quinta-feira, março 30, 2006

Espasmo # 11

Após o salto, uma onda imensa engoliu-me e arrastou-me para as profundezas. Não lutei, não resisti. Num confronto direto, é preciso reconhecer quem é mais forte.
Aceitar que sou menor do que a onda – e a minha conseqüente imobilidade diante do fato – angustia-me. Durmo mal, tenho crises de choro e uma sensação de queda contínua afeta meu equilíbrio. Sinto tudo isso na calada da noite, porque quando o sol aparece, na primeira hora da manhã, sou toda serenidade.
Eu não deixaria que as mesmas águas que me purificaram um dia, e agora me tragam sem piedade, soubessem do meu desespero.

LADO B (6)


para onde vai a primavera?

Não há muito para dizer. A cidade continuava majestosa no seu fervilhar constante. Sim, porque nunca se rendeu completamente ao poder, e no meio de tanta sumptuosidade o povo foi sempre quem lhe traçou o destino. Sentia-se no metro a abarrotar de gente como nunca vi, que a excitação pulava nas ruas enquanto o magrebino metia as mãos nos bolsos dos turistas à procura de um não sei quê que lhe matasse o vício. Mesmo em tempo de chuva, a luz não deixa de brilhar, a chama não apaga, e Saint-Lazare continua lá, a confirmar os insólitos de Queneau.
Mudemos a música como se entregássemos um cordeiro ao sol, porque sinceramente, esta chuva parda, este longo céu cinzento cansam-me de morte…

ps. perguntando-me a cada instante para onde vai a primavera.

O Outro Lado (5)

quarta-feira, março 29, 2006

Confessionário (16)

E ainda bem que a vida te floresce quando sentes o colo daqueles que amas. Uma vez disseste-me que uma das tuas qualidades era nunca desistir… eu não poderia estar mais de acordo. Lembras-te do processo de transformação que te falei? Lembras-te de te dizer que a sorte ou o azar são exclusivamente matéria-prima em estado bruto, rochas prontas a ser delapidadas escrupulosamente como se tivéssemos mãos de escultor? Então, minha amiga, segue o caminho do mago, segue a sua loucura e o seu fascínio. O que o distingue dos outros não é mais do que a capacidade de sonhar…
Sabes, enquanto andava por lá lembrei-me de ti várias vezes. Partilhei com quem amo o sonho de nos reunirmos os quatro no mesmo café de Montmartre. Na hora sorrimos como se sentíssemos o futuro caminhar até nós. Depois, enquanto permitia que os rostos delicados de Botticelli me tranquilizassem a alma, sentia-te extasiada na ala oposta do museu, encantada com o mistério e a sensualidade de Afrodite, decifrando a cada curva do torso, se a Vénus (como lhe chamam), não é uma declinação da Ártemis grega ou da Diana romana. Tenho a certeza absoluta que, naquele momento, estava a escrever o futuro.
Como lembrança, deixo-te este pedaço de sonho:

“Vénus et les Grâces offrant des présents à une jeune fille”, fresco 1484(?), Sandro Botticelli

[Confessionário (15)]

quarta-feira, março 22, 2006

Confessionário (15)

Vítor, tens acompanhado o longo intervalo de (no tempo e espaço) mudez e silêncio. Conheces-me tão bem que não preciso justificar a ausência das minhas palavras.
Há muitos hábitos aos quais nos acostumamos. Fomos socializados de uma maneira tão violenta que até quando somos capazes de nos livrar dos costumes e nos apropriarmos da nossa liberdade criativa, nos sentimos subtraídos de algo.
Jung tenta explicar esse psquismo através dos símbolos, do mito, da religião. Ele afirma que somos capazes de chegar à individuação sem nos sentirmos em dívida com nossa “herança psíquica”.
Não, meu querido. Não acredito que amar seja um desses hábitos (embora muita gente consiga esse absurdo!). Amar é um exercício fecundo de criação e recriação. É preciso renovar-se para amar e ser amado.
Ontem, após reler tantas vezes tua ‘carta’, eu me permiti chorar, me permiti ser misérrima, me permiti a fraqueza, o cansaço. Nesse pranto, busquei o colo daquele que tanto amo, daquele que não usa minha fraqueza para mostrar-se forte.
Vítor, ontem conheci a face de Ágape. E isso, meu amigo, foi um encontro numinoso. Há quem viva toda existência e não passe por essa experiência libertadora/libertária.
Cheguei a casa reconfortada. Tomei um banho e senti novamente a necessidade de me expressar. Sou melhor quando as palavras me cercam. Existe um alento maravilhoso nessa relação.
No caminho de volta, ouvi V. sussurrando aos meus ouvidos e isso foi como voltar ao lar depois de uma longa viagem.
Ainda não sei o que V. quer ao relatar-me suas incursões pessoais pelo universo literário que tanto me seduz. A única certeza que tenho é que ela alinhava os fios da minha vida.

