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quinta-feira, 8 de agosto de 2024
BELÍSSIMO estudo da Dra. JÚLIA REIS SERRA
Poesia de António Cabral em Diálogo com Fotografia de João B. Cabral e João P. Cabral
Diálogo Interartístico
O novo livro Poesia de António Cabral em Diálogo com Fotografia de João B. Cabral e
João P. Cabral é um verdadeiro álbum de memórias poéticas que, dialogando com as imagens,
traçam uma ponte entre o passado – presente projetando a intemporalidade da arte.
Formalmente, o livro apresenta-se com um formato de um álbum, pois aposta na
extensão da horizontalidade em contraponto com a vulgar verticalidade. A textura da capa e
do próprio papel interior, adequado à fotografia, reforçam a imagem de um livro para sempre,
uma relíquia sobre a Região do Douro. A nível da estrutura, a obra prima pela organização e
adequação das fotografias aos poemas – pode dizer-se que é uma sinfonia a duas vozes – e,
nesta confluência interartística, subjaz a voz e a faina estrénue de um povo que labuta pela
dignificação do seu cadinho natal. Na Nota Introdutória, Alzira Cabral realça: “A paisagem
construída pelas «Mãos ossudas e calosas» da gente duriense deixa-nos em êxtase…” e
acrescenta “uma vida árdua a que o poeta duriense não foi insensível, dando voz àqueles que
a não têm – Os lavradores assobiam para dentro/e os mais necessitados/engolem os projectos
com a saliva.”
É um livro cheio de poemas, extraídos das várias obras do poeta António Cabral
–primorosamente assinalados no Índice – que percorrem os lugares, os trabalhos do campo, a
dedicação dos trabalhadores, a paisagem com fragas e vinhedos, os santos da devoção, os
pássaros que dulcificam o ambiente, o tempo que varia e os trovões assustadores, a história e
geografia da região … ao longe, o infinito. São poemas, alguns uma espécie de conto ou lenda,
outros cheios de sensibilidade, ultrapassando a dimensão humana: “Perdem-se os olhos na
amplidão restrita/ Do tronco nu dum eucalipto esguio/ Que deixa de ser ele/Uma porção do
fio. (p.7) Se aqui é nomeado o eucalipto, muitas outras árvores completam este alfobre
poético: oliveira, videira (vinha), amendoeira, laranjeira, pessegueiro, nespereira e associadas
a estas árvores há o cheiro a rosmaninho e a esteva e os pássaros (o melro e a águia) a
engalanar o ambiente paradisíaco da região.
O verão é o tempo do trabalho, mas as outras estações do ano e os meses são
também evocados, sobretudo, o tempo da neve, das nuvens negras e do nevoeiro; a lua, essa,
pode ser um augúrio da maldade: “Hoje, repugnas-me, lua. / Repugnas-me porque és/uma
impassível testemunha das nossas misérias e maldades.” (p.29) Apesar de tudo, o sujeito
poético acha que a gente da aldeia dorme e, talvez, sonhe… tal como os barcos rabelos
serpenteiam nas águas do Douro, levando o néctar para os turistas, ou então, entrando no
coração do Douro com os novos viajantes do mundo… lembrando o poema S. Leonardo de
Miguel Torga. E esta alusão ao santo, desfia muitos outros santos devotos que o poeta António
Cabral evocou nos seus versos: Senhora da Piedade, Senhora dos Remédios, Senhora do
Socorro, Santa Marinha, em Castelo do Douro, S. Salvador do Mundo, S. João, Senhora da
Saúde, entre outros nomes associados à Fé e às Romarias.
Não esquecendo a cartografia da região, o poeta nomeou: Sanfins do Douro, Pinhão, a
Ponte sobre o Rio Tua, Lamego, Resende, Marão, Vinhais, Provezende, Murça, Régua,
Penaguião, Penajóia, Saudel: “ Na Senhora da Saúde/que se venera em Saudel/os crentes são
como abelhas/e ela um favo de mel(p.72), “Ermamar”, Miranda, Freixo de Espada à Cinta,
Meda, Vilariça, Tabuaço, Alfândega da Fé – “Em terras de tanta seda/ teu falar de seda é:/ o
passado continua/em Alfândega da Fé”(p73) – Alijó e muitos outros lugares e quintas constam
nesta mapeação duriense e transmontana que chega à linha castelhana. Como exemplo de
casas, lugares, quintas ou solares, regista-se: Casa do Douro, Quinta da Batoca, com a alusão a
Guerra Junqueiro: “Só na Quinta da Batoca/Junqueiro entendeu a voz/d’Os Simples, aves que
voam/ ao longe, dentro de nós.” (p.81); o lugar do Tedo e a Quinta do Roncão. Há igualmente
referências a personagens típicas da região e da história: Marquesa de Távora, Ferreirinha,
Graça Morais, Araújo Correia, Conde de Saldanha, entre outras.
São muitos os poemas, os sonhos, os trabalhos e as histórias, que constituem esta
antologia poética, extraídos da obra ingente de António Cabral. As palavras, aqui, projetam-se,
não ficam sufocadas, e os seus ecos originam imagens que ganham força para interagir e
dialogar. Não são imagens estáticas, apesar de sombrias, mas a preto e branco ou
acinzentadas e brancas, assumindo uma espécie de tonalidade monocromática. Acresce referir
que a ausência de colorido não é apenas sinónimo de tristeza ou monotonia, pode
corresponder à técnica, à interpretação e ao objetivo do(s) fotógrafo(s), tornando, assim, as
imagens mais expressivas e motivadoras para atrair o leitor. Pode considerar-se que a não
existência de colorido concentra mais poder através do jogo de branco /escuro favorecendo a
personificação dos espaços estratificados e atribuindo sensações de pureza e deslumbramento
aos elementos líquidos (rio, riacho) que ladeiam os socalcos ou ao desnível existente entre a
montanha e a correnteza da água – caso de S. Leonardo de Galafura e o rio Douro.
A cor cinza é um elemento estabilizador apropriado à memória e à intencionalidade
desta obra – evocação das memórias de um prócere escritor transmontano - duriense que
ficou na História da Literatura Portuguesa. Parabéns aos Fotógrafos J. B. Cabral e J.P. Cabral
pela leitura e comunicação exímias que estabeleceram com as palavras!
Uma obra para ser lida e apreciada, por todos aqueles que gostam de poesia, de
fotografia e da Arte em geral.
Este “diálogo” memorial e visível transforma o leitor num intérprete do tempo e da
Natureza.
Júlia Serra