Apesar das aparentes desvantagens, nascer numa família funerária não é tão mau quanto isso: os carros funerários têm as dimensões perfeitas para levar pranchas no - este sim - lugar do morto. Perante a silhueta da deathsurfvan, pode até surgir uma mistura de desconfiança e respeito, culminando no apelido de "anjo da morte".
Outro benefício são os contactos com os materiais. Enquanto as outras miúdas cresciam com laçinhos cor-de-rosa no cabelo, no meu refugiavam-se aparas de madeira. Cedo comecei a fazer as minhas próprias pranchas de balsa, e quando chegou o escândalo da Clark Foam, já andava eu há anos a fazer pranchas a partir de cascas de amêndoa, à semelhança dos caixões espanhóis.
Inicialmente, foi difícil convencer la família a aprovar esta prática: temiam perder-me demasiado cedo para o grande mar salgado, o que teria um impacto negativo no negócio familiar. Escondia quilhas e ferramentas nos caixões em construção, fazia capas com o cetim dos forros, utilizava cruzes como réguas. Foi inicialmente controverso pintar de azul uma das pequenas salas - o meu pequeno Céu -, o meu pai zangou-se por lhes chamar death boards®, minha mãe puxou os cabelos com o deck da minha primeira black beauty. Who cares. enquanto estivesse viva, arranjaria maneira de continuar a dar nas pranchas. Depois de morta, bem, também ninguém me poderia impedir. E com o passar do tempo, a familia aquidesceu.
Durante as férias de Verão, aprendi a evitar o crowd da época surfando apenas de noite. Não que fosse da minha preferência, até porque de noite não vendem gelados na praia - e eu gosto de gelados -, mas o negócio familiar é pequeno, e de dia tinha de trabalhar como coveira no cemitério da aldeia.
O mar nocturno tem os seus encantos, e menos dependentes nos tornamos dos olhos; como aprendi com Sunn, nele vivem os nossos ancestrais. E como aprendi às custas da minha própria experiência, também nele surfam.
Num primeiro amanhecer de nevoeiro, vi um cadáver dropinar um idiota cheio de autocolantes na prancha. Riu-se até chegar à areia, de mandíbula solta, enquanto o outro esbracejava, apanhava com a série toda na testa, perto perto do afogamento.
Passámos a chamar "funny games" a essas incursões nocturnas - chegámos até a pintar esqueletos nos nossos fatos com tinta fosfurescente, de forma a nos podermos vislumbrar durante noites de menos lua. Seria um estranho espectáculo, caso alguém nos visse: meia dúzia de adolescentes treslocados vestidos de mortos, a dropinarem mortos e vivos, a rirem-se que nem uns perdidos. A proximidade acabou por ressalvar em cumplicidade, fizémos alguns amigos entre os mortos, que nos ensinaram os truques que os vivos não tinham, talvez por falta de experiência, ou por falta de tempo para a adquirir.
Também com os mortos fizémos algumas boas viagens pelo norte. No único parque de campismo onde nos deixaram entrar, acordámos na manhã seguinte com o carro coberto de flores. Apanhámos um dos melhores swells dos últimos anos, e em sua honra ainda dei um piroso acabamento floral à última single fin que me saiu das mãos. Foi um sacrifício ter de conviver com narcisos amarelos durante 2 semanas, enquanto fazia os esboços do desenho. Primeiro, porque sou alérgica - e à custa de tanto espirro, as flores ficaram tão esborratadas como um Monet de 3ª categoria. Segundo, porque detesto pranchas com flores. Terceiro, porque a quantidade de pólen no ar transformou a minha sala do Céu numa mistura alucinogénica de amarelo com azul, formando remoinhos verdes consoante lhe dava a luz, e entre espirros e assombros acabei por passar esse tempo no maior delírio ao estilo de Hunter S. Thompson. A prancha, essa, de tão psicadélica, jamais a consegui vender.
---------------------------------
notas:
*Esses eram outros.
- Funny Games é também o título de um filme de morte.
(Este texto era originalmente dedicado ao Hunter S. Thompson.)
(23/02/2006)
Friday, December 15, 2006
Through the Looking Glass*
Era Novembro. A cidade nocturna energizava movimento, seres estranhos, cheiros fétidos e poesia. Prostitutas e proxenetas, vagabundos e violinistas, gente dos copos e ocasionais da noite. Mergulho na cidade, faço parte dela; de alguma forma, também ela faz parte de mim. Há uma simbiose - mas não nos completamos. Admiro-a, mas não a amo.