Na estante (2)

Ágape
“Você será amado no dia em que puder mostrar sua fraqueza sem que o outro se sirva dela pra afirmar sua força”. Esse amor é o mais raro, o mais precioso, o mais milagroso. Se você recua um passo, ele recua dois. Simplesmente para lhe dar mais lugar, para não esbarrar em você, para não invadir, não oprimir, para lhe deixar um pouco mais de espaço, de liberdade, de ar, e tanto mais quanto mais fraco o sentir, para não lhe impor sua potência, nem mesmo sua alegria ou seu amor, para não ocupar todo o espaço disponível, todo o ser disponível.

“Amor” in Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, André Comte-Sponville.

- (...) Mas os homens (os homens, quero dizer, os homens e as mulheres) casam-se por amor ou por ser costume? Em suma: nós amamo-nos, Maria dos Remédios, porque nos amamos do fundo da alma ou porque amar é um costume da nossa civilização? Isto é importante e não encontro resposta. Amo-te, sofreria muito se não gostasses de mim, mas... Sofria porque sem ou porque é hábito sofrer.

Bolor, Augusto Abelaira.

vou ali e já volto...

...Lu, deixo-te sozinha com a lida da casa... fica descansada, não vou demorar!...
...prometo que trago um presente... um souvenir especial da cidade que tanto amas...
até breve!

Confessionário (14)

Finalmente entendemos a essência de uma confissão. Foram necessários quase três meses para podermos falar assim, abertamente, sem medo nem pudor. Há muito que ambicionava este strip-tease da alma; a voz sussurrando ao ouvido, o segredo nu abrindo a porta. Não há que temer, minha amiga, não há que temer. Por mais de uma vez te disse que esta folha, este papel, só tem significado para nós. Então, deixemos que a caneta pouse e a mão se encarregue de a fazer deslizar… deixemos que ela traduza o pulsar do sangue sem que este tenha sido filtrado pelo cérebro. Lu, cansei-me do gosto dos outros, dos olhos dos outros, do cheiro dos outros… em direcção a norte há um vento que nos acompanha e uma pedra para nos lembrar que é de fé a liberdade. Não, não estás sozinha.

terça-feira, março 21, 2006

LADO B (5)


sublinhado (20)

"Quanto mais eu própria envelheço, mais constato que a infância e a velhice não só se tocam mas ainda são os dois estados mais profundos que nos é dado viver. A essência de um ser revela-se neles, antes ou depois dos esforços, das aspirações, das ambições da vida. A cara lisa de Michel criança e a cara burilada do velho Michel parecem-se, o que nem sempre era o caso das caras entre a juventude e a idade madura. Os olhos das crianças e os dos velhos olham com a tranquila candura de quem ainda não entrou no baile de máscaras ou de quem já dele saiu. E todo o intervalo parece um vão tumulto, uma agitação no vazio, um caos inútil pelo qual nos perguntamos por que tivemos que passar." (pág. 138)
Arquivos do Norte (Difel), Marguerite Yourcenar

Este parágrafo exerce sobre mim a força de uma profecia. Trata-se de um raciocínio que eu próprio desenvolvo com demasiada frequência. Há pessoas que sentem não pertencer a um lugar, a uma família, a um meio social… eu sinto não pertencer a um tempo, eu sinto não pertencer exactamente a esse tempo que separa a infância da velhice. Não há uma explicação, pelo menos que eu encontre, a não ser a falta de perícia em lidar com as regras do jogo dessa (ou nesta) fase da vida. Muitas vezes consigo compreender a mágoa e a revolta de um incapacitado, consigo medir a dor crónica que o consome, é a mesma dor que sinto em relação a esse intervalo que separa a pele lisa da pele enrugada, é a mesma incapacidade, a mesma paralisia.
Independentemente dos episódios da minha infância nunca me senti estrangeiro enquanto criança. Também não me sinto longe dos velhos, sempre estabeleci com eles uma espécie de dialecto secreto… as suas palavras entram-me com a mesma magia da luz que me limpa os olhos. Já em relação a este intervalo, a esta idade intermediária e comprida, “é um caos inútil” pelo qual me pergunto por que tenho de passar. Talvez eu não tenha a elegância necessária a um baile de máscaras.

