O José Carlos Ary dos Santos era uma força da Natureza, uma espécie de vendaval que levava tudo à sua frente, uma mão que “pousava” nas nossas costas deixando-as prontas para a ortopedia, um imenso amigo, um vozeirão que incomodava meio mundo... “porém morrendo aos poucos de ternura”.
Costumo dizer que só fiz uma cantiga com o Ary, o que não é rigorosamente verdade, já que existiram umas canções, que certamente nunca voltarei a saber como eram, para um espectáculo do grupo de teatro “A Barraca” em início de vida, todas com versos dele e algumas com música minha. De qualquer maneira, cantiga, gravada e fazendo parte do meu reportório, só há uma, esta, intitulada “Llanto para Alfonso Sastre y todos”.
Uma noite, de trabalho colectivo em casa do Ary, para preparar já não me lembro o quê, tive o descaramento de ocupar algum tempo a remexer em papeis manuscritos com versos e quando encontrei e li este “llanto”, em vez de disfarçar ou pedir desculpa, declarei com ar decidido “Zé Carlos, quero estes versos para mim!”. “Leva-os, mas ai de ti que não faças a música!...”
Passado algum tempo, como a música não aparecia, o poeta já ameaçava “Vou fazer um escândalo à tua porta” e foi assim, pressionado e “temendo o pior”, que fiz esta música, gravei-a no álbum de 1979 “Ao alcance das mãos” (na imagem) e passei a cantá-la sempre que posso, como neste programa “Sabadabadu” da RTP, de princípios dos anos 80, portanto, há muitos anos e “muitos cabelos atrás”.
Bom Domingo!
Llanto para Alfonso Sastre y todos
(José Carlos Ary dos Santos)
Foi quando as madres terriveis
Levantaram a cabeça
Foi quando os sinos dobraram
Nas torres de Saragoça
Foi quando a Guarda Civil
Surgiu no brilho de aço
Que de novo se pintou
A Guernica de Picasso
Não eram cinco da tarde
Nem da noite ou da manhã
Era a hora de lutar
Pela Espanha de amanhã
Era a hora de acordar
A voz de Lorca e Machado
Era a hora de atacar
Com a foice e o arado
Não eram cinco da tarde
Nem da noite ou da manhã
Era a hora de lutar
Pela Espanha de amanhã
Algures na arena da esperança
Contra os cornos do fascismo
Um pocta abria a dança
Dos passos do heroismo
Suas palavras agudas
Feriam as carnes da besta
Pois jamais se quedam mudas
As vozes de quem protesta
Algures na arena da esperança
Contra os cornos do terror
Um poeta abria a dança
Das palavras que dão flor
Dizia amigo canção
Pátria alento humanidade
Dizia verdade e pão
Como quem diz liberdade
Não eram cinco da tarde
Nem da noite ou da manhã
Era a hora de cantar
Pela Espanha de amanhã
Foi então que do mais fundo
Do ódio do mal do medo
Irrompeu o berro imundo
De quem oprime e não cede
Choveram balas patadas
Correntes golpes mordaças
E palavras embrulhadas
Em insultos e ameaças
Chegaram ferros e facas
Uivos lampadas chicotes
Choques agulhas matracas
Baionetas e garrotes
Não eram cinco da tarde
Nem da noite ou da manhã
Era a hora de calar
Pela Espanha de amanhã
Algures na arena da esperança
Um poeta foi torturado
Sua alegria a vingança
Seu nome cantor soldado
Algures na arena da esperança
Um poeta foi torturado
Sua alegria a vingança
Seu nome cantor soldado
Não eram cinco da tarde
Nem da noite ou da manhã
Era a hora de cantar
Pela Espanha de amanhã.
“Llanto para Alfonso Sastre y todos” - Samuel
(José Carlos Ary dos Santos / Samuel)