Caminhando por entre ruas e vielas, tento sempre descobrir onde está o mar, onde fica localizado, onde se entrega e se abre. Há uma festa, igual às festas que existem em qualquer parte do mundo, cheia de gente que fala de coisas nas quais não me consigo fixar. Encontro-me perfeitamente incapaz de me interessar ou dar continuidade a qualquer tema, toda a minha concentração escapa-se-me para o que me espera, no momento de libertação matinal que se seguirá a todos aqueles rostos estranhos, regados a álcool, que naquela casa celebram e revelam toda a nossa comum humanidade.
Há um jardim abandonado – processo a localização do mar distante – e tudo é um sonho. E tudo será um sonho até à madrugada despertar, até que gotas de água salgada me entrem pelas orelhas e olhos a horas inoportunas.
Até à hora do milagre.
Saio da festa, feliz por o cansaço não pesar em demasia. Pego no carro, ainda é noite, uma noite limpa e estrelar, fria como convém, e sigo para aquela praia.
A hora do milagre é múltipla e estende-se por inúmeros momentos. É a hora em que as pessoas das festas e dos bares entram numa dimensão paralela, quando acabam por se esquecer de quem são; e fazem coisas que, noutras circunstâncias, talvez não fizessem. É a hora do vómito, do último copo com os amigos, da derradeira tentativa de engate, do bocejo do barman. Do momento em que o espaço deixa de parecer tão bonito e as pessoas tão esplenderosas.
É também a hora em que ainda não há ninguém na praia. Há eu, naquele momento, e isso basta-me. Antes da primeira claridade chegar, por entre árvores do bosque e o sussurrar dos primeiros pássaros da manhã, há um momento em que o mundo pára –
- e convém estar em frente ao mar, caso o tudo termine realmente no agora. O instante em que se duvida, corporalmente, que o dia vá efectivamente nascer.
(E se ficássemos para sempre na pré-penumbra?)
A hora do milagre ali, hora do bêbado noutras paragens, o amanhecer no mundo inicia-se com uma ligeira ondulação, que se fazia ouvir à distância. Em êxtase religioso, saboreio a devassidão momentânea de uma meia maré, da brisa sideshore cristalina, do mar mais glass dos últimos tempos. Um coelho passa, fugidio, enquanto me preparo para a entrega total naquela imensidão de uma beleza gélida. O tempo pára, apesar do amanhecer continuar no seu ritmo. Atravesso-o e entro numa dimensão paralela.
Ninguém viu, e assim também eu duvido que tivesse acontecido.
Mais de duas horas de conversa sublime com todas as ondas que quisesse, que chegavam, preguiçosas, e rebentavam no pico com a prontidão de um relógio suiço. Fiz-me ponteiro e brinquei nos minutos, conversando também com a prancha e com ela admirando o amanhecer na falésia, as árvores que murmuram ventos, o carro que espero que não mo roubem. Continuo a deslizar, suavemente; olho para cima, para baixo, para os lados e em todas as direcções, olhando principalmente e atentamente com o corpo, com os pés que se firmam e se aguentam sobre o estado líquido. Sometimes you can see more with your eyes closed, como li esta semana enquanto fugia ao trabalho. Há realmente coisas que o corpo vê, os olhos não.
Uma onda mais passa por mim, primeiro debaixo, depois através, por fim dentro. Digo-lhe bom dia, mas ainda sem que ela tenha chegado, já estou na próxima. Sigo-a, beijo-a com a prancha, faço-lhe cócegas com os rails, estremeço com o que me ensina e permite ver – aquela sequência rápida e tão desejada, o som invisivelmente preenchido, que nos entra nos sonhos e não mais nos abandona ao longo da vida. Fecho os olhos e mantenho-os abertos para não perder nada, a doce abertura da verticalidade que se revela, o corpo que automaticamente se dobra e desdobra to fit in, naquele one size to fit all de puro deslumbramento.
Poderia continuar para sempre, mas o corpo com ausência de noite pede uma horizontal prolongada. Regressamos as três a terra, a prancha, a onda que nos conduziu, e eu. Despeço-me dela, curvando a cabeça e tocando uma última vez a superfície marítima, em sinal de agradecimento e respeito.
A maré havia subido, as ondas cada vez mais gordas, mais preguiçosas, e mais pequenas. Assim como eu, qual Alice no país das Maravilhas, ao regressar ao carro já não sabia qual o meu tamanho, se engrandecido pela experiência, se reduzido pelo cansaço. Talvez apenas o descubram aqueles que também conseguem passar para o outro lado do espelho.
*de Lewis Carroll, um livro também de - outras - viagens.
(17/08/2005)
Caminhando por entre ruas e vielas, tento sempre descobrir onde está o mar, onde fica localizado, onde se entrega e se abre. Há uma festa, igual às festas que existem em qualquer parte do mundo, cheia de gente que fala de coisas nas quais não me consigo fixar. Encontro-me perfeitamente incapaz de me interessar ou dar continuidade a qualquer tema, toda a minha concentração escapa-se-me para o que me espera, no momento de libertação matinal que se seguirá a todos aqueles rostos estranhos, regados a álcool, que naquela casa celebram e revelam toda a nossa comum humanidade.
Há um jardim abandonado – processo a localização do mar distante – e tudo é um sonho. E tudo será um sonho até à madrugada despertar, até que gotas de água salgada me entrem pelas orelhas e olhos a horas inoportunas.
Até à hora do milagre.
Saio da festa, feliz por o cansaço não pesar em demasia. Pego no carro, ainda é noite, uma noite limpa e estrelar, fria como convém, e sigo para aquela praia.
A hora do milagre é múltipla e estende-se por inúmeros momentos. É a hora em que as pessoas das festas e dos bares entram numa dimensão paralela, quando acabam por se esquecer de quem são; e fazem coisas que, noutras circunstâncias, talvez não fizessem. É a hora do vómito, do último copo com os amigos, da derradeira tentativa de engate, do bocejo do barman. Do momento em que o espaço deixa de parecer tão bonito e as pessoas tão esplenderosas.
É também a hora em que ainda não há ninguém na praia. Há eu, naquele momento, e isso basta-me. Antes da primeira claridade chegar, por entre árvores do bosque e o sussurrar dos primeiros pássaros da manhã, há um momento em que o mundo pára –
- e convém estar em frente ao mar, caso o tudo termine realmente no agora. O instante em que se duvida, corporalmente, que o dia vá efectivamente nascer.
(E se ficássemos para sempre na pré-penumbra?)
A hora do milagre ali, hora do bêbado noutras paragens, o amanhecer no mundo inicia-se com uma ligeira ondulação, que se fazia ouvir à distância. Em êxtase religioso, saboreio a devassidão momentânea de uma meia maré, da brisa sideshore cristalina, do mar mais glass dos últimos tempos. Um coelho passa, fugidio, enquanto me preparo para a entrega total naquela imensidão de uma beleza gélida. O tempo pára, apesar do amanhecer continuar no seu ritmo. Atravesso-o e entro numa dimensão paralela.
Ninguém viu, e assim também eu duvido que tivesse acontecido.
Mais de duas horas de conversa sublime com todas as ondas que quisesse, que chegavam, preguiçosas, e rebentavam no pico com a prontidão de um relógio suiço. Fiz-me ponteiro e brinquei nos minutos, conversando também com a prancha e com ela admirando o amanhecer na falésia, as árvores que murmuram ventos, o carro que espero que não mo roubem. Continuo a deslizar, suavemente; olho para cima, para baixo, para os lados e em todas as direcções, olhando principalmente e atentamente com o corpo, com os pés que se firmam e se aguentam sobre o estado líquido. Sometimes you can see more with your eyes closed, como li esta semana enquanto fugia ao trabalho. Há realmente coisas que o corpo vê, os olhos não.
Uma onda mais passa por mim, primeiro debaixo, depois através, por fim dentro. Digo-lhe bom dia, mas ainda sem que ela tenha chegado, já estou na próxima. Sigo-a, beijo-a com a prancha, faço-lhe cócegas com os rails, estremeço com o que me ensina e permite ver – aquela sequência rápida e tão desejada, o som invisivelmente preenchido, que nos entra nos sonhos e não mais nos abandona ao longo da vida. Fecho os olhos e mantenho-os abertos para não perder nada, a doce abertura da verticalidade que se revela, o corpo que automaticamente se dobra e desdobra to fit in, naquele one size to fit all de puro deslumbramento.