Dia Mundial da Poesia

Elegia multipla

V

Não posso ouvir cantar tão friamente. Cantam
sobre a minha vida.
Trouxeram a taciturna pureza das grandes noites
do mundo.
Do antigo elemento do silêncio subiu essa canção
devastadora. Oh feroz mundo puro,
oh vida incomparável. Cantam, cantam.
Abro os olhos debaixo das águas silenciosas,
e vejo que a minha lembrança é mais remota
que tudo. Cantam friamente.
Não posso ouvir cantar.

Se disserem: a tua vida é uma roseira. Vê
como bebe no anónimo da estação.
O sangue escorrega por ti quando é altura de rosas.
Ouve: não te maravilha
a subtileza dos espinhos e folhas pequeníssimas?
- Se disserem alguma coisa, eu ficaria rico
de um nome extremo.
Não cantem, não floresçam.
Não posso sentir encher-se assim a vida
como uma canção fria e uma roseira
espalhada em mim.

Pode ser que eu fosse ilesa esta época do ano,
e minha existência de repente se tomasse
por todo esse fervor.
Vejo minha grande agudeza escoar-se até à maturidade
confluente
de um minuto de Verão. – Estaria eu
completo para a morte?
Não, não cantem essa lembrança de tudo.
Nem roseira na sangrenta delicadeza
da carne, nem o Verão com seus
símbolos de feroz plenitude.

Gostaria de pensar cada um dos meus dedos,
esta cítara descida dentro da obra.
Toda a tristeza como uma vida admirável
enchendo a eternidade.
As frias canções despovoam-me, e as roseiras
tornam desavindas as rosas
recuadas. Ouve: na tristeza do estio enorme
alui-se-me o uno sangue.
Eu próprio poderia cantar um nome masculino,
a minha vida inteira
tão forte e impura, tão preenchida pelo quente silêncio
do que se não sabe.

Não se canta e floresce. Ninguém
amadurece no meio da sua vida.
Toca-se lentamente uma parte suspensa do corpo,
e a alta tristeza purifica os dedos.
Porque um homem não é uma canção fria ou
uma roseira. Não
é um fruto como entre folhas inspiradoras.
Um homem vive uma profunda eternidade que se fecha
sobre ele, mas onde o corpo
arde para além de qualquer símbolo, sem alma e puro
como um sacrifício antigo.

- Por sobre frias canções e roseiras aterradoras,
minha carne ligada nutre o silêncio maravilhoso
de uma grande vida.

Pode ser que tudo esteja bem no plural
de um mundo intenso. Mas
o amor é outro poder, a carne
vive de sua absorta permanência. Esta vida
de que falo
não se escoa, não alimenta os superlativos
diários. É única
e perene sobre a escondida fluência
dos movimentos.

- Uma roseira, mesmo
incomparável, cobre tudo com a sua distracção vermelha.
Por detrás da noite de pendidas
rosas, a carne é triste e perfeita
como um livro.

Herberto Helder
Ou o Poema Contínuo (Assírio & Alvim)

foi-me assistido o direito de oferecer um bolero...

BOLERO
Para a Lia


“Um lugar deve existir
Uma espécie de bazar
Onde os sonhos extraviados
Vão parar
Entre escadas que fogem dos pés
E relógios que rodam pra trás
Se eu pudesse encontrar meu amor
Não voltavaJamais”
[1]

Hoje, pelo menos hoje, não aceitarei o blefe.
Rasgarei as páginas do diário de nossa história que o tempo escreveu com seu lápis impreciso e que ele mesmo – o tempo – se encarregou de apagar.
Queimarei todas as cartas. Não me furtarei a essa orgia.
Começarei pelas cartas de amor, repletas de palavras quentes e ternas que celebraram o nosso encontro, nossa paz, nosso sexo.
Depois, passarei para as cartas de ódio, venosas, pesadas, objetos cortantes que anunciaram o nosso inferno, nosso tédio.
Não me renderei à tristeza, hoje não.
Fora bossa-nova, minha fossa, solidão!
Procurarei no armário aquele vestido vermelho, lembra? Faz um esforço. Isso, esse mesmo. O vestido “indecente, de decote profundo”, profundamente vaporoso. Ainda fica muito bem em mim; evidencia minhas pernas intermináveis, exibe meu colo, anuncia meus seios.
Abrirei as janelas e portas, usarei meu mais caro perfume, estamparei aquele velho sorriso de antigamente (guardei alguns de relíquia para contar histórias, ocultar segredos ou simplesmente me fazer lembrar de quem um dia eu fui).
Espanarei o pó dos móveis e da memória, e o sol varrerá o bolor que entranhou nos poros, rugas e frestas dessa coisa que ousei chamar vida.
Encherei a casa de amigos, dos meus amigos. Todos aqueles “imprestáveis, imorais e amorais”, docemente loucos e que tornam a vida plena de alegria e sentido.
Farei ainda um último e grande sacrifício: me desfarei das músicas melancólicas e comportadas e liberarei, em volume vergonhoso, as vozes melodiosas e em tom de luxúria que abafei em embrulhos no fundo do baú.
Dançarei lascivamente, sorrirei alto, beberei champanhe, me embriagarei, perderei os limites, serei despudorada, gesticularei bastante, assumirei minhas asas e voltarei a voar.
Hoje, pelo menos hoje... enquanto não aceito o blefe, não me furto à orgia, não me rendo à tristeza.

