Apesar de não ter sido a primeira tentativa de construir um carro Anglo-americano, que combinasse a leveza de design europeia e um potente motor americano, o AC Cobra foi sem dúvida o mais conhecido e desejado.
Texto : Mike Silva em Inglaterra Fotos: Mike Silva ( C ) SDM
Não sei para onde fugir, quando oiço no café os putos que devoram cilindradas e potências ao pequeno almoço a teimarem que o "Cobra" é um carro americano. Pior. À minima visão de uma qualquer réplica de esferovite e fibra do clássico Anglo-Americano, começam logo a transpirar. Como quem transpirava nos anos oitenta por ver um carocha degolado e coberto com uma espécie de tenda do exército, e pensava que estava em presença de um Karmann original.
Enfim.Um pouco de rompante, conheci este exemplar de um amigo de um amigo, que me levou de volta a este carro mal interpretado por muitos, mas um autêntico marco para os conhecedores e entusiastas. Se os putos me perguntarem a cilindrada e potência, vou fazer figura de parvo e dizer, que assim de repente não me lembro. Vão-se rir. Mas sabem uma coisa? Já o guiei...
Mas afinal qual é a História do Cobra?
A firma AC inglesa, produzia luxuosos modelos Bristol com motor "Straight Six",baseados num modelo BMW de antes da guerra. Como consequência, no início dos anos sessenta, estes eram modelos notóriamente datados no seu design.
Muitos dizem, entre pausas de imperiais, que Carroll Shelby comprou a empresa salvando-a da bancarrota, por esta não ter motores . Nada mais falso. Carroll Shelby enviou um telegrama á AC inglesa perguntando se por acaso não podiam construir um carro que desse para "levar" com um V8 . Carroll, um experiente e consagrado piloto americano, sabia muito bem das capacidades de um cocktail explosivo proporcionado por um Chassis Lightweight de um bólide europeu, e um motor musculado americano. Shelby já tiha corrido em Allards, e agora propunha-se a envergonhar os Corvettes .
A AC respondeu que sim, que tinham um carrinho que podiam preparar para receber um Ford 4.2 V8. Assim , encarregaram-se de enviar por via aérea em 2 de Fevereiro de 1962 um AC Cobra sem caixa e sem motor, apenas com um diferencial reforçado, e uns travões do Jaguar Type E. Os homens de Shelby, encarregaram-se então de "espremer" um V8 inicialmente com 4200cc, mas mais tarde aumentado para 4.7.
Em 1964,Jack Sears entretia-se a "experimentar" o potente bólide deste lado do Atlântico, percorrendo a M1 de madrugada a cerca de 298 KM por hora. Esta façanha, digna de envergonhar os putos criminosos das zonas industriais , visava adquirir treino para as 24 horas de Le Mans, mas originou um apressar de imposição do limite máximo de velocidade nas estradas inglesas. Posso agradecer ao Cobra.
Apesar do estrondoso sucesso desportivo do Cobra, a sua viabilidade económica estava ameaçada. Em 1967, Shelby desistiu de importar os chassis por motivos financeiros, e a AC ficou entregue a si própria de novo. Apesar de ainda ter tentado produzir um modelo Frua até 1973, a empresa entrou finalmente em falência no final da década.
A compra dos direitos de fabrico pela Autocraft, uma empresa de componentes automóveis, veio contudo acender a polémica sobre quem de facto detinha a autorização de fabrico do carro. Shelby meteu a Autocraft em Tribunal, acabando por vencer, mas o facto é que o carro era inteiramente produzido em Inglaterra, sendo exportado para os EUA onde era modificado por Shelby. Apesar de Shelby ainda hoje fabricar o Cobra, obviamente com as especificções e legislação actual, a comunidade automóvel reconhece sem reservas a origem inglesa do carro.
Shelby participou entre 1989 e 91 nos estudos que iriam dar á luz um outro ícone do automobilismo mundial. O Dodge Viper.
Guiar um Cobra
Isto dos clássicos, é como uma bola de neve. Ainda me lembro do dia em que tímidamente me apresentava a um reformado de uma cerâmica, na esperança que ele me deixasse dar uma voltinha no seu Reliant Robin de fibra de vidro pintado a pincel. ( O paciente inglês, T&C N.61 Maio de 2006) Mr. Brian lá continua a passar debaixo da minha janela aos Domingos de madrugada para ir para a pesca, ou para o mercado.
Hoje,volvidos dois anos de intensa actividade clássica nas Midlands e por todo o território britânico, é com frequência que sou "arrastado" para ir experimentar carros." Anda cá ver se tens lá disto em Portugal,Manuel!" Em suma, fazendo o "sacrifício", lá tenho de espremer um metro e oitenta dentro de um habitáculo que parece que foi desenhado para agradar ao corcunda de Notre Dame. Este modelo , do meu amigo Gary Holdcroft, tem um tejadilho exclusivo Le Mans,idealizado para correr nessa prova, e o toque metálico da carroçaria diz-me que não estou em presença de mais uma réplica.
