O mundo inchou na inquietante metamorfose da globalização. A Europa era uma área civilizada que pertencia à ideia, em parte derivada do sistema de alianças concretizado após a segunda guerra mundial, e a cujo sentido se dava o nome de civilização ocidental. Apesar de ter vencido a guerra com os Aliados Ocidentais, a União Soviética, fria, comunista, dona de uma partilha que levou Estaline a destroçar mais de vinte milhões de camponeses em nome de uma unificada reforma agrária, considerava o como lado do inimigo, o Ocidente dos males do consumo e da tecnologia da morte, cheio de ricos e pobres. Por cima de tudo isto mandava Deus (unificação dos deuses da antiguidade, mais humanos e divertidos). Deus, felizmente, não existe: o que, parecendo um ardil, nos salva de maiores asneiras e patéticos destinos do absurdo. Havia os que afirmavam ter o homem sido feito à imagem e semelhança de Deus: pobre criatura, o homem. Nunca mais entendeu as semelhanças que o distinguem de todos os outros seres vivos (ou sobretudo) nem a diferença perante os seus irmãos, paradoxo de uma grandeza criadora. Preferir a destruição e o genocídio é negar a própria História e os homens invulgares que ajudaram a descobrir milhões de bens após a Era da Obscuridade, longa, penosa, laboral. só têm, por vezes, homenagens litúrgicas.
Li há dias uma crónica da Clara Ferreira Alves que me comoveu e fez relembrar a grande inquietação que sinto ao ver muitos dos meus pressentimentos confirmados pelo mundo fora, desde a moscas amarelas, aos milhões, que atravessam os nossos céus, numa mobilidade da internacionalização e dos gostos um pouco pueris dos homens fugirem (de novo nomadizados) em busca de dinheiro e conforto, exílios cruzados, aves de metal atravessando os oceanos ou mergulhando neles para sempre. Trocam, a cada acidente de descida das bolsas, de país e de identidade, nomadizam-se como nas sangrentas marchas da pré-história. Desta vez até foram para a Austrália e Nova Zelândia, alguns voltaram intoxicados pela diferença e pelo trabalho escravo que jamais aceitariam no Alentejo ou em Trás-os-Montes.
Clara escreve: «Eram civis apanhados numa guerra». Eram e mal sabiam que céu atravessavam. «Morreram cruelmente, desnecessariamente.» Tratou-se de um missil militar, manejado, na Ucrânia, por uns travestis de rebeldes (orientados pela Rússia) e ajudados por eles em quase tudo: no disfarce, na conquista de terras ucranianas, na escolha do dedo que apertou o último botão: deus em baixo a destruir mais de duas centenas de seres humanos, assaz grandes cientistas, só porque sim, porque aquilo podia ser do inimigo,
porque as costas estavam quentes e a logística estava mesmo ali à mão de semear. Tratou-se de uma monstruosa operação dos interesses russos, Putin impávido, os ocidentais embaraçados com o dinheiro e as suas assimetrias de poder. Infelizmente, a Alemanha é muito grande para a Europa e pequeníssima para mandar nos outros à sua volta, da América aos Estados da Ásia.
Caíram cadáveres do céu. Os tais rebeldes apressaram-se a caçar as caixas negras e a enxovalhar os mortos e os destroços que deveriam ficar inertes, intocáveis, para que os peritos internacionais devolvessem com dignidade os restos a quem de direito. A esta gente nada importa, porque o seu clube não tem princípios e Putin gargalhou perante as sanções europeias e americanas, ele que tem meios para ripostar e gosta da grande memória que o cerca, entre novos companheiros carregados de ouro e especiarias da corrupção. Disseram em Chipre, eu não vi.
Um pouco de tudo ao mesmo tempo, o Afeganistão continua a viver em guerra, o Iraque desmantela-se, a Síria continua a arder, enquanto a ONU, inutilizável, emite despachos para que a rapaziada tenha juizo. Gaza está na agenda e os jornais (de venda) esquecem os outros pontos. Seja como for, a arrelia dos Israelitas começa a ser insuportável, como o seu homónimo Hamas -- e digo assim porque Israel não reconhece a urgência em sedimentar os Estados da zona Palestina, enquanto o senhor do Hamas grita: "sem a destruição do Estado de Israel, que foi roubado à região, não haverá nem paz nem legitimidade devidamente enquadrada." Israel rompe mais fogo, quer deixar uma marca profunda e desproporcionada em Gaza. É claro que nunca mais pensou nas guerras que encenou e nos territórios que ocupou e onde fez construir centenas e centenas de colonatos. Parte das terras em que combate são de outros, ainda que tenham estado sob a sua ocupação, como continua a acontecer, o que parece estar para aumentar, extensível a outras zonas.
Enquanto o mundo arde desta forma, havendo cerca de 2.000 mortos em 25 dias de combate na faixa de Gaza, uma guerra é travada, na multiplicação das páginas, pela imprensa, um jornalismo rasca e explorador do efeito de horror, sem, a par disso, aprofundar a história e as linhas de desenvolvimento destes conflitos. O mesmo faz a televisão, a nossa menos, porque decidiu entretanto intoxicar toda a gente com um tal Portugal, Danças, ruidosos Concursos, publicidade e Novelas. Um dia tem que se legislar sobre o modo de alinhar os programas, respeitando os seus conteúdos, claramente para melhor, estabelecendo aí onde e como devem ficam as coisas, qual a sua arrumação. Neste momento vê-se mais publicidade do que televisão séria. A cultura, massificando-se, regride, salpica-mos a cara de lama em sucessivos cortes por todo o lado, por cima dos filmes ou novela, entre fracturados programas, trinta minutos de palhaços para voltarmos ao tema do programa anunciado nos jornais.
Morre-se um pouco por toda a parte. Até com o Ébola. Clara acentua a sua análise a certa altura e eu vou terminar aqui:
Na Europa um crime contra a humanidade foi cometido com a benção e as armas de Putin, e as audiências, opiniões, manchetes e poderes constituídos decidiram que não tinha importância.
Já me esquecia: enquanto não prendem os meliantes da finança, os cidadãos portugueses foram hoje, ordeiramente, informar-se junto do BES (agora NOVO BANCO) como estava a sua situação e como deveriam ir esperando e procedendo. O melhor Povo do Mundo, dizia justamente um ministro das finanças, nosso, que já voa pelo FMI e fartara-se de fazer ajustamentos.