Poderia continuar para sempre, mas o corpo com ausência de noite pede uma horizontal prolongada. Regressamos as três a terra, a prancha, a onda que nos conduziu, e eu. Despeço-me dela, curvando a cabeça e tocando uma última vez a superfície marítima, em sinal de agradecimento e respeito.
A maré havia subido, as ondas cada vez mais gordas, mais preguiçosas, e mais pequenas. Assim como eu, qual Alice no país das Maravilhas, ao regressar ao carro já não sabia qual o meu tamanho, se engrandecido pela experiência, se reduzido pelo cansaço. Talvez apenas o descubram aqueles que também conseguem passar para o outro lado do espelho.
*de Lewis Carroll, um livro também de - outras - viagens.
(17/08/2005)
Femme Fatale*
Há cerca de dois meses pensei fazer um post sobre ela - mas, entretanto, desapareceu. Esfumou-se. E não me apeteceu escrever sobre algo que já não existia.
Entretanto, ontem- regressava a casa já não sei donde. Ao descer aquela pequena colina continuo com o olhar viciado, de olhar sempre para a direita, para a procurar com o olhar.
(Apenas a vi um par de meses, e foi o suficiente para criar o hábito - ah, as pequenas grandes coisas.)
Olhar já desperançado -até ontem. OH! AH! Um suspiro como nos filmes, fechado entre as janelas do carro, respirado entre o ar condicionado e os olhos esbugalhados, surpresos
- afinal ela ainda não foi vendida!
Ela é uma combi. Um pão-de-forma. Uma carrinha volkswagen daquelas em pedaços. O que quiserem. Ela é linda
(e eu não ligo nenhuma a carros - mas ela é mesmo linda.)
Tem o porte e a graciosidade de muitos anos, talvez bem tratada, ou de vida dura. Verde por baixo, branca por cima. Com toda a dignidade e beleza que os sonhos lhe conferem.
Deve ser maravilhoso chegar aquela idade e ainda fazer gente sonhar, e sorrir, com hipóteses futuras.
"Ah", olho para ela e, "as viagens que não poderíamos fazer, as duas, até França! Forget about the past, just the road, just you and I". As noites frias não seriam tão frias
(mentira!! ehe)
ou seriam ainda mais frias, mas isso deixaria de importar. A felicidade não tem frio. E a aventura espera por nós. Bem como o vento seco (ou húmido, ou frio, ou gelado até) sobre a vegetação das dunas (em algum sítio há-de haver dunas, for christ's sake!), o sol a criar ondas de calor no asfalto, a sede extrema e o despertar intenso. Nada mais importaria. Ou pouco mais. Tudo seria um mundo paralelo - uma fuga, um escape, mas também um confronto. An alternative route. Uma viagem cansada e descansada, ao mesmo tempo.
Tu, com o teu motor decerto sonoro, contar-me-ias histórias das viagens que fizeste; e eu contar-te-ia histórias das pessoas que conheço e das viagens que ainda não fiz. De como a minha sobrinha gatinha e mia pela casa fora, como se fosse um gato, e se enrola no meu regaço como um pequeno felino. E dos meus amigos - que, incansavelmente, têm os braços abertos e os ouvidos disponíveis para contos e lamentos. Acariciaria o teu pneu suplente ao fim da tarde, hora em que o teu branco ficaria alaranjado, e contaria as moedas para telefonar para casa. Procuraria o teu melhor ângulo para te tirar fotos, pois é sabido que todas as coisas têm algum ângulo em que revelam toda a sua beleza; sendo que, às vezes, esse ângulo as torna irreconhecíveis, mas um ângulo é um ângulo, um fragmento de realidade, uma pequena instância. E as tuas imagens não te fariam justiça, bem sei. Seriam apenas contos estéticos.
O sol desapareceu atrás da chaminé do vizinho da frente, e eu penso em ti. Quanto tempo mais estarás à venda. Quem te comprará, o que fará contigo. Recordo-me daquele projecto de pegar em ti e irmos viver para perto de Lisboa, lembras-te? Viveríamos em frente ao meu hipotético trabalho, como num sonho americano, uma espécie de atrelado, bem, eu atrelada a ti, tu atrelada a mim, juntas para todo o lado. Talvez sejamos apenas uma (isto dos signos tem muito que se lhe diga), talvez eu seja tu e tu sejas mim.
