Semana passada, assisti o
documentário Crumb (1994, 120 min., direção de Terry Zwigoff). Coincidentemente,
por esses acaso, foi parar em minhas mãos dias depois o livro em
quadrinhos Kafka de Crumb. Acho que veio bem a calhar essa ordem dada pelo cosmos...
Conheci Crumb pelas muitas referências ao mítico “Fritz, the cat”,
o gato fofinho, porém subversivo, drogadão e obsceno à cara do estereótipo que costumamos ter dos anos 1960. Lembro ainda do álbum Cheap Trills da banda Big
Brother & The Holding Company (que, além do que pouco sei era banda em que cantava Janis Joplin, antes da carreira solo).
Blues é uma coletânea de quadrinhos muito bacana que fala da relação do autor não só com este ritmo especificamente, mas com a própria música de modo geral, como: suas andanças
como colecionador de raridades do blues em pequenas cidadezinhas do sul
estadunidense e suas experiências com a banda - que tocava em
eventos como casamentos, formaturas e coisas do gênera (aqui no
Brasil, a expressão máxima são as tiazinhas em fim de noite dançando
freneticamente a canção do Cupido ou então se banhando ao brilho da lua).
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Essas poucas referências já criam a ideia de um Crumb,
que no mínimo seria uma figura muito singular. Mas, Robert Crumb é gente muito
mais excêntrica do que esse lero-lero que mandei até aqui. Muito do documentário
é focado em sua família, destacando-se os dois irmãos, os quais fazem Crumb
parecer poço de águas tranquilas. O mais velho, com uma espécie de fobia
social, ao ponto de não sair do quarto há décadas e o outro irmão, uma espécie
de mestre iogue fanático, que se deita em cama de pregos e tem hábito de
engolir um cordão e puxá-lo novamente para "limpar" suas entranhas. Rejeitados na escola, costumavam estar juntos sempre. Foi com seus irmãos "estranhos" que muito do talento de R. Crumb com os quadrinhos começou aflorar. Chegaram a editar quadrinhos artesanais conjuntamente.
Crumb gostava de desenhar pessoas de modo bem característico. Tinha medo, rejeição e raiva do feminino, apesar de deseja-las. Mas é
relevante notar que suas mulheres são no mais das vezes figuras poderosas, com
formas que, por sua vez, costumam jogar pra escanteio a padronização da beleza
feminina. A despeito das críticas, em relação a isso, acho que Crumb em sua
sinceridade e maluquice, mais estava a par de descortinar preconceitos latentes na sociedade, do que propriamente de ser um misógino, como dizem, ou algo do tipo. Num
quadrinho, que integra “Blues”, de uma página que ele faz corar de vergonha
qualquer militante libertário que no fundo, no fundo se revela machista. Faz
refletir um pouco sobre nossa hipocrisia, e a necessidade de construirmos
outras maneiras de agir, mais sensíveis à alteridade e, consequentemente, do
modo mais pleno no respeito ao outro.
Kafka era também homem de fobias. Cheio de receios quanto a mulheres, só se permitiu amar duas vezes (ou para ser mais
certeiro, uma vez e meia). No mais, as esquivava através
de proposições de namoro à distância, quase restritos a cartas, e tinha costume se
depreciar, se dizer indigno da vida e da felicidade.
Era judeu. Isso no início do
século XX, num país dividido entre checos e alemães, mas com ambas as partes antissemitas. Pra piorar não se reconhecia judeu, checo ou alemão. E, nesse sem fim de contradições, queria largar tudo e ir pra Palestina, que então judeus começavam a migrar, ao passo que negava seu próprio judaísmo.
Como Crumb, era oprimido pelo pai, um comerciante, que
achava que o filho seria uma desgraça. Kafka chegou a escrever um livro
que seria sua Carta ao Pai, no qual lhe dizia por que era tão difícil a
relação. Contudo, temeroso que era do pai, não a entregou pessoalmente. Deu-a
para mãe, que logo lhe devolveu. Kafka não parecia ser homem de forças...
Em determinada ótica Kafka e Crumb se confundem. Se o primeiro é tido como figura reservada e contida. Crumb, por sua vez, chega a ter sua vida tão publicizada a
ponto dessas suas fraquezas, extravagâncias e perversões sexuais serem expostas em documentário que participa ativamente.
Contudo, esses quadrinhos que procuro tratar, não são trabalho solo de um Crumb inspirado, e há muito do roteirista David Zane Marowitz com primoroso texto e trabalho de pesquisa e elaboração. Chega ser uma lição de criatividade de como se construir
uma narrativa articulando elementos biográficos com a obra do autor.
Sucessivamente, contos e livros como “A Metamorfose”, “O Castelo”, “O Processo”
e “A Toca” ganham sentido para uma interessantíssima caracterização do
personagem principal que é o próprio Kafka. Ou seja, ao contrário do que se
poderia imaginar (e eu quase tinha certeza) não é uma mera compilação de textos
transmutados em quadrinhos, como costuma ser no mais do mesmo. Mais que isso, é
uma belíssima biografia enriquecida com o traço certeiro e afinada com o
universo kafkiano que só alguém com a personalidade insana de Crumb poderia
realizar.
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Aliás, por falar em kafkiano, termo tão recorrentemente
usado quase beirando ao senso comum, é algo discutido pelos autores. O tal “kafkiano”
seria mal interpretado pelos “açougueiros da cultura moderna” a ponto de ser
tido como “existencialista”, “uma teoria do absurdo”, “o caos”, ou mesmo “a
busca incansável de Deus” (como queria o amigo que publicou, post mortem, a parte de sua obra então
inédita). Para Crumb e Marowitz, kafkiano, é mais do que isso, mesmo que tenha
muito desse ar melancólico e de autocondenação, é dotado de humor e que tem a “intricada ironia judaica que se esconde no
corpo e obra de Kafka” (p. 11).
Dentre semelhanças (e diferenças), Kafka e Crumb se associam por serem reversos à normatização. Não
se enquadram na imposição de valores, na rigidez dogmática das formas de agir, nem
aos seus próprios tempos. O louco Crumb, do documentário, chega a revelar que
apesar de ter vivido literalmente a lisergia sessentista, não se
adequava muito àquilo e ao contrário das dicas de como poderia se tornar mais
atraente e “comer quem desejasse”, não aderiu ao visual hippie em voga. Preferia trajar
seu chapéu e ternos “antiquados”. Kafka
era frágil, vegetariano, com mil e uma doenças, cheio de manias. Tudo aquilo
que não queria a virilidade daqueles tempos de eugenia racial e culto ao corpo brotando por
todos os lados.
Considero a obra de um e outro como questionadoras do mundo e não à toa Kafka, que chegou a ter sua obra censurada pelos estalinistas, renasceu das cinzas por sua constante crítica ao poder e autoritarismo no alvorecer da
Primavera em Praga.
Rejeitam, cada um a sua maneira, o absolutismo da
realidade (ou a imposição de uma dada forma de realismo), e apesar de
epidermicamente aparentarem serem controversos, podem ser lidos como reflexos espelhado. Em tempos que os projetos com perspectivas diferenciadas para o mundo
encontram-se abalados, caras como Kafka e Crumb podem nos ajudar a matutar de um jeito diferente...