quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Carta Celestial

Cara Catarina,


Habitue-se à frequência da minha visita. Você tem dado uma grande despesa na verba celestial. Na verdade, todos os meus poderes de figura mágica alada se esgotam perante si.

Vendo-a mais encaminhada, não posso deixar de lhe fazer alguns reparos e de a preparar para períodos vindouros. Contudo, não se esqueça que a sua audácia e ousadia têm um papel preponderante na tomada de decisões e, a meu ver, e depois de conselho com colegas e entidades superiores, o que há em si é essencialmente falta dela. Dada a falta de tempo, que em período natalício o que não falta é almas para encaminhar, permita-me que enuncie um a um os aspectos que carecem de mais atenção da sua parte.


- A velha premissa_ não se iluda com as aparências. Penso que tem sido surpreendida todos os dias com a fatalidade do seu julgamento acerca do que vê. Tenho-me esforçado por isso. Seja mais flexível, dê uma segunda oportunidade, investigue, esgote as pessoas. E depois disso, esteja à vontade, faça o seu juízo (que é pessoa íntegra) e tome as medidas que achar necessárias.

- Aprenda a perdoar. Desde a buzinadela do taxista até às situações mais imprevistas e que lhe sejam mesmo dolorosas. Não seja tão intransigente, amoleça-se, molde-se às coisas.

- Acredite mais. Suprima o seu olhar científico e crítico, que nem tudo são neurotransmissores e há coisas que simplesmente não se explicam e somos nós que as detemos sob sigilo profissional. E sabe que mais? Você bem que se rende à falta de evidência de certas crenças. Deixe-se apaixonar.

- Ame. Faça o que costuma fazer bem. As pessoas sentem falta do seu amor. E faz-lhe falta, que eu bem sei, exalar esse perfume.

- Tire tempo para si. Passeie, faça desporto, canse-se ou descanse, ouça música, pense, extenue-se de vida. Faz-lhe falta, não faz? Eu bem sei!

- Reacenda a sua arte. à procura dela, onde quer que ela esteja. Faça-se amiga da paleta e do cavalete, escreva, leia, divirja. Não faça da sua mente um labirinto de portas fechadas, mas uma órbita de cometas.

- Seja mais como você é. Não lhe ensino. Esta é a única coisa que nunca se ensine. Você costuma ser bem.

Dito isto, dou a minha função como cumprida e espero sinceramente que se ponha na linha. E não é que seja materialista,mas veja lá se me oferece uma prenda de Natal. Estou a precisar de umas asas novas, que as minhas bem que têm sofrido com as suas desventuras.
Vá para a sua terrinha e tenha umas Boas Festas, que lhe faz falta os meios humildes, as pessoas simples e os mimos da mãe, não se faça de forte.


um beijo cheio de luz,


o seu anjo da guarda
P.S.: E não abuse no Bolo Rei!

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Toque de lábio a Álvaro de Campos

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas
-Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.