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abril 29, 2010

Controlo

Uma religião ou uma ideologia são mecanismos de pacificação mental. Ao dispor de uma estrutura explicativa seja do mundo externo, social ou íntimo, protege o crente de um oceano de questões e decisões. Ao querer impossível a pergunta, ao tornar desnecessário a opção, promete aos seus uma vivência simplificada. Este sistema é protegido quer por mecanismos de censura (o index que proíbe textos e imagens de outras perspectivas) quer por auto-censura (graças à excepcional facilidade que temos em isolar certas crenças de qualquer introspecção crítica). Uma sociedade deste tipo usa livremente os media e as escolas como instrumentos de uniformização bem como a polícia e as próprias pessoas como sistema imunitário à diferença, à opinião e à acção não formatada. O inimigo não se encontra necessariamente fora nem dentro, é imanente em tudo o que se faz e pensa e, assim, tudo o que se faz e pensa é potencialmente gerador de culpa, um crime ou pecado. Para a manutenção desta dinâmica viciada, uma das questões essenciais é manter isolado o mecanismo mental da dúvida. A acção em vez da introspecção, a repetição em vez do original, tudo são processos para fixar automatismos e afogar o único de cada pessoa. Felizmente, não é fácil extrair a dúvida totalmente de uma pessoa sem a reduzir a uma sombra. Mesmo que seja possível construir uma sociedade de sombras ela dificilmente se mantém, o nosso passado genético não é o da colmeia. E quanto mais reprimida uma sociedade for, quanto maior o esforço para mantê-la controlada, mais exposta se torna à dúvida que pretende destruir.

março 16, 2006

Reset

O objectivo de todas as utopias é, de forma mais ou menos ampla, eliminar as pessoas reais - John Carey

julho 04, 2005

Nós

Na última feira do livro, na Antígona, comprei um livro pela contracapa ("A obra que inspirou 1984"). Chama-se "NÓS" e foi escrito pelo russo Evgueni Zamiatine em 1920. É uma das primeiras distopias escritas no século XX. Distopia é uma palavra cara para "utopia que deu para o torto" (como se alguma utopia o pudesse evitar) e precede as obras mais conhecidas de Orwell, Huxley e Bradbury. Como nestas, a sociedade descrita defende-se numa argumentação quase impossível de refutar dentro do quadro mental a que recusa os cidadãos de sair. Em "NÓS" é a distinção entre liberdade e felicidade, identificando a primeira com o peso das opções, a responsabilidade do erro, o possivel do crime; enquanto a felicidade é o produto gelado da racionalidade cega a uma Verdade. Deixo-vos com um excerto/aperitivo:

"Nós seguimos em frente, como um só corpo com milhões de cabeças, e dentro de cada um de nós reinava a suave alegria que constitui, provavelmente, a vida das moléculas, dos átomos, dos fagócitos. No mundo antigo, os cristãos compreendiam bem o que isso era: a modéstia é uma virtude, o orgulho é um vício; compreendiam também que Nós vem de Deus, ao passo que Eu vem do Diabo.

Lá ia eu, caminhando ao passo como todos, mas, apesar de tudo, isolado deles. Tremia ainda no seguimento das perturbações recentes, tal como treme a ponte sobre a qual passou um comboio daqueles de antigamente. Tinha consciência de mim mesmo. Ora o conhecimento de si, o reconhecimento da própria individualidade só o têm o olho onde acaba de cair um cisco, o dedo esfolado, o dente dorido. Quando sãos, o olho, o dedo, o dedo não têm existência alguma. Não prova isto claramente que a consciência de si é de facto uma doença?"

julho 28, 2004

Um ano de Ruminações

Nos últimos tempos li/reli quatro livros cuja temática é a restrição da liberdade individual face à arbitrariedade de um colectivo mais ou menos abstracto. Estes livros são:
  • 1984 de George Orwell. A vida de Winston Smith num regime ditatorial que absorveu todos os aspectos públicos e privados dos seus habitantes."It was terribly dangerous to let your thoughts wander when you were in any public place or within range of a telescreen. The smallest thing could give you away. A nervous tic, an unconscious look of anxiety, a habit of muttering to yourself—anything that carried with it the suggestion of abnormality, of having something to hide."
  • Fahrenheit 451 de Ray Bradbury. O despertar de Guy Montag de um mundo de conteúdo simplificado onde livros são objectos para queimar. "Give the people contests they win by remembering the words to more popular songs.... Don't give them slippery stuff like philosophy or sociology to tie things up with. That way lies melancholy."
  • O Processo de Franz Kafka. Joseph K. vê-se como réu de um processo judicial que não entende. "Não é necessário aceitar tudo como verdadeiro mas apenas aceitar aquilo que é necessário."
  • Darkess at Noon ("O Zero e o Infinito" nas Ed. Europa-América) de Arthur Koestler. Nicholas Rubashov é um membro da velha guarda revolucionária da União Soviética (este livro é o único dos quatro que ocorre num país concreto e trata de acontecimentos verídicos mesmo que ficcionados) que se vê enredado nas purgas estalinistas dos anos 30. "A sua tarefa é simples: dourar o que é certo, enegrecer o que está errado. A política da oposição está errada. A sua tarefa é, pois, fazer com que a oposição se torne desprezível; fazer com que as massas compreendam que a oposição é um crime e que os dirigentes da oposição são criminosos. É esta a linguagem simples que as nossas massas compreendem. Se começar a falar das suas complicadas motivações, só conseguirá criar confusão nos espíritos."
Os mundos descritos, desde Kafka até Koestler, são visões pessimistas de um futuro que não ocorreu ou que falhou. A liberdade individual (numa grande parte do planeta...) tem sobrevivido a guerras mundiais, a regimes totalitários, à corrupção, à ignorância, à indiferença. Protegem-nos a democracia, o estado de direito, a justiça, a liberdade de expressão cuja filha mais recente é a blogoesfera. E nesta, mesmo imersa em lixo e desinformação, é difícil esconder o seu pulsar de originalidade, de novas ideias e pontos de vista, de prosa, poesia, imagens, informação, de atenção ao que a rodeia. Nem tudo são pesadelos de prisões ou promessas de fronteiras. Aqui construímos horizontes e canções sobre esses horizontes.

dezembro 29, 2003

Utopias

Com o passar dos Séculos certos lugares imaginários perdem-se na memória e sobrevivem apenas nas páginas ou nos quadros que reflectem um passado (quase) morto. Apesar de todos sabermos o que é o Carnaval, já poucos sabem o que foi a terra da Cocanha. Numa Europa medieval caótica e violenta, onde a esperança da vida eterna era espartilhada pela rígida moral católica, a imaginação funcionava como mecanismo de compensação. Foram criadas geografias fantásticas como o reino do Prestes João, a Terra Australis, Hi Brazil ou a Cocanha, uma terra maravilhosa de abundância, de prazer e de esquecimento. Um local onde os ocasionais dias das festas eram multiplicados por todos os dias do ano. Uma utopia destinada a esquecer quase esquecida.

Le Pays de Cocagne - Peter Breugel, o velho
O País da Cocanha - Peter Breugel (o velho)

ps: O livro Baudolino do Umberto Eco é uma óptima viagem por estas geografias imaginadas.