A ABERTURA DA ÉPOCA BALNEAR!
E as sete inesperadas escaladas em gelo
No final de um inesperado dia fantástico de escalada em gelo. "Vamos à janta!"
A escalada invernal na Serra da Estrela corresponde a
jornadas húmidas, frias e incómodas. Depois de um dia de acção em vertentes de
neve profunda, gelo precário ou misto molhado, sob um nevoeiro denso e vento
intenso, o corpo sente-se encarquilhado, arrepiado, em suma: cansado. Quando
acontece desta forma, os espíritos mais incautos ou alguns principiantes nestas
lides, são convidados a debandar para paragens mais quentes, em busca de
actividades mais confortáveis, menos adversas. Os teimosos, esses, retornam.
Enchem as mochilas de equipamento afiado, de índole medieval, vestem as
armaduras “Hi-tech”, maleáveis e impermeáveis e voltam a enfrentar os
elementos, abraçando o frio e a dor. Mais que uma vez, foi assim que aconteceu
e, decerto acontecerá de novo.
No entanto, por vezes… não é assim. Por vezes…
O Covão Cimeiro, desde o topo do "Corredor Largo".
Como noutras ocasiões, viajamos para a Serra da Estrela sem
grandes esperanças de concluir grandes actividades. A temperatura não conseguiu afundar
muito na semana anterior e choveu torrencialmente no dia da nossa chegada,
inclusivamente no cucuruto da montanha, ou seja, nos telhados dos “monstrengos”
de betão que enxovalham o cume da serra.
Como costume, estacionamos em Penhas da Saúde, num local já
adoptado para passar as noites.
Pequeno almoço de luxo no interior da nossa "micro-caravana", carinhosamente apelidada de: "Berlingota".
Pela manhã, a paisagem pinta-se de branco imaculado e a
esperança de escalar qualquer coisa, nas condições invernais adequadas,
retorna. Não alimentámos muitas expectativas de estrear os novos piolets em
gelo puro mas, umas “cokinadas” valentes em rocha, coberta pela “colagem” de
neve fresca, também iria servir para acalmar os nossos espíritos inquietos. No
que toca às condições ideais, a Daniela e eu não somos muito picuinhas nem
demasiado criteriosos. A ideia base é aproveitar aquilo que existe e
adaptar-nos ao momento: neve, rocha, gelo… Gelo Verde! No Rules!
Tomamos café na “Varanda da Estrela”. É um café prolongado
pois esperamos que abram a estrada que acede ao cimo, todo um clássico na nossa
Serra da Estrela, cada vez que caem três ou quatro flocos de neve puxados a
vento.
- Espreitamos as “Couves”? – sugiro, sem estar convencido e,
na verdade, sem grande vontade de sair lá para fora.
À distância de um palmo, o vento violento dispara rajadas de
neve dispersa, como que a tentar atravessar os vidros da carrinha.
- Ok. Vamos lá! – responde a Daniela, sem grande convicção.
Um dia tipico na Serra da Estrela. "Escalamos?", "Mmmm... náá! Voltamos amanhã!"
O “Sector das Couves” é um dos mais acessíveis da Estrela.
Encontra-se a uns meros cinco ou dez minutos da estrada e possui uma
característica particular que o torna ainda mais interessante. Normalmente,
este sector serve como bitola para aferir as condições para a maioria dos
outros sectores. Muito embora a Serra da Estrela já nos tenha ensinado que a
formação de gelo rege-se por ordens misteriosas e aparentes forças caóticas de
previsões impossíveis, a existência do elemento água, sob forma sólida, no
Sector das Couves, determina a existência do gelo noutros sectores. Abreviando,
se ali não existisse gelo, não o iríamos encontrar em mais nenhum sítio.
Empurrados pelo vento forte, enxotados pelo granizo,
analisámos a situação. As condições prometiam uma que outra aventura ao bom
estilo “Scottish”. As “Couves” encontravam-se congeladas mas, sob uma camada
fina e pouco prometedora. Nada que não estivesse já previsto, dadas as
terríveis condições de humidade e calor dos dias anteriores. Não nos apeteceu
viver um dia épico e húmido e decidimos pela debandada e pelo retorno no dia
seguinte. E o dia seguinte amanheceu sem nuvens e mais tranquilo.
Chão congelado a caminho de um belo dia.
Da noite para o dia, com o cair brusco das temperaturas, o mundo transformou-se. A maravilhosa metamorfose da Natureza.
Metemo-nos de novo no “Corredor Largo”, convencidos que
iríamos escalar uma via mista, sem depositar muitas esperanças no gelo puro.
Surprise, surprise! A Cascata das “Couves” encontrava-se em
muito melhor estado que no dia anterior (de facto, até se tinha dividido em
duas linhas distintas) e, mesmo à esquerda, no lugar onde no dia anterior
escorria água, formou-se a clássica “Diedro de cristal”. Uma cascata formada
assim de repente, literalmente, da noite para o dia!
