junho 30, 2005

Bengalas

As bengalas linguísticas são uma constante (quase?) impossível de eliminar da expressão vocal. O que é uma bengala? Não tenho uma definição exacta mas arrisco dizer que são as expressões repetidas sem qualquer utilidade a não ser suportar-nos o discurso. Exemplos? Dizer 'não é' no fim ou nas pausas de cada frase; polvilhar o que se diz com '' ou 'ok'. É curioso o fenómeno temporal e social das bengalas: o '' era comum nos anos 70 pela esquerda. Lembro-me nos anos 80 que o 'fogo' era vulgar ser dito pelos adolescentes. Ouvi muito, nos anos 90, as expressões "quer dizer" e "a questão é" (ainda se usam).

É provável que hoje a componente social seja menos relevante e que as bengalas demorem menos a 'infectar' parte significativa da população pela capacidade de transmissão da TV. Não faço colecção de bengalas nem ligo muito, excepto em casos extremos (eu por vezes, uso a bengala 'é um facto' como resposta padrão ou no fim de certas frases), mas não consigo deixar de notar a quantidade de pessoas a usar o 'é assim:'. Esta bengala apoderou-se de jovens a velhos de forma indiscriminada (pelo menos em Lisboa e arredores). Um assunto interessante (mesmo que inútil) conhecer as origens, o fluxo e o ciclo de vida das bengalas linguísticas.

Ps: Se é mau apoiar-se em demasiadas bengalas enquanto se fala, é ainda pior fazê-lo na escrita. É difícil evitá-las todas mas uma revisão cuidada do texto elimina muitas.

junho 29, 2005

Deflação

Com o decorrer do progresso, o mundo tornou-se menor. É agora mais fácil entender as ilusões dos outros, mais difícil manter as nossas.

junho 27, 2005

O Impacto Ambiental de um Texto (parte 2 de 2)

O princípio é familiar. O engenheiro que desenha um produto potencialmente perigoso é responsável pelas suas más aplicações, e fará (ou deveria fazer) todos os possíveis para que estas não ocorram. Dizer a verdade o melhor que podermos é o nosso primeiro dever mas só isso não chega. Um académico que pense ser a verdade a única defesa, provavelmente não pensou suficientemente sobre as potenciais consequências do seu trabalho. Por vezes, a possibilidade de má interpretação da verdade que se pretende dizer é tão grande que a melhor atitude é ficar calado.

Uma estudante de Daniel Dennet desenvolveu um exemplo que retira esta discussão da terra da fantasia da filosofia para a realidade. Ela trabalha na pesquisa da SIDA e percebe os perigos que envolvem esta actividade:

Digamos que descubro que o HIV pode ser erradicado de um individuo infectado sobre circunstâncias ideais (total cooperação do doente, total ausência de efeitos inibitórios das drogas usadas, total ausência de contaminação de outras linhas de vírus, etc.) com quatro anos de regime terapêutico. Eu posso estar errada. Posso ter calculado algo mal, ter lido de forma errada alguns dados, ter julgado mal os doentes da experiência ou ter feito uma estimativa muito optimista. E posso errar em publicar estes resultados, mesmo que sejam verdade, devido ao seu impacto ambiental: os mass media podem descrever mal a história, podem descrever mal o processo do tratamento. E alguma dessa culpa é minha. Especialmente se eu usar a palavra "erradicar", que no contexto dos vírus significa a eliminação total do planeta, enquanto pretendia referir apenas uma das estirpes do vírus. Por exemplo, uma complacência irracional poderia espalhar-se ("A cura da SIDA já existe logo não me preciso preocupar mais"). As taxas de incidência de grupos de risco voltariam a aumentar. E pior: a globalização do tratamento poderia aumentar a resistência desse vírus porque muitos não levariam o tratamento até ao fim.

No pior cenário, podemos ter uma cura para a SIDA e sermos incapazes de encontrar um meio adequado para a anunciar de forma responsável. Não adianta queixarmo-nos da complacência das pessoas em geral, de nada serve culpar os doentes de não cumprir o tratamento. Estes são efeitos esperados e naturais (mesmo que lamentáveis) da publicação que algo deste género produziria. É necessário explorar todos os meios práticos para prevenir os abusos que uma descoberta pode produzir, implementar estratégias de segurança que os evitem. No pior caso possível, pode chegar-se à conclusão que os efeitos de uma descoberta são incontroláveis. Isto não seria só um dilema, seria uma tragédia.