Luciana Melo – 13/05/04 (sim, a mesma, a maravilhosa co-autora deste blogue)
[1] A moça do sonho – Chico Buarque/ Edu Lobo.

segunda-feira, março 20, 2006

O Outro Lado (4)

domingo, março 19, 2006

...uma nota para que um dia importante, um dia de reencontro (no seu significado mais profundo), seja lembrado cada vez que vasculhe o arquivo...

sexta-feira, março 17, 2006

notas e apontamentos (2)

Ela está morta e talvez mais viva do que nunca. Continua sentada lá, no mesmo banco tosco, um banco como já não há. O resto continua vazio. Os movimentos quase não existem, apenas um leve sopro na cauda do vestido de vez em quando. Principalmente quando fala, principalmente quando o ar quente da sua voz me chega aos ouvidos.
Tenho a certeza de que a conheço. Ou já ouvi falar de mulheres assim. Disseram-me que pertencia àquele lote de mulheres frívolas cujo único poder (talvez avassalador) more exclusivamente na sensualidade. Eu não acreditei. O seu discurso é demasiado bem fundamentado para a epilogarmos de frívola. Quanto à sensualidade é verdade. Talvez seja um dos seus poderes…
Das confissões que me faz tudo parece chegar como uma certeza absoluta. Parece não ter dúvidas sobre nada. Parece saber que fez a análise correcta do passado. Assume com coragem os seus erros e omissões, bem como as opções que a conduziram à felicidade ou ao desespero. O seu monólogo, ou diálogo porque fala comigo, corresponde ao de alguém que leu o livro essencial e que, depois dele, um outro qualquer, será sempre um pormenor sem importância. Fala-me com a certeza de saber o que diz, não hesita nunca. Uma segurança quase cruel, um dogma que por vezes me assusta. Por baixo da sensualidade habita nela uma mulher austera… e uma mulher austera dificilmente pode ser considerada frívola.

sublinhado (19)

"Mas Michel-Charles não é um grande homem. Defini-lo-ia como um homem banal, se a experiência não me ensinasse que não há homens banais. Também nos ensina que cada um atravessa ao longo da sua vida uma série de provas iniciáticas. Os que por elas passam com conhecimento de causa são raros, e costumam esquecer depressa. E os que excepcionalmente se lembram deixam muitas vezes de tirar partido delas." (pág. 103)
Arquivos do Norte (Difel), Marguerite Yourcenar

sublinhado (18)

"Um episódio da viagem à Sicília merece menção à parte. Em presença de um acontecimento que o perturbou profundamente, Michel-Charles, no seu sólido e assaz banal realismo, consegue por vezes, excepcionalmente, aquilo que é a finalidade de todo o escritor: transmitir uma impressão que jamais será esquecida." (pág. 101)
Arquivos do Norte (Difel), Marguerite Yourcenar

terça-feira, março 14, 2006

LADO B (4)


O diário de G.H. (5)

O reverso da medalha

Não sabia o que fazer. Estava em choque.
Preocupações menores acorreram ao pensamento: “ficarei com o corpo tatuado?”, “nunca mais poderei usar um decote?”.
O pranto explodiu, um medo repentino tomou-me de assalto, contudo, instantaneamente fui pensando em algo para me acalmar e comecei a cantarolar uma canção. Aos poucos já respirava normalmente.
Corri para a sala, procurei na estante o dicionário de mitos. Artêmis, Artêmis... Artêmis! Achei. A tal coisa havia grafado o nome de forma errada.

“Tida como virgem e defensora da pureza, era também protetora das parturientes e estava ligada a ritos de fecundidade; na Ática, enfatizou-se seu caráter de "senhora das feras". Apesar dessa imagem protetora, Artêmis exibia facetas cruéis: matou o caçador Órion; condenou à morte a ninfa Calisto por deixar-se seduzir por Zeus; transformou Acteão em cervo para ser despedaçado por sua própria matilha e, com Apolo, exterminou os filhos de Níobe e Anfião, para vingar uma suposta afronta.”