- Boa! Vamos afinal estrear os piolets no gelo, yupii! –
exclamou a Daniela, com os olhinhos a brilhar.
"Não acredito, estamos a escalar gelo!" Via nº 1.
Na "mais que clássica Cascata das Couves", desta vez, transformada em duas! Escalámos a versão da esquerda (na foto) e, pouco depois, escalámos a versão da direita (Via nº 2).
Algumas horas depois, tínhamos escalado três cascatas
distintas, que aceitaram parafusos (curtos) como forma de protecção razoável.
Entretanto, os novos piolets passaram o teste, no seu
terreno próprio!
O "Diedro de cristal" deu o ar de sua graça e recebeu as primeiras pioladas do ano. Via nº 3.
A Daniela a escalar o "Diedro de cristal".
Na saída do "Diedro de cristal".
Descemos um pouco mais na vertente de neve transformada. A
chuva dos dias anteriores dera cabo de grande parte da neve que caíra até então
mas, a que sobrou, transformou completamente, obrigando a um cuidado redobrado.
Um escorregão inadvertido teria consequências pouco agradáveis.
Pendentes do "Corredor Largo", bem transformadas.
Colocamo-nos por baixo da bela clássica “Dama oculta”. –
Uau! – exclamámos entusiasmados. A parede encontrava-se totalmente coberta por
neve congelada e gelo, entrecortada aqui e ali, por proeminências rochosas. A
“Dama” estava transformada numa linha de aspecto técnico e que prometia
experiências variadas, exactamente aquilo que buscamos numa escalada mista. O
que se seguiu foi uma pequena aventura, onde não faltaram o gelo precário
impossível de proteger, alguns passos mais técnicos e, bons gancheios em rocha,
para os piolets.
A belíssima "Dama oculta", bem técnica e interessante. Via nº 4.
A meio da "Dama oculta".
Depois das últimas dificuldades da via, em vez de retirar pela
direita e destrepar, realizando a saída mais comum, continuámos para cima,
encontrando uma reunião equipada e preparada para rapel, semi-escondida debaixo
da capa de gelo. Eu equipei esta instalação, já lá vão uns bons anos e agora a
sua existência tinha-se-me varrido da memória. Foi um bom reencontro.
A Daniela a iniciar a "Dama oculta"...
... e já no final a chegar à reunião.
Olhando
para cima, descobrimos os últimos muros congelados. Um excelente convite para
realizar um segundo lance lógico para a “Dama oculta”. Após uns 25 metros de escalada,
com passos de cascata algo delicada mas, de desfrute, baptizámos o novo
prolongamento como: “Dama longa”. Trata-se de uma bonita proposta, sobretudo quando
a serra resolve reunir as condições ideais.
"Ok, temos gelo, continuamos por aqui acima!"
A negociar a bela variante de saída que prolonga a "Dama oculta".
A daniela a sair da "Dama longa".
Ainda na saída da "Dama longa".
A chegar à reunião com um daqueles sorrisos de: "Espectáculo!"
No ano passado, quando a Daniela e eu escalámos a “Pepi te
quiero”, uma misteriosa linha deu o ar de sua graça. Desde a “Pepi”, avista-se
perfeitamente todo o sector que alberga, entre outras vias, a “Estrela
nocturna”. Mesmo à direita desta clássica, formou-se uma via contínua de gelo,
fina e estética, daquelas que sempre prometem um bom desafio psicológico.
Naquela altura, já no final do Inverno, não nos foi possível realizar uma
tentativa. No Inverno que agora nasce, um dia depois da escalada no sector das
“Couves”, a memória da tal linha voltava a fazer um “clic” no cérebro.
As novas máquinas da DMM. Passaram a prova com distinção!
Estacionamos
o carro na famosa “Curva do Cântaro” e, rapidamente descemos a rampa que acede
ao sector da “Estrela nocturna”. E, quando dobramos a esquina… bingo! Ali
estava um belo fio de gelo totalmente desenhado na parede de granito.
Equipamo-nos na base da "Estrela nocturna", antes de iniciar a escalada da melhor via do fim de semana.
O primeiro lance percorreu uma fina canaleta de gelo,
tipicamente difícil de proteger, terminando na plataforma da “Estrela…”. Mas,
as maiores dificuldades encontravam-se no segundo lance. Um primeiro muro
bastante atractivo, portador de algumas formações em couve-flor, tão
características das cascatas na Serra da Estrela, conduziu ao muro superior,
onde, aí sim, encontrámos o “sumo” do assunto.
O primeiro lance da nova "DMM - Delightful Mountain Madness". Via nº 5.
Ainda no primeiro lance da nova via.
A Daniela nas delicadas passagens do primeiro lance.
A terminar o primeiro lance da nova via.
