Fizemos a preparação dos textos do livro de Firmino Rocha, importante poeta da região cacaueira da Bahia. Abaixo, o prefácio que escrevemos para a obra.
FIRMINO ROCHA: O POETA DO POVO
Uma pesada nuvem negra, daquelas que anunciam grande tempestade, apavora o mundo. Sua face mais aterradora é exibida na TV e nos jornais, são crianças de armas na mão, é a guerra do Vietnã. No outro lado do planeta, um poeta vê tais imagens e, tomado por uma força brutal, retira sua caneta do bolso, um pedaço de papel amassado, sujo, e põe-se a escrever aquela que seria uma belíssima obra de arte, um poema irretocável, digno dos maiores poetas. Estamos falando do poema “Deram um Fuzil ao Menino”, do poeta itabunense Firmino Rocha. Tal poema, segundo consta, teria atravessado mares e céus, tendo sido publicado pela ONU (Organização das Nações Unidas) em uma antologia sobre a paz que reuniu obras de poetas do mundo inteiro. Também foi publicado em diversas antologias da poesia baiana e de autores grapiúnas.
Como em poesia não há lugar para acidentes ou casualidades, o turbilhão de significados em que se transformou tal poema é resultado da lucidez literária do autor e de alta dose de lirismo, pois incorpora aos seus mecanismos todos os elementos de uma boa poética (musicalidade, originalidade, sentido lógico, síntese e metáforas), mesmo aqueles que aparentemente nada significam. Vejamos o poema:
Adeus luares de Maio.
Adeus tranças de Maria.
Nunca mais a inocência,
nunca mais a alegria,
nunca mais a grande música
no coração do menino.
Agora é o tambor da morte rufando
nos campos negros.
Agora são os pés violentos ferindo
a terra bendita.
A cantiga, onde ficou a cantiga?
No caderno de números o verso
ficou sozinho.
Adeus ribeirinhos dourados.
Adeus estrelas tangíveis.
Adeus tudo que é de Deus.
Deram um fuzil ao menino.
Tudo isso sem desprezar uma intuição maravilhosa que orientou o poeta na criação deste poema, essa mesma intuição fez seu povo consagrá-lo como o seu poeta antes mesmo que qualquer autoridade crítica o dissesse.
A poesia de Firmino Rocha não se limita apenas a esse belíssimo poema, e, à primeira vista, o autor pode nos parecer uma espécie de poeta em desordem, entretanto um rápido correr de vistas por sua obra denuncia um vate de forte tendência metafísica, de onde emergem aforismos como Homem, quanto mais doer/ a sua alma aflita/ provando a evidência/ deste mundo turvo,/ mais certeza tenha/ de não ser isso a vida. Também um sentido universal de fraternidade permeia sua obra: E abriremos os olhos com o sol derramando ouro/ sobre nossos corpos/ e levantaremos os braços em sua direção/ e chamaremos os irmãos para a semeadura,/ para os cuidados com as plantas já nascidas/ e para as alegrias das esperas. E como aqueles que desvendam na essência do ser as transcendentes aspirações incondicionais, o poeta acolhe em sua alma sofrida esse desejo de Deus: Ouvir o canto da madrugada./ O canto suavíssimo do caricioso silêncio/ e das mensagens do sono das coisas escondidas./ O canto prenhe de pureza/ das águas encobertas/ e das emudecidas ramagens./ O canto de Deus.
É um artista musical, de sonoridade entranhável, de modo que escutamos a ele próprio, quando em voz alta entregamos ao vento os seus versos que se espalham contentes pelas águas do Cachoeira, amado rio do poeta.
A postura anti-racionalista de Firmino Rocha o leva a investigações de fenômenos que as leis naturais parecem não serem capazes de explicar, apenas passíveis de compreensão mediante a iniciação em ordens herméticas, aliando-o, no plano sensorial ao poeta irlandês W. B. Yets, para quem a procura pelo transcendente através da linguagem nos faz evocar realidades espirituais mais elevadas, como se a poesia fosse fundada na vida para além deste mundo. O caminho está limpo e vestido de orvalho./ Os espinhos viraram lírios./ As pedras viraram fontes./ A terra está novamente concebendo/ as árvores de Deus/ e canta maravilhosamente na quietude/ do grande início.
Entendemos a postura do poeta como uma espécie de escapismo, por se tratar de universos apenas almejados, conforme vemos no poema “Abrirei os Olhos para um Mundo Novo”. O poema expõe o anseio de Firmino por alcançar o que poderia ser uma vida natural e restauradora, pois Então velejarei os mares pressentidos/ nas manhãs dos dias que ficaram longe,/ nas manhãs dos dias que deixei chorando,/ nas manhãs dos dias que guardei no sonho. O lugar é retratado como um ambiente mágico.
Na trilha da sinceridade e da simplicidade, sua poesia reflete certo ar de ingenuidade que modela a realidade desejada, acentuando os conflitos entre a vida real e o sonho, gerando angústia e insatisfação que ficam veladas, à margem das linhas mestras da sua construção, aproximando-o, ao mesmo tempo, do modernismo e do simbolismo brasileiros.
Entretanto, no campo religioso, no que perpassa sua obra, é plausível falar de evocações e símbolos marcadamente cristãos, através da própria evocação da figura do Filho de Deus e sua mãe bíblica, Maria, enquanto o estilo do escritor se coliga à maneira afetiva entalhada nos seus versos. Senhora da Conceição,/ Virgem Mãe de Jesus,/ quero agora uma canção,/ um raio de sua Luz. Tais elementos comparecem aliados a emoções e sutilezas que nos escapam à análise, podendo receber novos significados a cada leitura.
Em vida Firmino Rocha publicou os livros O Canto do Dia Novo, 1968 e Momentos, sem data de publicação, ambos pela Editora Mensageiros da Fé, além de diversos livretos dispersos como Pabra, Serenina, Olorene e Poesia com Amor. Exerceu grande influência em muitos poetas de gerações posteriores à sua. Também publicou poemas com freqüência regular na Imprensa local. Nasceu em Itabuna, em 07 de junho de 1910, faleceu em Ilhéus em 1 de julho de 1971.