Lembrava-me que a morte de Orion havia sido uma fatalidade, um ardil preparado por Apolo, mas isso não vinha ao caso agora. O que essa outra queria me dizer?
As costas voltaram a arder e busquei novamente o espelho.
Gritei para ela ouvir:
- Não quero que se acostume a isso. Meu corpo não é seu livro de cabeceira!
A ardência cedeu prontamente. Olhei através do espelho e minha pele estava novamente lisa, imaculada.
Vesti-me e saí de casa o mais rápido possível.
Entrei no carro, liguei o rádio e dei a partida. Distraí-me ouvindo as músicas e quando percebi já havia passado do bar. Olhei pelo retrovisor e... claro, a palavra era outra!


Confessionário (13)

Como não lembrar de tão intensa imagem, Vítor? Ela ficou gravada em mim.
Lembro também da referência que fizeste ao meu respeito, incluindo nossa querida e saudosa V. na conversa... Tenho ainda guardado comigo o e-mail em que me descreves o surgimento dessas vozes.
Eu não tenho dúvidas de que ela, a tal mulher, precisa exercitar as asas.
Mais uma vez nos realimentamos em nossos diálogos, não é mesmo? Não sabes como isso minimiza a distância que nos separa! Como conforta meu coração saber que não estamos sozinhos no mundo, saber que nossa essência compartilha valores em comum.
Bem, se era pra ser uma confissão, hoje faço jus à série.

sublinhado (17)

"Entre todos estes quadros, a Hélène Fourment nua do Museu de Viena nos persegue, por razões mais pictóricas do que eróticas. Muitos pintores haviam mostrado sem véus a sua mulher ou amante, mas os motivos e as decorações mitológicas (como muitas vezes no próprio Rubens) colocavam essas deusas num Olímpo de convenção. Sobretudo, nos mestres do desenho e do contorno, a linha ideal à volta de um corpo nu vestia-o, por assim dizer. Desta vez, trata-se menos de um corpo do que de carne. Esta mulher quente e húmida parece sair de um banho ou de uma alcova. O seu gesto é o de uma pessoa que, ouvindo bater à porta, deita ao acaso a primeira coisa sobre os ombros, mas o grande estilo do pintor evita-lhe qualquer afectação de pudor, provocante ou insípida. É preciso olhá-la vinte vezes e jogar o velho jogo que consiste em reencontrar em toda a obra de arte os motivos eternos para nos apercebermos de que a pose dos braços é, com uma ligeira modificação, a da Vénus de Médicis, mas esta forma abundante não é nem marmórea nem clássica. A pele com que se cobre e de que o seu corpo extravasa por todos os lados dá-lhe antes o ar de uma ursa mitológica. Os seios um pouco moles, como cabaças, as pregas do torso, o ventre talvez arredondado por um começo de gravidez, os joelhos com covas, lembram a turgidez da massa que levanta. Baudelaire pensava sem dúvida nela quando evocava, a propósito das mulheres de Rubens, «o travesseiro de carne fresca», e o tecido feminino «onde a vida aflui»; parece com efeito que bastaria pousar o dedo nesta pele para nela fazer surgir uma mancha cor-de-rosa. Rubens nunca se separou desta tela que só depois da sua morte passou para as colecções dos Habsburgos; talvez experimentasse algum escrúpulo em ter feito de rei Candaules. Este só exibiu a mulher a um amigo íntimo: Hélène em Viena pertence, de ora em diante, ao primeiro turista." (pág. 58)
Arquivos do Norte (Difel), Marguerite Yourcenar
"Hélène Fourment nua", Rubens

cenas da vida quotidiana

No mesmo dia em que o sol nos convida a um café mais prolongado, um carro, de estéreo afinado, em vez de hip-hop ou kizomba, toca Pachelbel amplificado, enquanto Yourcenar nos ensina a apreciar Rubens.

segunda-feira, março 13, 2006

O Outro Lado (3)

sublinhado (16)