A parede de gelo perfeitamente
vertical parecia demasiado frágil e, sobretudo, era muito fina para aceitar algum
parafuso que pudesse oferecer a tranquilidade mental suficiente de forma a não
tornar a empresa numa missão suicida. Em caso de falhanço, a queda numa
plataforma estava garantida. Tento um pouco pela direita. Cravo o piolet num
tufo de erva congelada… parecia sólido. “Mmmm…” Desconfiei. Dirijo-me para a
esquerda, subo um ressalto de rocha e tento uma travessia horizontal de forma a
apanhar a “chapa” de gelo. O piolet estava bem cravado mas, para os pés, não
existia nada razoável. Os crampons raspavam o gelo precariamente. A exposição
era demasiado grande, não aceitável. Finalmente, preparei-me para desistir. Um
escape pela esquerda por terreno fácil levava-me directamente para a saída da
“Estrela nocturna”. No entanto, uma ultima observação fugaz da parede de
granito liso, marginal à cascata de gelo, revelou um pequeno detalhe. Ali
estava, uma pequena fissura isolada, quiçá suficientemente profunda para
albergar um friend razoável.
- Daniela, atenção! Vou fazer uma última tentativa!
Nos primeiros passos do muro de gelo inicial, antes do crux.
A Daniela observa atenta desde a primeira reunião, comum com a "Estrela nocturna".
Quase a terminar o primeiro muro do segundo lance. O muro de gelo vertical e exposto que constituiu o crux da via está fora de vista e viria a seguir, provocando alguns suores frios e um desfrute proporcional.
A Daniela encontrava-se fora de visão. Não nos víamos
mutuamente mas, a julgar pelo que eu tardava nesta secção da escalada, decerto
já tinha adivinhado que a coisa não estaria fácil.
Um pequeno gancheio precário permitiu-me abrir as pernas e
colocar-me numa posição equilibrada. Um pé num bloco, o outro crampon espetado
num tufo congelado. Alcancei a pequena fissura e, imediatamente, um friend foi
atirado lá para dentro. Uma rápida inspecção e um puxão decidido permitiram
aprovar a peça. Boa! Estava aberto o caminho para resolver aquela secção
delicada. Uma passagem lateral desequilibrante em “dry-tooling” permitiu
esticar-me para cravar bem o piolet direito. Mas, faltava incorporar-me
definitivamente na linha vertical da cascata. Meio corpo no gelo, meio corpo
ainda em rocha. Troco
as mãos no mesmo piolet e cravo o segundo piolet um pouco mais afastado. Respiro
profundamente, uma, duas vezes, antes de me decidir a suspender nos braços e
enfrentar os passos seguintes na cascata. Alguns metros depois, os meus olhos
ainda passaram de relance pelo friend já lá em baixo. Em caso de queda, esta
teria um efeito pendular pouco agradável e corria um certo risco de impacto.
De todos modos eram considerações que já não importavam. Agora encontrava-me totalmente
concentrado e as ferramentas bem colocadas, tudo iria correr como a água. Uns
bonitos passos de misto, com bons gancheios (e boas protecções) ilustraram o
final perfeito para a nova linha. A Daniela escalou tudo e, quando nos encontrámos
na reunião exclamámos quase em uníssono: - Bela via!
A Daniela nos ultimos passos de escalada mista da nova "DMM - Delightful Mountain Madness".
As escaladas anteriores chegavam para considerarmos estes
dias como “ganhos”, no entanto, uma pequena cascata que nunca tínhamos visto
formada, piscou-nos o olho e… não resistimos. Esta situava-se no sector da
“Curva do Cântaro” e constituiu uma delicada linha de gelo que apresentou ainda
um ou dois passos mais picantes, pois a única protecção decente estava
constituída por um entalador excêntrico martelado numa fenda congelada… os
pequenos prazeres da escalada invernal!
Dois momentos durante a abertura da "PI (Pequena Intensa)". Via nº 6.
Para terminar o dia, ainda escalámos a arqui-clássica
cascata da “Curva do Cântaro”, imediatamente antes do novo período de chuva que
viria a destruir mais uma vez as cristalinas obras de arquitectura invernal da
Natureza, fenómeno que apenas confirma a particularidade extremamente efémera
da escalada em gelo na nossa Serra da Estrela.
Na hiper-clássica "Cascata da Curva do Cântaro", para terminar dois dias fabulosos de escalada em gelo. Via nº 7.
A escalada invernal na Serra da Estrela corresponde a
jornadas húmidas, frias e incómodas.
No entanto, por vezes… não é assim. Por vezes, com alguma
persistência e recorrendo um pouco à imaginação, é possível reunir os dias bons
às condições excelentes e, esses momentos são os que inundam o espírito,
deixando-o preenchido durante bastante tempo…
… pelo menos até à próxima oportunidade.
Paulo Roxo
"Yuupiii!"
E, claro... os Topos: