Como Sputnik em estouro ela vem. Fogueteia dos neurônios.
Ganha um sentido e um sentimento que nunca que teve. Era ainda anos 1990, pelos
seus fins, sexta, sétima série, coisa assim.
Lá ecoa um burburinho, um buchicho. Ele toca piano, toca teclado. A professora
fica animada. Próximo tema é sobre a ditadura civil-militar no Brasil.
Ela gosta de música. Nem titubeia em propor a tarefa. Vai
ordenar de supetão que cante, toque umas três. Coitado, se ruboriza e se eleva
em ardor no seu pulmãozinho, um pouco grande, mas ainda em formação. Não vai
dar conta. Nunca fez aula de piano direito, de teclado ainda menos. Aqueles
sons MIDI são de uma chatice que nada seduz. Apresentava desde aí, nesses anos
poucos e agora longes, pouca identificação com a norma. Nunca se deu com ela bem. Odiava a obrigação
do tempo certo de treinar o piano os instrumentos. Muito mais diversão haveria em ensinar as
formigas a nadarem em vidro de Coca-Cola, testar suas resistências com
refrigerante, ou vislumbrar seu futuro de paleontólogo colecionador
das figurinhas de dinossauros que acompanhavam o chocolate. Tinha até o álbum. Outra coisa não haveria de ser.
Não tinha, no entanto, mais de ser isso por umas semanas.
Umas semanas, quando se tem 12, 13 anos, pode se traduzir em passagens de umas
duas ou três estações, às vezes com mais cara de inverno, que de verão ou primavera.
Tinha que aprender a tocar. Como ia de ser? Tentou tirar de letra de um jeito
bem rústico. A melodia não era tão primorosa, mas os acordes estavam bem
encaixotados. Tinha de dar um jeito, não podia apresentar a música daquele
jeito pros colegas. Não era nem uma, aliás, apesar de ter tirado de ouvido, uma somente. Eram três, é bom rememorar.
Mas quanto a música só a uma pessoa poderia recorrer. Seu pai... e tinha medo dele e o piano era dos sonhos
paternos que não lhe pertencia. O pai, homem que se dava de namoro ou até casório
com a música e nela se remediava de dias cansados se trancafiando no estúdio improvisado que tinha em sua casa.
O filho não era disso, se cansava tão rápido das notas das
partituras. Disciplina não era coisa dele. Quando não tinha ninguém próximo,
ele já se aventurava a auscultar pelas teclas e entranhas do instrumento, as
melodias que gostava quase de raro com sucesso. Enfastiava-se de pensar que
teria que seguir a lição designada pela professora semanalmente. Até dava-se um
jeito no final. No final mesmo. Se a aula era na sexta, no sábado que aprendia.
Mesmo que custando uns atropelos de mãos durante a execução à mestra.
Então ele seguiu pelo quartinho-estúdio. Tímido, sem jeito
de dizer. Ficou olhando o pai com sua execução musical perdida no
esquecimento. O pai para. Pergunta o que
quer. Ele lhe diz, com as palavras arranhadas e fatiadas. O pai fica a pensar
no que diz. Lembra que tem uma das músicas. Os acordes. Estão lá no livro. O
filho diz que tentou tirá-la de ouvido. O pai pede: “Toque então”. Ele se morre
pra mostrar a ele.
Os acordezinhos sem arranjo saem de um jeito bobo. Sim,
bobo. Como tudo de criança rumando adolescência é frente ao que se faz dúvida. De todo modo, o pai fica meio impressionado. Não são de tanta técnica, mas caem bem certeiros. Daí que vai dar parecer bem e o filho sente isso em confiança, o que quase nunca ousava ter.
E então que aprende com gosto que ficará no peito por tempo
até agora e vai saber pela primeira vez na vida, com essas três canções, que eram somente tarefa de escola, que nada tem que ser do jeito que está e isso apesar do mundo lá fora, apesar do mundo cá dentro e “apesar de você”. E, que mesmo com carnaval acabado, é preciso cantar! Mais que nunca, pra cidade que moro, sinto e olho
se alegrar! Foi uma feitura que pequena foi crescendo pra algo grande.
Foi nas semanas seguintes sorrindo-se de feliz, e sentiu um carinho destemido para o pai. A partir dele via que podia a música acontecer, que podia tocar ela e com ela se tocar... E se não era carinho de abraços, fazia esquecida a vontade atravessada de, ao encarar a face progenitora, virar olhos pra baixo. Tocar música na escola era um evento, mas pequenino frente aquele, e de raro aconteceria pelos tempos algo com tal similitude.
De todas as lembranças de meu pai, que não raro pululam
feito pulgas, em espaçados movimentos rápidos, de uma forma bem doída, é nessa que
tenho aprendido a me agarrar. E o tenho gratidão, por dali ter eu começado a me parir pra mim...
Pai, você não entende meus caminhos! Mas um dia entenderá. E, se conquistar graça
de alta consciência, quiçá também entenderei os seus...