualquer sentido) para, agora sim, fazer uma prescrição: “Utilize a prática política como um intensificador do pensamento e a análise como um multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política.”[9] Quanto a Nietzsche, trazemos um ensinamento que permeia seu trabalho, que faz da vida obra de arte (e não a deixa se tornar um trapo): é preciso muito amor para se fazer uma crítica. Eis aqui nosso exercício de amor (sem objeto e sem objetivo, mas nunca gratuito), ainda que cruel, como foi dito. Se chamamos filósofos ao texto é sempre para conversarmos, até falarmos juntos, ao mesmo tempo, sem muita educação. Não para abduzir nossa própria voz em função de petições de autoridade. Pois é justamente em Foucault que encontramos motivo para pensá-lo como amigo, produzir com ele uma política da amizade, e arriscar, sempre no limite do que agüentamos, sem ressentimento. Com efeito, “somos ainda demasiado competentes, e gostaríamos de falar em nome de uma incompetência absoluta”[10]. É que no Zaratustra gostamos mais da última figura da transmutação – a criança, demasiado inocente, jamais ingênua – do que da primeira – o carregador de fardos. Deste texto esperamos só uma coisa: que se dele surgir qualquer efeito, seja mais assunto de conversa que questão de julgamento.
Estou escrevendo versos realmente simpáticos –
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim![11]
Vitória da Conquista, 1º de dezembro de 2008
[1] E-mail: eder_as@yahoo.com.br
[2] E-mail: morganabg1@yahoo.com.br
[3] Michel Foucault. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. p. 7. (Grifo nosso)
[4] Idem, p. 8-9. (Grifo nosso)
[5] Virgínia Kastrup. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo nos estudos da cognição. Campinas: Papirus, 1999.
[6] Michel Foucault. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. p. 44-5. (Grifos nossos)
[7] O texto faz parte da coletânea de textos de Deleuze chamada Crítica e Clínica, publicada no Brasil pela Editora 34. O texto também está disponível na internet e pode ser facilmente encontrado.
[8] Michel Foucault. Anti-Édipo: Uma introdução à vida não fascista. Cadernos de Subjetividade / Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. – v. 1, n. 1 (1993) – São Paulo, 1993 [páginas 197 a 200].
[9] Idem, Ibidem. (Grifo nosso)
[10] Gilles Deleuze & Félix Guattari. O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia 1.Lisboa, Portugal: Assírio & Alvim, 2004. p. 399.
[11] Fernando Pessoa. Insônia. In: Poesia Completa de Álvaro de Campos. São Paulo: Cia. das letras, 2007. p. 325