É impossível entrar neste carro sem que o coração dispare para um ritmo alucinante. A palavra "Cobra" encanta e envenena os sentidos. O volante Momo dá-nos alguma tranquilidade , e começamos a pensar de novo que estamos ao volante de um simples carro. Este carro foi produzido em 1999, mas exteriormente não se destaca um milímetro do original dos anos sessenta. Os mostradores Smiths e VDO, demonstram que andaram por aqui mãos inglesas, como sempre.
A heresia de colocar um rádio , revela-se infrutífera, pois mal giro a chave um barulho equivalente a uma pilha de latas de um supermercado a serem derrubadas com uma marreta, irrompe pelo habitáculo adentro, estremecendo a napa vermelha e vibrando os frisos de aluminio.
A embraiagem, necessáriamente dura e precisa, provoca um arranque peremptório que nos afunda ainda mais para junto do alcatrão. e provoca uma sensação dificil de digerir nos primeiros momentos, com um capot enorme e sobre-elevado a querer esbarrar com tudo o que encontra no caminho, sem que eu nada possa fazer. Como um avião a sair da zona de Taxi, uma zona onde o acelerador é tratado como se fosse um ovo, tento desembaraçar-me dos "vulgares" carros estacionados impunemente, até que finalmente, e liberto da ultima lomba do parque, surge um excerto de A34 sem radares e camaras. " HIt it"- Ordena-me Gary...
Como um rinoceronte acossado por caçadores na Nigéria, este flagelo de potência, faz-me marimbar para qualquer que seja a cilindrada e cavalos que tenha. Oh my god! Tem bastantes. Em menos de nada, a paisagem é aspirada pelos vidros laterais, e o som no habitáculo faz a minha cara parecer que foi alvo de um cirurgião estético, que desenhou para sempre um sorriso indelével na minha cara. Olho para o espelho e pareço o Joker do Batman!
Este carro, é como se injectassem nas nossas veias uma seringa de cavalo de adrenalina e barulho. O barulho. Ah,o barulho daquelas oito "canecas" para cima e para baixo violentamente , empurrando-me como um touro enraivecido largado pelas ruas do Cartaxo.
Surge então, mais depressa que o habitual, uma das malfadadas "Gatso", que como alguns lisboetas começam a conhecer, tira-nos a velocidade e manda-nos umas fotografias caríssimas para casa, acompanhadas de uma oferta de pontos na carta.
O retirar do pé do acelerador, lá colocado como se fosse a última vez que guiaria um automóvel, origina um sugar de vácuo, um esgar aflitivo dos carburadores,( Não sei se tem carburadores ou não. nem reparei. Quero lá saber disso para alguma coisa... ) como quem diz " Ah, meu sacana, mas o que é que estás a fazer?!... " Mas uma vez passadas as riscas no pavimento, eis mais um quilómetro que sabemos "livre" de opressões. Sinto-me como Jack Sears na M1 em 1964. Por momentos, qualquer multa de trânsito e pontos na carta parecem-me justos em troca do ritual carnal a que me entrego. O ponteiro do velocímetro marca 110...Nem é muito. Mas a inscrição MPH indica que vou practicamente a duzentos!
Chegado á rotunda de Trentham, onde se realiza o festival de clássicos , eis que entramos numa estrada B, de reduzidas dimensões e ladeada de altas lombas verdes de vegetação. O trovejar do motor tornou-se agora mais melódico, e as subidas e descidas originam uma sinfonia de notas musicais tocadas por um órgão de oito tubos. Por este andar , já me habituei ao comprimento do capot, e agora até me dá uma sensação de segurança. Em curvas apertadas, o meu maxilar desloca-se violentamente para o ombro do lado exterior da curva, e o binário disponível na caixa, surpreendente, apenas me obriga a trocar de mudança quando estou para parar. Incrível. Em quarta velocidade, posso quase parar, e acelerar de novo que é como se estivesse a pisar o rabo a um Leopardo. As curvas descrevem-se como se tivessemos de assinar um termo de responsabilidade em como nos vamos portar bem. Ao mínimo "improviso", percebemos que "aquilo" não conhece o dono e não se ensaia nada de nos catapultar para a valeta , apontando a traseira. Uma cobra danada e traiçoeira.
O tejadilho Le Mans, apesar de bem construido, serve de caixa de ressonância para o motor, e trata-nos como reféns . Mas estamos ali porque queremos. Olho para o rádio com desdém, como se estivesse a mangar comigo. Já tive conversas mais audíveis dentro de helicópteros e discotecas. Qualquer desaceleração é como estarmos dentro de um bidon de óleo a levar pazadas do exterior.
Como sempre, a voltinha do carrossel, estava a acabar-se, e quando saí tremelicante do habitáculo, só conseguia dizer palavrões de incredulidade em lingua portuguesa. O Cobra entrou na minha lista de prioridades, para um dia que acerte os seis números ...Ficha técnica? Sei lá! Tem um motor deste tamanho um sorriso daqueloutro, e um gozo daqueles...