É admirável, no estilo, com a sintaxe que lhe é própria, a forma como Câmara Cascudo descreve o nascimento do poeta Ferreira Itajubá: “Na quente apoteose do meio-dia, quando agosto rodava para o sul as suas lufadas fortes, no dia 21, filho de pescadores, nascia Manuel Virgílio Ferreira Itajubá, o primeiro e último Minnesinger como lhe chamou Severino Silva, o inconsciente Felibre como lho classificou Angione Costa, o derradeiro menestrel que possuiu o Rio Grande do Norte”.
É lamentável como, na passagem de seus cem anos de morte, a cidade sequer teve o cuidado de lembrá-lo como ele merecia. Entretanto, para não passar em brancas nuvens, a poesia do mestiço natalense foi resgatada pela memória e pela louvável iniciativa do escritor Racine Santos, que colocou no circuito midiático impresso a revista Trapiá com matéria de capa intitulada “A tristíssima solidão de Ferreira Itajubá”. Nela há depoimentos de vários intelectuais potiguares enfatizando a importância do “poeta dos lugares estranhos”.
Pelo que se conhece, a primeira edição de suas poesias completas ocorre em 1927, sendo a segunda, sob a responsabilidade da Fundação José Augusto, em 1965. Assim, nestes cem anos de morte, completam-se 47 anos dessa segunda edição. Depois disso, não se cuidou de organizar nenhuma outra edição que pudesse possibilitar a merecida recepção de uma poesia que é reconhecida como uma das mais importantes da produção poética norte-rio-grandense. Instaurou-se um verdadeiro “processo de olvido”, assim podemos falar com o crítico mexicano Octavio Paz, quando, ao escrever sobre poesia e vida de Sór Juana Inés de La Cruz, diz: “Um autor não-lido é um autor vítima da pior censura - a da indiferença. É uma censura mais eficaz que a do Índice Eclesiástico”. A conhecida frase de Mário de Andrade (de uma crônica publicada em seu Os Filhos da Candinha), “O Brasil precisa conhecer melhor Ferreira Itajubá”, torna-se agora mais do que nunca necessária para o resgate dessa poesia, colocando um ponto final nessa censura-indiferença.
Situando-o em sua época, Esmeraldo Siqueira, no prefácio da segunda edição, informa-nos que “dificultavam-lhe até o consolo da poesia, porque os seus poemas, quando não eram recusados pelos redatores d’A República, órgão oficial e folha mais importante da época, saíam estampados nos recantos menos lidos do jornal ou na coluna das Solicitadas”. Isso sublinha fortemente a recusa, o olhar d’esguelha (essa expressão é de Nilson Patriota) sobre o poeta. O olhar de seus contemporâneos continua firme, hoje, a denunciar a censura, a “mera injustiça cabocla”, de que reclama o mencionado crítico potiguar. Parece que a forma enviesada de olhá-lo não se limitava apenas a sua vida, mas também a sua obra. Ponho entre aspas o que Câmara Cascudo observa: “Olhavam-no como quem olha um animal bonito e mau”.
Em um de seus sonetos, escreve o poeta: Piso outra vez o chão do velho abrigo:/Nem uma flor na quadra da vidima,/Quanto mais quem me estenda o colo amigo!”. A expressão romântica da “solidão tristíssima”, resgatada por Racine Santos, e que faz eco na voz de outros que leram e estudaram o que Itajubá produziu, expõe traços desse sentimento, que é o de um sujeito cujo lugar é questionado. Nilson Patriota, um de seus melhores leitores, diz que “produto nativo puro, autêntica expressão do povo rude e bom, Itajubá não encontrou guarida na província. Por mais que se esforçasse, haveria de permanecer em ‘seu lugar’”. Por isso sempre me vem a pergunta: qual o lugar da poesia de Itajubá? Incontestavelemente romântico, mesmo que tardio, toda a sua produção poética, embora com altos e baixos, ressalta um lugar nômade. Talvez seja isso o que caracterize o desejo de viajar, de ser viajante, sair da terra amada, em busca de uma compensação pessoal para sua angústia.
Mas o mestiço Itajubá era pessoalmente alegre, incômodo, inquieto, é o que dizem os depoimentos. E bastante centrado na geografia de sua cidade, que canta inclusive no poema, cujo título é Terra Natal. A tristeza romântica se desenhava nos seus versos como um motivo principal que movia a sua criação. Diz-se mesmo que seus versos são felizes, embora se identifique essa “tropical melancolia”, para lembrar aqui Torquato Neto. Talvez seja esse sentimento, que é mostrado no verso torquatiano, a força criativa do espírito inquieto do romântico mestiço, que traça esse lirismo com cheiro da terra, da maresia, de “um ruído de uns coqueiros da ribamar”.
“Rude”, “nativo”, “coração simples”, “diamante bruto” são expressões correntes na crítica que leu e teceu comentários sobre a poesia itajubalina. Ainda abrindo aspas, cito aqui Tarcísio Gurgel: “O seu rude talento seria aceito pela elite intelectual, ainda cheia de ranços aristocráticos, apenas quando Henrique Castriciano escreveu ali um testemunho elogioso sobre o autor de Terra Natal”. O apadrinhamento ilustre de um intelectual da elite local permite uma certa visibilidade ao poeta inculto, garantindo-lhe um lugar no cânone literário potiguar. Mas mesmo que esse lugar seja visível, até que ponto lhe garante uma legitimidade? A lírica inculta, de Itajubá, misturada de parnasianismo e romantismo, com traços de acento simbolista (segundo uma certa visão), será relativizada e questionada por sua “pobreza vocabular”. Seria mesmo aceitável essa leitura? Ou seria apenas uma recepção preconceituosa, efeito do olhar de viés, que recusa uma lírica produzida por um lírico rude?
O crítico Edgar Barbosa utiliza-se de uma expressão curiosa para configurar a imagem do poeta de Terra Natal, chamando-lhe de “o grande bárbaro norte-rio-grandense”. Considerando-se que a figura do bárbaro foi inventada, no mundo da cultura clássica, para indicar aqueles que estavam fora da civilização e da cultura dominante da época, o estrangeiro era visto como primitivo, um inculto, um monstro, uma ameaça. Esse outro, que era olhado e tido como superior, constituía-se um alvo negativo do olhar civilizador. Dessa forma, o “bárbaro” potiguar, um “desgraçado pária social” (como mostra o prefaciador da segunda edição), tinha suas dificuldades para se integrar a esse mundo da elite intelectual que, vendo-o como rude e analfabeto, recusava a fatura poética de seus versos, vistos como mal construídos, tecnicamente defeituosos. O “bárbaro” não sabia dominar os procedimentos literários correntes e, ainda mais, tecendo uma lírica anacrônica, pois romântica fora de época.
Esta reedição de suas poesias completas, fruto da iniciativa de Abimael Silva, merece um brinde. Surge para evidenciar a qualidade literária dos versos de Ferreira Itajubá, poeta que, com sua marca inclassificável, não se sujeita às normas confinadoras dos modelos disponíveis com os quais ele dialogou, desenhando com seu traço as imagens da terra natal que amou e soube cantar como poucos. Esta reedição traz os livros Terra Natal (poema), e Harmonias do Norte (poesias esparsas), a fim de que se reverta a indiferença, provocando uma recepção à altura de seu merecimento como uma proposta que possa instigar uma revisão do “processo de olvido”.
Natal, outubro de 2012