[adaptado do "Freedom Evolves" de Daniel Dennet, Penguin Books, 2003]

junho 24, 2005

Inevitabilidade


(c) Jeff Arthur
O cruzar de uma fronteira encerra sempre uma ameaça de conflito. Mas como e porque evitá-lo?

junho 23, 2005

Troco

Assusta-nos a ideia que o mundo seja injusto. E se fosse ao contrário? Se tudo o que somos fosse a medida exacta do que já fizemos? Qual destes mundos seria maior fonte de desespero?

junho 21, 2005

O Impacto Ambiental de um Texto (parte 1 de 2)

[adaptado do "Freedom Evolves" de Daniel Dennet, Penguin Books, 2003]

Os estudiosos e investigadores, nas suas tradicionais torres de marfim, tipicamente não se preocupam com a responsabilidade que têm no impacto "ambiental" do seu trabalho. As leis da difamação não fazem asserções sobre os males que os textos podem trazer a terceiros, mesmo que indirectamente (focam-se somente na difamação propriamente dita). Que mal um matemático ou um crítico literário podem trazer na execução honesta do seu trabalho? Mas em campos onde as apostas são mais altas há uma tradição em ter especial cuidado e tomar responsabilidades particulares para assegurar que nenhum mal ocorra das suas acções (por exemplo, o juramento de Hipócrates tem este papel para os médicos). Engenheiros, sabendo que a vida de milhares de pessoas pode depender da forma como se constrói uma ponte, executam procedimentos específicos para determinar, segundo o melhor conhecimento humano daquele momento, que o desenho e construção desta é segura.

Quando um académico aspira a ter impacto no mundo "real" (em oposição com o mundo "académico") precisa adoptar as atitudes e hábitos destas disciplinas mais aplicadas. É necessário responsabilizar-se pelo que se diz, reconhecendo que as palavras escritas, se acreditadas por outros, podem provocar consequências profundas para o bem e para o mal. E não é só isso. É preciso reconhecer que estas palavras podem ser mal interpretadas e, até certo grau, é-se responsável pelas prováveis más interpretações da mesma forma que se é pelos efeitos da versão correcta. [cont.]

junho 20, 2005

Os mesmos outros

Eu sei que são todos idiotas mas chamamos racista àquele que associa um preconceito a uma pele diferente, xenófobo a um estrangeiro, machista às mulheres. E aos que menosprezam desfigurados, marrecos, coxos, surdos, cegos, paralíticos? Estetas?

junho 17, 2005

Invariante

Mesmo com emails, chats, telemóveis, sms/mms/3Gs, blogs, os quilómetros que nos separam dos amigos continuam os mesmos.

junho 16, 2005

Distorção

A perfeição é um espelho distorcido. O que somos parece um defeito e a imagem que queremos reflectida um impossível que nos consome.

junho 14, 2005

Matemática vs. Ciência

A Matemática não é uma Ciência. A Matemática cria verdades por definição. Nesta sinfonia de padrões, tudo é tautologia. Um teorema não é uma invenção, é um quase óbvio nesse fio de implicações chamado demonstração. Na Ciência não há verdades dessas. Na Ciência não há verdades. Há somente imagens que explicam fragmentos do imenso da realidade. Nela, as teorias não são verdades por definição, são modelos, ferramentas que ajudam a lidar com os padrões de uma natureza não totalmente caótica. Na Matemática qualquer lado fraco é motivo de desconfiança, qualquer incoerência é mortal. Na Ciência, o que fica por explicar é tanto garantia contra o dogma como direcção de caminho.

junho 09, 2005

Inércia

O normal é um intricado nó de convenções muito difícil de desatar.

junho 07, 2005

Perda

Preocupamo-nos com uma eventual supremacia da vigilância. Sermos talvez observados faz-nos sentir perder os fragmentos ilegais, imorais, as fantasias indizíveis do nosso possível. Mas pouco se fala da presença deste ruído envolvente, da forma como tudo à volta nos impede de pensar, substituindo a nossa crítica por algo que nesse barulho se chama escolha. Perde-se liberdade de muitas formas. A mais assustadora não costuma ser, infelizmente, a mais insidiosa.

junho 06, 2005

Comédia

(só numa semana) Um presidente que aposta biliões de dólares no carvão para combater o desafio energético do futuro. Um senador que faz campanha numa mega-igreja ao lado de fundamentalistas religiosos (a dizerem-se uma ameaça ao Estado laico, a dizerem-se tolerantes mas chamando doentes mentais aos homossexuais). Empresas que proíbem os empregados de fumarem nas suas casas (fazendo análises periódicas à urina). Professores desaconselhados de usar tinta vermelha nas avaliações por ser traumatizante. A qualidade dos comediantes é também um reflexo da sociedade onde se inserem, e os do Daily Show são tão brilhantes como medonha é a aberração que alguns querem transformar os EUA.

junho 03, 2005

Diabolo


Hieronymus Bosch

O quanto da coragem não se mede pelo perigo que se enfrenta, mede-se sim na vitória sobre o medo que a alimenta. No receio máximo que é a morte, os outros não são mais que instrumento desse íntimo que nos termina.

junho 02, 2005

Errar é Humano

Entender não é desculpar. Desculpar não é esquecer. Esquecer é um erro.