ICE REPORT - SERRA DA ESTRELA
(A primeira report da temporada... desejando não ser a última!)
ACTO II
O frio e a neve transformaram a face leste do Cântaro Magro numa bonita parede branca. O aspecto “Scottish” irresistível encheu-nos de motivação para tentar escalar um velho projecto adiado.
Um longo diedro evidente ergue-se no flanco direito da
parede. Trata-se de um alinhamento inevitável de uma estética inegável… pelo
menos para nós. Com as condições minimamente reunidas, resolvemos tentar a
sorte. Concluímos a aventura após ultrapassar vários lances duros de escalada
mista, incluindo uma secção especialmente difícil que obrigou a recorrer à
escalada artificial. Porque teimámos em terminar da forma mais tradicional -
leia-se: no cume - a ascensão consumiu muito mais tempo que o previsto. Com o
avançar das horas resolvemos abandonar através de uma travessia lógica de
escape para a direita, indo parar à face norte, buscando o famoso anel do
Cântaro. Após vários “zigues e zagues”, optámos finalmente, por seguir pela
canaleta da clássica “Y”, na “headwall”, de novo na face leste.
A longa jornada de aventura terminou noite dentro e nesse
dia jantámos às 23h!
Baptizámos a nova linha de “Irrepetível” (220m, M6+/A1).
Contudo, o escape para a direita, abandonando a parede principal, deixou-nos um
tanto ou quanto sabor de boca amargo. Logo que as condições voltem a reunir-se,
contamos retornar para repetir a “Irrepetível” e tentar “endireitar” a via,
através de uma continuidade mais directa, que não obrigue a abandonar a face leste.
Durante as nossas múltiplas passagens de carro pelo Covão da Ametade, inevitavelmente, observámos o evoluir das condições no Cântaro Magro, até que, nos surgiu uma extraordinária visão. Observando com atenção, reparámos numa aparente linha ininterrupta de gelo que se iniciava na base da face leste do Cântaro Magro prolongando-se por muitos metros através do flanco esquerdo da parede. Foi um fantástico momento “Uau!”
Ainda cansados da actividade do dia anterior, resolvemos
adiar um dia, perdendo assim a oportunidade de tentar a nova via no momento
mais frio da semana. Apesar das previsões apontarem para uma subida de
temperaturas e sendo uma parede com orientação leste, significando uma grande
exposição ao sol matinal, decidimos subir na mesma. Estávamos convencidos que aquela
seria a última hipótese de tentar uma via única e, provavelmente (essa sim),
irrepetível.
Literalmente numa corrida contra o sol, fomos escalando uma sucessão de cascatas de gelo de fusão, algumas constituídas por secções tão finas que se tornaram impossíveis de proteger. Por sorte, a dificuldade mantinha-se em níveis baixos e moderados, permitindo uma boa gestão do risco. Com excepção para os pontos de reunião onde utilizámos alguns friends, fomos protegendo sempre com parafusos de gelo. À medida que ganhávamos altura alucinámos com o insólito da própria situação: “Incrível! A face leste do Cântaro em piolet tracção!”
Ultrapassados seis lances de escalada, alcançámos o final da linha ininterrupta de gelo. A nova via terminou no sítio mais lógico de saída, na base das belas vias de escalada em rocha da face sul, com escape para o célebre “Corredor dos Mercadores”.
Dadas as condições precárias e “no limite” em que
encontrámos o gelo, resolvemos baptizar a nova linha de “No Limite Vertical”. O
dia seguinte comprovou as nossas suspeitas de que o nome fora adequado. Com o
aumentar das temperaturas vários troços da nova via tinham-se despenhado. A
parede despia-se do seu casaco de gelo.
Não satisfeitos com a mega linha de escalada em gelo, ainda atravessámos o “Corredor do Mercadores” para a vertente norte em busca de uma bela cascata que tínhamos divisado dias antes, desde o Covão da Ametade. Um pouco fatigados (mentalmente) da neve horrível que encontrámos para aceder ao novo sector, ainda recuperámos alguma energia para “conquistar” aquela via de gelo com 40 metros, que acabou por formar um par com a “Cascata Mariolas”, escalada por nós em Janeiro de 2017.
Para nós, este fora o sétimo dia de actividade do presente
Inverno, portanto, a nova cascata mereceu o nome “Cascata do sétimo dia”.
No dia seguinte, ainda um pouco entorpecidos pela intensa actividade, decidimos descansar. O “descanso” converteu-se numa nova via de escalada mista inaugurada no sector da “Curva do Cântaro”, na parede que forma o contraforte esquerdo do “Corredor da Ponte”. “É uma via curta e de aspecto ameno.” - afirmei, confiante na observação desde a base. Pouco depois, o bufar constante e o roçar agressivo do metal dos crampons contra o granito, convenceram-nos que aquilo seria tudo menos uma escalada “amena”.
A “Última chouriça” converteu-se numa via incómoda e dura,
com uma difícil chaminé e um penoso diedro tombado que teimava em tentar
empurrar-me para o precipício, apesar de todo o esforço de contorcionismo para
tentar progredir.
O início da temporada ofereceu-nos belos dias de acção e aventura invernal. Resta saber se este é mesmo um “início de temporada”, ou se irá terminar simplesmente como… “A temporada!”
Para já, abateu-se a tempestade dramática do Covid e de um
novo confinamento. Essa tempestade coincide com a chegada de vários dias de mau
tempo e subida das temperaturas. Tempo de permanecer em casa.
Olhamos para as nuvens com olhos de esperança, alimentando o
desejo de que os dias de neve e frio retornem brevemente, empurrados pelos
ventos de norte…
Paulo Roxo
Os topos