"O homem com os seus poderes que, avaliem-se como se avaliarem, constituem uma anomalia no conjunto das coisas, com o seu dom temível de ir mais longe no bem e no mal do que o resto das espécies vivas por nós conhecidas, com a sua horrível e sublime faculdade de escolha."(pág. 17)
Arquivos do Norte (Difel), Marguerite Yourcenar
ps. Por vezes penso como foi acertado o nome que demos a este blogue, na altura em que a Lu o sugeriu e apesar de ter adorado a ideia, questionei-me sobre a ligação junguiana do termo. Hoje tenho a certeza de que foi o nome certo, as provas sucedem-se em catadupa. Por exemplo, no mesmo dia em que escolho publicar as notas e apontamentos de "De quem me fala" (acto que ponderei bastante nos últimos dias) deparo-me com esta citação da Yourcenar e com o texto do Henrique publicado parcialmente mais em baixo. Bem, perguntam-me, e qual a relação entre esses acontecimentos? Todos eles giram em torno da escolha, do acto de optar e decidir, tão "horrível e sublime". Tinha lido "Souvenirs Pieux", o primeiro livro de memórias de Yourcenar, dedicado à família materna, há uns 3 anos, mais ou menos. Na altura comprei os outros dois volumes ("Arquivos do Norte" e "O quê? A eternidade?"), o díptico dedicado à familia paterna da autora. Deixei-os encostados durante todo este tempo, não sabendo muito bem porquê. Hoje chamaram-me de novo e eu entendi imediatamente a razão. Há um tempo para tudo, e uma razão para as coisas acontecerem. Apesar da nossa capacidade de escolha, e da vontade de deixarmos o puzzle por acabar, como diz o Henrique, há uma certa inevitabilidade na cadência, no ritmo, na razão e na forma como as coisas acontecem. Não sei bem se há um porquê para tudo o que nos acontece, mas tenho a certeza que há sempre um conhecimento qualquer a reter. Há quem lhes chame "coincidências"... eu prefiro chamar-lhes "reflexões sobre a capacidade de surpreender o tempo"... longo, não?!

notas e apontamentos (1)

Decidi anotar o que me vai contando. Esta voz murmura-me há mais de quatro ou cinco anos. Não sei bem explicar como tudo aconteceu, sei que foi depois de um filme. Foi numa daquelas noites de ócio em que vamos deixando absorver-nos pela televisão. O filme era alemão e eu não sei o nome. Não sei quem realizou. Não sei quem eram os actores. Não sei nada sobre o filme. Sei somente que aquela mulher é esta voz, e sei que é essa voz que conta toda a história.
No filme ela era apaixonada por um poeta, e o poeta continua na história que me conta. Aparece um rapaz do local onde me fala, alguém com quem ela simpatiza, alguém com quem ela se identifica, um ser que atenua a sua solidão. Do local onde me fala só vem o rapaz, o resto está vazio. É como se existisse no vazio vestida de seda vermelha, sentada num banco tosco, um banco e não uma cadeira, um banco sem costas e tosco, daqueles como já não há nas aldeias e que costumavam colocar-se em redor do borralho. Ela está tranquila, fala sem raiva, não há ódio nas suas palavras. Fala sempre pausadamente, tranquilamente. Apesar da serenidade, nem tudo o que diz é tranquilo. Há episódios que lembrados criam frio na barriga de tão cruéis que são. Há no seu discurso uma espécie de justiça implacável, como se fizesse da língua uma balança. Se fosse necessário colocar a morte num dos pratos, ela não hesitaria… ela faz-se respeitar dessa maneira. Ela diz-me que pagar ou cobrar o que se deve, é o único ensinamento válido das vidas que teve. Eu não sei se é assim, mas admiro a sua coragem. Continua lá, serena, sentada no banco de madeira tosco, vestida de seda vermelha, imperturbável a contar-me a sua história.

Foi depois do filme, que nem sei o nome, quando ela me falou pela primeira vez. Sem tirar qualquer nota da ficha técnica (ainda hoje não sei porque deixei escapar essa informação, eu costumo anotar nos cadernos as coisas que me marcam), eu escrevi apenas:

conheço-te as sedas, prevejo nelas a tua morte. escuto o teu impulso descontrolado e talvez porque entre em ti percebo a ausência do poema. olho-te naquele rio, fria, tremendo por compaixão, iluminando sem forças a luta que te fez resistir nas décadas do nada. morreste feliz, tal como eu morrerei, porque acreditaste em tudo – no branco, no liso, na água e no vento. ele sofreu no dia em que caíste. lembrou-se do casaco enrugado. não. da mortalha enrugada.

Talvez a ficha técnica do filme não sirva para nada. Talvez a informação necessária tenha sido esse texto que escrevi na altura. Tudo o resto parece acessório e dispensável ao decorrer da história. Esforcei-me durante algum tempo na pesquisa desses elementos, em vão… nem um registo nas grelhas televisivas. Nada, absolutamente nada. Não vou, nem devo procurar mais. Ela disse-me que tudo deveria ser assim.

sábado, março 11, 2006

Confessionário (12)

Lembras-te daquela mulher que te falei?… aquela de vestido vermelho que um dia resolve acariciar os pés no húmus do Saône até sentir a eternidade entrar-lhe no peito? Lembras-te dela? Aquela a quem roubaram a juventude e a inocência quando o tempo ainda não o tinha permitido… ela não se calou Lu… ela continua a falar-me todos os dias. Ao ler a tua última confissão ela regressou desenfreadamente. Talvez ela seja uma pessoa especial, talvez possua um enorme par de asas, talvez o mundo mereça saber da sua existência… talvez…
Tenho a sensação “de quem me fala” pedir-me para contar mais do que um simples poema… parece que me ordenam a contar essa história… querem forçosamente que o faça e dizem que só me libertam quando cumprir as suas ordens. Eu não sei se o quero fazer… não sei mesmo. Talvez registe em género de nota os segredos que me vão contando… talvez essas notas possam um dia receber um corpo.

