...hoje acordei vazio, sem saber sequer o meu nome, e quando passava a água fresca e verdadeira pelo meu rosto esta misturava-se com o sabor acre-salgado das minhas lágrimas...a ausência de um rótulo, que nos faça pertencer à sociedade em geral, deixa-nos perdidos no meio de tantas questões...a mais famosa de todas, aquela que dizemos "quem sou eu?", sendo que a reposta superficial de um nome apenas acalma, mas não sossega, a inquietação de uma alma que caminhou toda a vida pelo deserto sem perceber o verdadeiro significado de tanta coisa...sendo que por coisa se possa entender objectos, pessoas e sentimentos...
...quando olhei o espelho vi o fantasma de todos os dias passados que me assombraram à esquina da vida e continuei sem reconhecer aquela máscara que fazia todos aqueles esgares à frente do vidro samaritano que me devolvia a minha imagem exterior...queria que me assaltasse por dentro e me revelasse os despojos desse acto de guerra e me ajudasse a reconhecer alguma coisa que me despertasse e me fizesse dizer..."eu sou..." porque eu não sei quem sou......enquanto desfazia a barba pensei que este gesto herdado de não sei quantas regras sociais se assemelhava tanto ao doce desfazer da vida que nascia e que se acumulava ao nosso redor como se fossem estantes repletas de livros, muitos dos quais que nunca seriam abertos, ou por não se entenderem, ou por não revelarem o interesse que nos identifica ou, simplesmente, por sermos vítimas da nova doença da modernidade: o stress provocado pela falta de tempo......fazia o café quente e forte como se fosse uma cena sexual e sagrada e o orgasmo da vida se perpetuasse por mais do que uns meros segundos...aquele despoletar para a vida que me acordasse e me desafiasse para o resto do dia...mesmo sem saber qual é o meu nome...qual é o meu corpo...qual é o meu futuro......existe qualquer coisa nos céus, hoje, que me faz querer terminar com estes actos diários e ser apenas mais um revolucionário que aprendeu a voar para além das sombras ditadas pelas regras desta máquina infernal onde só se escutam as vozes simétricas da multidão going in to the slaughter......não me encontro em nenhum recanto da memória nem em nenhum recanto desta sala, sendo que todos estes objectos acabam por ser uma afronta ao meu caminho interior e ao meu espaço físico...não consigo dar nem mais um passo em frente ou sequer atrás e são as areias movediças desta confusão caótica que me sugam para o fundo de mim mesmo...não me reconheço......não me recordo de ti, tu que estás fechada por detrás de uma moldura de vidro, com o teu sorriso comprado depois de preencheres um impresso para sorrir, e que olhas directamente para mim como se me conseguisses varrer a alma inteira, deixando a nu este ser que se esconde debaixo de toda a sujidade de uma vida inteira acumulada à base de ser quem não sou...quem és tu, já agora?......quando olho para baixo, metros e metros de distância abaixo de mim, sei que não vai restar nada...e continuarão sem saber quem sou eu e eu próprio sem saber de que sou feito...por isso mesmo, deixo-me cair, como muitos mais fizeram antes de mim...os demónios também desistem dos mortais...por serem mais inocentes do que estes últimos...não são só os anjos que caem...por isso deixo-me cair enquanto as minhas asas negras se despedaçam ao contrário do vento......o coração continuava a bater...acordei e senti um vazio deixado pelo sabor doce e amargo do sonho...umas asas negras toldavam-me o raciocínio mas eu sei o que devia fazer nessa manhã como em todas as outras da minha vida...por isso...lavei o rosto com a água fresca, desfiz barba acumulada de mais um dia, bebi o meu café forte e acordei para mais um dia lá fora...