"A memória viaja leve. Não leva bagagem desnecessária."
[Rubem Alves]
Entre os antigos gregos, a memória era um dom. Mnemósine, a Memória personificada, permitia ao Poeta lembrar do passado, resgatar fatos e transmiti-los aos simples mortais por meio da poesia e do canto. A narrativa oral permitia que a memória fosse compartilhada através das gerações. Assim, os grupos que não tinham registro escrito mantiveram suas culturas.
Com o advento da escrita, os fatos não dependiam da memória humana para preservar informações. Suportes de escrita como pergaminho e papel representaram uma extensão da nossa memória. Desenvolvemos meios mais sofisticados para guardar e reproduzir a memória em textos e imagens com a invenção da imprensa, que alterou novamente a memória do indivíduo e dos grupos. Registramos os conhecimentos nos livros, que passaram a desempenhar também o papel de memória coletiva.
Através da memória coletiva, sabemos que pertencemos a um grupo com um passado em comum. Nossa identidade se constitui da mistura de experiências vividas e memórias compartilhadas no grupo. Rearranjamos, estudamos, vivenciamos novas experiências e esquecemos outras. Esquecemos para dar espaço a outras informações. Num processo natural, novas informações se misturam às mais antigas e se transmutam. Isso gera mais informações e novos conhecimentos. Assim, o passado vai construindo o presente. Aprendemos e lembramos.
Para nos ajudar a lembrar, reunimos ao longo dos séculos objetos e variados registros, criamos espaços específicos para armazenamento da memória coletiva, como museus, arquivos públicos e bibliotecas. Mas a memória nunca deixou de ser estudada. A partir do século XX, as ciências ganharam novas teorias sobre o funcionamento da memória, e esses estudos repensaram conceitos como retenção, seleção e esquecimento. A retenção nos incomoda, pois preservamos apenas parte de nossas vivências. A memória é seletiva, não é simplesmente um acúmulo de tudo o que vivemos. É preciso esquecer para não sobrecarregar a memória.
Cada vez mais arranjamos meios para registrar e preservar a memória fora de nós. O computador e as novas tecnologias aumentaram esta possibilidade. Podemos gravar e consultar em arquivos digitais toda a informação produzida pela humanidade. Conseguimos que os computadores tivessem mais memória que nós. Mas também temos medo deles, já que fazemos filmes e escrevemos livros o tempo todo falando sobre o domínio dos homens pelas máquinas. Desconfiamos das nossas criações, mas confiamos na inesgotável memória delas. Não mais memorizamos números de telefones, e-mails e datas importantes. Tememos catástrofes naturais, mas uma catástrofe digital seria igualmente lamentável.
A internet facilitou o acesso global à informação. Os dados disponíveis nos milhões de páginas representam uma parcela bem grande da nossa memória social, agora dinâmica e navegável. O que parece ser muita informação pode se resumir a pouca, os milhões de títulos disponíveis não significam necessariamente ganho em sabedoria. A memória humana permite não somente conservar, mas filtrar, e isso a memória da internet não faz. Também é questionável a preservação do conhecimento no ambiente virtual, pois não há garantias de que a informação ficará lá sempre.
As novas tecnologias expandiram nossa capacidade para comunicar com mais rapidez, bilhões de páginas de informações continuam crescendo a cada segundo na internet. É uma memória infindável onde se coloca tudo. O excesso de informação nos confunde, e sua quantidade excede nossa capacidade de absorção.
Não adianta tanta informação sobre o presente se não refletimos sobre o passado. As incontáveis páginas concentram-se no presente imediato. Se procurarmos informações antigas sobre assuntos que não sejam tão populares, faremos um longo trabalho de pesquisa. Isso ajuda a distorcer a visão do mundo para os que usam a internet como única fonte de referência, pois essa grande memória parece não ter passado longínquo.
Para as novas gerações, a Escola hoje tem o papel fundamental de trazer à tona o passado, com o qual teremos lições que nos permitirão repensar o presente. Para lembrar, precisamos aprender; não há memória sem aprendizagem. E o nosso maior problema na Educação é a aprendizagem. A “Era tecnológica” pode se tornar a “Era do Esquecimento”, e toda a memória do computador de nada valerá sem a memória humana como interação. Se não aprendermos a usar as tecnologias de forma eficiente, podemos perder nossa memória coletiva. É preciso preservá-la para nós e os que virão.Solange Firmino
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Imagem: Mnemosyne, Lord F. Leighton