sexta-feira, março 10, 2006

Espasmos # 10

Caminhei até o tombadilho e não resistindo aos apelos profundos daquele mar azul, saltei.
Saltei como saltam os atletas: corpo rijo, nenhum receio, movimento preciso e uma alegria sem precedentes.
Compreendes agora o que te disse no princípio, quando tudo em mim era correnteza?
Não me aborrecem as tormentas, as águas turvas não me confundem... o que me traga a alma é a ausência dos ventos. Os mesmos ventos que movem os moinhos e fazem meus sentimentos viajar.
É só no fundo de nós mesmos que a vida acontece.

quarta-feira, março 08, 2006

Ainda "Capote"...

Em relação a "Capote", penso que os dois personagens usam-se e manipulam-se mutuamente. O assassino, Perry Smith, usa Truman, de forma que, através do romance, ele possa ser visto pela sociedade com alguma humanidade e dignidade (caso contrário seria visto como um criminoso, um monstro abominável da mesma estirpe de outros serial killers que conhecemos), por sua vez Capote precisa dele para escrever o romance que o vai catapultar. Nenhum dos dois é totalmente inocente em toda a história. Cada um deu de si o que lhe interessava dar, cada um jogou de forma a obter o resultado mais satisfatório para si próprio. A mais valia do filme reside exactamente nesse ponto, ao escolherem entrar no jogo, ao aceitarem o desafio, os dois personagens não imaginam a complexidade das regras com que são obrigados a jogar – o campo das relações humanas é muito mais ambíguo do que se possa imaginar à partida e, no momento em que se estabelece um sentimento de identificação entre os dois, deixam definitivamente de ter poder e domínio um sobre o outro. No fundo, há uma espécie de “injustiça” que se arrasta continuamente sobre a história… a injustiça do passado dos dois personagens, a injustiça da família assassinada, a injustiça da condenação à morte, a injustiça transformada em remorso no peito de Truman que o impede de continuar a viver. A última frase do filme, uma citação de Capote que não consegui transcrever, dizia mais ou menos isto: “Chora-se mais depressa por uma prece atendida do que por uma não ouvida”. No fundo ele consegue dar um fim ao que se propôs, acabar “In cold blood”, e teve realmente o sucesso e o reconhecimento que projectara à partida, mas talvez o preço da ambição, o resgate da fama, tenha sido caro demais.
Quanto à interpretação e realização, o trabalho dos actores foi bastante melhor do que o do realizador. Diga-se o que se disser (ainda mais com o Oscar) Philip Seymour Hoffman é um grande actor… e não precisávamos de Capote para o provar, a sua prestação discreta em "Magnolia" era suficiente para o sabermos.
Ps. Esta fotografia é o resumo do filme, os dois representam constantemente. Apesar disso, a maldade "acordeirada" de Perry Smith e a vaidade de Truman Capote são irreversivelmente perceptíveis na imagem.

Fui ver "Capote" e ocorreu-me a pergunta: quem usa quem em toda aquela história? Ainda lá volto...

terça-feira, março 07, 2006

Isabel de Castro

Ontem, apanhei por acaso o documentário/entrevista sobre a actriz Isabel de Castro que passou na RTP. Apesar de a conhecer apenas de alguns dos últimos filmes em que participou e do seu trabalho na televisão, Isabel de Castro era uma daquelas pessoas que me punha em sentido, alguém por quem tinha (e tenho sempre que a revejo no ecrã) um respeito instintivo; alguém que quando escuto, obriga-me a calar e a beber tudo o que tem para dizer, quer como Isabel, quer como uma das suas personagens.
Do filme de ontem ficou-me o seu olhar terno e o seu sorriso encantador e ficaram-me frases que hoje volta e meia me vêm à cabeça: “dizem-me que não, mas eu sempre fui uma pessoa tímida”; “não sou de pedir… e não é por orgulho… nunca fui atrás de nada… as coisas acabaram sempre por vir ter comigo… mas errando sou capaz de pedir desculpa… isso sim sou capaz de fazer”; “não acredito em paixões, dizem que sou uma apaixonada… isso não é verdade… acredito na ternura e na amizade… que são sentimentos duradouros… talvez seja isso o amor”*.
Deixo-vos a fotografia de uma Isabel nova, uma Isabel que talvez não faça parte do nosso imaginário, uma Isabel que não é em nada mais encantadora do que a Isabel velha que guardamos na memória, mas que nos lembra que Portugal teve as suas divas.