----------------
* ou como um tema de post (vulgo, uma carrinha) me deu vontade de ouvir Velvet Underground.
----------------
este post não leva foto de nenhuma combi porque não há nenhuma combi mais bonita do que aquela que vi. E recuso-me a tirar-lhe fotografias, pois sairiam autoretratos.
(07/02/2005)
Entretanto, ontem- regressava a casa já não sei donde. Ao descer aquela pequena colina continuo com o olhar viciado, de olhar sempre para a direita, para a procurar com o olhar.
(Apenas a vi um par de meses, e foi o suficiente para criar o hábito - ah, as pequenas grandes coisas.)
Olhar já desperançado -até ontem. OH! AH! Um suspiro como nos filmes, fechado entre as janelas do carro, respirado entre o ar condicionado e os olhos esbugalhados, surpresos
- afinal ela ainda não foi vendida!
Ela é uma combi. Um pão-de-forma. Uma carrinha volkswagen daquelas em pedaços. O que quiserem. Ela é linda
(e eu não ligo nenhuma a carros - mas ela é mesmo linda.)
Tem o porte e a graciosidade de muitos anos, talvez bem tratada, ou de vida dura. Verde por baixo, branca por cima. Com toda a dignidade e beleza que os sonhos lhe conferem.
Deve ser maravilhoso chegar aquela idade e ainda fazer gente sonhar, e sorrir, com hipóteses futuras.
"Ah", olho para ela e, "as viagens que não poderíamos fazer, as duas, até França! Forget about the past, just the road, just you and I". As noites frias não seriam tão frias
(mentira!! ehe)
ou seriam ainda mais frias, mas isso deixaria de importar. A felicidade não tem frio. E a aventura espera por nós. Bem como o vento seco (ou húmido, ou frio, ou gelado até) sobre a vegetação das dunas (em algum sítio há-de haver dunas, for christ's sake!), o sol a criar ondas de calor no asfalto, a sede extrema e o despertar intenso. Nada mais importaria. Ou pouco mais. Tudo seria um mundo paralelo - uma fuga, um escape, mas também um confronto. An alternative route. Uma viagem cansada e descansada, ao mesmo tempo.
Tu, com o teu motor decerto sonoro, contar-me-ias histórias das viagens que fizeste; e eu contar-te-ia histórias das pessoas que conheço e das viagens que ainda não fiz. De como a minha sobrinha gatinha e mia pela casa fora, como se fosse um gato, e se enrola no meu regaço como um pequeno felino. E dos meus amigos - que, incansavelmente, têm os braços abertos e os ouvidos disponíveis para contos e lamentos. Acariciaria o teu pneu suplente ao fim da tarde, hora em que o teu branco ficaria alaranjado, e contaria as moedas para telefonar para casa. Procuraria o teu melhor ângulo para te tirar fotos, pois é sabido que todas as coisas têm algum ângulo em que revelam toda a sua beleza; sendo que, às vezes, esse ângulo as torna irreconhecíveis, mas um ângulo é um ângulo, um fragmento de realidade, uma pequena instância. E as tuas imagens não te fariam justiça, bem sei. Seriam apenas contos estéticos.
O sol desapareceu atrás da chaminé do vizinho da frente, e eu penso em ti. Quanto tempo mais estarás à venda. Quem te comprará, o que fará contigo. Recordo-me daquele projecto de pegar em ti e irmos viver para perto de Lisboa, lembras-te? Viveríamos em frente ao meu hipotético trabalho, como num sonho americano, uma espécie de atrelado, bem, eu atrelada a ti, tu atrelada a mim, juntas para todo o lado. Talvez sejamos apenas uma (isto dos signos tem muito que se lhe diga), talvez eu seja tu e tu sejas mim.
----------------
* ou como um tema de post (vulgo, uma carrinha) me deu vontade de ouvir Velvet Underground.
----------------
este post não leva foto de nenhuma combi porque não há nenhuma combi mais bonita do que aquela que vi. E recuso-me a tirar-lhe fotografias, pois sairiam autoretratos.
(07/02/2005)
Subscribe to:
Comments (Atom)
