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quarta-feira, setembro 12, 2007

janelas abertas (5)

X. é uma mulher de 40 anos. Saiu de casa duas horas antes de entrar ao trabalho impecavelmente vestida como de resto é seu hábito. Não demora mais do que vinte minutos no trajecto e os colegas fartam-se de perguntar por que raio sai ela de casa tão cedo não tendo filhos para levar à escola e marido a quem dar o nó da gravata… X. esboça um sorriso e diz-lhes ‘quem me tira o prazer de um pequeno-almoço tranquilo na frescura da manhã, tira-me tudo’. Mas hoje bem poderia ter saído de casa quatro ou seis horas antes, visto nenhuma das bombas que tomou para adormecer ter surtido efeito.
X.
foi sempre motivo de orgulho para os pais. Nunca lhes causou qualquer embaraço, nem mesmo nas idades em que seria normal fazê-lo. Sempre a melhor aluna da escola, estudiosa e aplicada, filha amiga e companheira, profissional exímia, mulher generosa capaz de tudo pelos amigos, enfim, o desejo de qualquer casal… qualidades que, associadas a uma beleza fina e delicada e a um trato de uma simpatia só, faziam a mãe perguntar-se de onde na família teria sido ressuscitada tal combinação genética. Nunca foi necessário exigir-lhe nada, os seus actos nasciam antes de serem pedidos. Uma filha que nunca deu trabalho.
Sentou-se como sempre na mesa ao lado da janela e agradeceu num bom-dia cúmplice o café e o pão com manteiga que o senhor Y. prontamente preparou assim que viu X. apontar à porta. Enquanto o aroma do café lhe conquistava lentamente a boca o seu olhar perdia-se na luz da manhã. A cidade acordava lentamente. Do outro lado da rua, uma garotinha de 6 ou 7 anos caminhava de mochila às costas em direcção à escola. Deteve-se nela por um instante e uma lágrima de rímel desceu-lhe involuntariamente pelo rosto… murmurou: ‘minha querida, não exijas de ti mais que o coração ou nenhum se deitará contigo por amor’.

terça-feira, agosto 28, 2007

janelas abertas (4)

L. é um homem de 55 anos. Há quinze anos que está reformado por invalidez psicológica, a família preferiu assim. Nunca casou e desde a morte dos pais passou a viver na casa do irmão mais velho que lhe arranjou um biscate onde se vai entretendo e juntando mais uns tostões à magra reforma que recebe do estado.
L. quase não fala. Até um ‘bom dia’ é coisa difícil de se lhe arrancar dos lábios. Não se sabe ao certo se vive de acordo com a sua vontade; nunca abriu a boca para dizer o que queria assim como nunca se queixou do destino que a família lhe escolheu. Vive hermeticamente dobrado sobre si próprio e os seus olhos negros terrivelmente brilhantes e irrequietos como o voar de uma mosca parecem ganhar alguma tranquilidade apenas quando o vemos regressar das longas caminhadas que faz todos os dias.
Na família não há memória de alguma vez L. ter tido amigas ou amantes. Pelos trinta e poucos, as irmãs, substituíram-se à sua extrema timidez e fizeram-lhe um arranjinho com a solteirona lá do bairro. Era vê-los todos os domingos sentados no banco de pedra em frente ao café, ele sem abrir a boca debruçado sobre os joelhos e ela tagarelando a tarde inteira fazendo as perguntas e respondendo por ele. Mas nem a anafada da J. resistiu a tanta apatia e continua até hoje sozinha à espera de arranjar marido. Anos mais tarde, o primo M., que tem fama de gabiru, pegou nele e levou-o às putas, mas L. nem uma nem duas, voltou de lá sem saber o que a coisa era.
A família de L. há muito tempo que não questiona a sua estranha existência. Dão-lhe cama e roupa lavada e lá deixam o homem viver à sua maneira. Das longas e misteriosas caminhadas adivinham apenas que regressa feliz.

segunda-feira, setembro 25, 2006

janelas abertas (3)