*As frases foram tiradas de memória do que assisti no documentário, é bem provável que as palavras tenham uma ordem diferente, não houve, no entanto, qualquer alteração do sentido do discurso de Isabel de Castro.

LADO B (3)


segunda-feira, março 06, 2006

O Outro Lado (2)

sexta-feira, março 03, 2006

volta e meia regresso a este poema...

"Os Pratos da Balança

Por entre as rochas um rapaz, nas mãos levando uma balança, avança em direcção ao mar. Vai procurar pesá-lo. Num dos pratos, o mar há-de revolver-se, debater-se, rebentar, há-de trazer à superfície a força das entranhas e atrair o céu, há-de-o fazer precipitar-se até com ele se confundir, e as próprias rochas através das quais o rapaz segue hão-de pesar no prato ferozmente. Imperturbável, o rapaz colocará no outro prato o seu sorriso."
Poesia Completa 79-94 (D. Quixote), Luís Miguel Nava

O Diário de G.H. (4)

As imagens


Há dias encaro esse band-aid com um misto de medo e curiosidade.
Ando na casa inteira num vai-e-vem desmesurado, estou ansiosa e impaciente para as visitas. Receio que elas desconfiem do meu caráter duplo e comecem a me encarar com desconfiança.
É certo que não podia viver assim, prisioneira em meu próprio lar ou como um refém dando refúgio ao bandido. E por que eu acho que isso que está em mim é um inimigo? Como posso temer a mim mesma?
Fui até a gaveta da penteadeira e tirei um espelho desses que aumentam. Posicionei sua face em frente ao machucadinho e, de olhos fechados, puxei o band-aid de uma vez só. Abri os olhos e a feridinha tinha cicatrizado!
Fiquei intragável por alguns dias, procurando no peito um vestígio do machucado que pudesse me revelar os tais olhos.
Vai ver a minha outra teve medo de mim e cimentou internamente as paredes para não ser mais incomodada. Sinto dizer que é uma bobagem, pois agora estou decidida a saber mais dessa criatura e não vou descansar enquanto não encontrá-la novamente.
Decidida a esquecer a obsessão, nem que fosse por um curto período, resolvi sair de casa e ver pessoas. Foi então que ao prender os cabelos num rabo de cavalo a fim de me maquiar, aproximei-me bem do espelho. Senti que por trás dos meus olhos um outro par de olhos me observava, atento. Puxei a cadeira para mais perto, mas eles já não estavam lá. De repente, uma ardência nas costas, virei-me abruptamente.
Estava lá grafado na pele: A I R T E M I S.

Confessionário (11)

Querido, existem muitos indicadores que revelam a intensidade de uma relação. Ontem, vivi um momento único de revelação e o indicador era algo tão sofrível: a dor de uma separação.
Observei aquela festa e por trás de tantos sorrisos e abraços sinceros eu vi a tristeza fazendo graça para disfarçar o pranto, notei o esforço descomunal que é segurar a lágrima no olho.
Sou péssima para despedidas, mas tenho sempre em mente as coisas boas e duráveis e apego-me a elas para não fraquejar, mas ontem não deu...
Chorei ao ver aquele rosto tão terno e vermelho de emoção vindo em minha direção; tentei roubar alguns parcos segundos do seu olhar paterno; guardar o calor do abraço que tantas vezes me salvou do frio da minha alma; reter nas mãos a oferta de um conselho, de um afago; gravar o som de sua voz rouca e reconfortante...
Não sei quando teremos uma próxima vez, querido, mas apesar da dor e do meu egoísmo pela sua partida, resta um pontinha de alegria por sabê-lo vencedor.
Pessoas especiais assim não devem estar fixas à terra. Ao invés de raízes profundas, elas possuem um enorme par de asas porque o mundo merece saber de sua existência.

...tomados de assalto pelas nuvens

Hoje foi um daqueles dias em que a electricidade tomou conta do ar. A manhã em polvorosa, os carros encavalitando-se em apitos nervosos, os pássaros em bandos agitados descrevendo rotas dignas de festivais aéreos, o pacote de açúcar e do pau de canela colando-se às mãos, e nós transformados em ilusionistas-por-um-dia pela santa electrostática. Hoje foi um daqueles dias em que a minha vida parece ter acompanhado a atmosfera. Exausto, digo que foi bom assim. Exausto, desejo que seja sempre assim. E deleito-me (agora por mais de cinco segundos) a decifrar o que as aves escreveram no céu.

quarta-feira, março 01, 2006