M. é uma mulher de 72 anos. Não fala muito. Quem a conhece diz que gosta de se levantar muito cedo, aí pelas cinco horas da manhã, quando se ouve apenas o respirar da natureza. Toma um café bem quente e sai de casa ainda noite fechada enquanto os outros quinze habitantes da aldeia dormem. Pensa as galinhas, sega erva para os coelhos e ainda o sol não nasceu vai ao cemitério rezar pelos seus.
M. foi a salto para França em 70. Levava dois filhos pela mão, outro ainda no bucho, o dinheiro para o passador no soutien e no bolso da saia a morada de F., seu marido, emigrado dois anos antes para adiantar a vida.
M. não sabe ler nem escrever, fala apenas o português da terra e o francês que por lá desenrascou, mas diz quem a conhece que nas contas é infalível e que não há ninguém capaz de lhe dar a volta. Todos os anos, pelo Natal, telefona às madamas para quem fazia a ménage, todas muito bôs senhoras nas suas palavras e que lhe deram o pão e os trocos que foi juntando para construir a casa na aldeia.
M. volta do cemitério está o sol a lançar os primeiros raios sobre a serra. Acorda F. com um beijo e prepara-lhe o pequeno-almoço. Vai a casa do Ti Q., o parente mais velho da aldeia acamado há quase dois anos. Lava-o, muda-o, faz o almoço que lhe serve na boca e sai antes do meio-dia, depois de ligar o rádio a pilhas que o entretém durante a tarde. Ao cair da noite, antes de se sentar à mesa com F., corre de novo a casa do Ti Q. para lhe enfiar a sopa. Às dez horas mete-se na cama, enrosca-se em F. e espera por mais um dia.
Diz quem conhece M. que nada a faz mais feliz do que o 15 de Agosto quando os três filhos chegam de França para a romaria da aldeia. Espera-os todos os anos da mesma maneira, de pé, no início da única estrada que serve a terra, as mãos encostadas contra o peito, as lágrimas a correrem-lhe pela face e o coração aberto ao abraço tão desejado.

terça-feira, setembro 19, 2006

janelas abertas (2)

J. é um rapazinho de 6 anos. É muito educado e respeitador, gosta de honrar os ensinamentos de sua mãe. Hoje, ao entrar na sala de aula alheio ao tumulto dos colegas que se empurravam na disputa da carteira mais distante da professora, as mãos tremiam-lhe e suavam. Sabia que tinha sido ele. Não tenho culpa, foi um acidente, obrigava-se a crer em si próprio.
J. procurou um lugar vago, caminhou pela sala e em silêncio sentou-se ao lado de L.. Olhou-a na expectativa de algum conforto mas L. permanecia fria e imóvel como o resto da turma. J. levantou de novo os olhos e reparou que A. se aproximava da secretária da professora com uma bola de lona laranja furada na mão. Fui eu, pensava. A. entregou a bola à professora e apontou o braço na direcção de J. gritando convictamente, foi ele!
J. que honra os ensinamentos de sua mãe, baixou a cabeça e olhou fixamente o chão. Sentia medo e culpa. A professora caminhou na sua direcção segurando a bola de lona laranja furada na mão. Apontou-lhe um dedo flácido e amarelo à cabeça e num grito exigiu-lhe uma satisfação.
J. não ousou levantar a cabeça. As pernas tremiam-lhe. Obrigava-se ao silêncio, sabia que devia honrar os ensinamentos de sua mãe. De olhar cativo no chão, sentiu que um lago amarelo lhe nascia pelas pernas e se desenhava redondo no ângulo agudo formado pelas suas botas castanhas.

quinta-feira, setembro 14, 2006

janelas abertas (1)

M.A. é uma mulher de 35 anos. Por volta das seis da tarde quando regressava do trabalho, lembrou-se que deveria passar pelo supermercado. Tinha-se esquecido de comprar ovos e farinha na compra do mês e hoje queria oferecer um bolo a si própria. Há muito tempo que não fazia um bolo.
M.A. não tem família. Vive sozinha desde a morte da mãe. O pai nunca conheceu. Homens também não. Gosta de coisas simples, do gato, dos vasos que rega diariamente, do sol, e de vez em quando de fazer bolos. Agrada-lhe o tempo de espera enquanto o bolo coze. É como se sentisse que mesmo seguindo rigorosamente as receitas, os resultados não dependessem exclusivamente de si. Quando abre o forno e se depara com a forma e o cheiro final é sempre um momento de grande satisfação, até nas ocasiões em que o resultado não é o mais desejado. M.A. é daquelas pessoas que acha que nada acontece por acaso e que para tudo há uma solução, e portanto, não se aborrece quando o bolo sai do forno completamente queimado.
As amigas estão quase todas casadas. Algumas já têm filhos. No trabalho perguntam-lhe dia sim, dia não se já arranjou namorado. M.A. responde-lhes que se está solteira é porque Deus assim quer e que se sente feliz com a vida que tem. Esperar não é coisa que lhe cause angústia.