Helena Almeida
Em dias de convívio, sobretudo nas sessões relativas às exposições de arte, ouvi e vi muitas vezes esta nossa invulgar pintora (que fez depois da fotografia e da mancha um mundo inovado, performativo) a dizer as suas palavras, por vezes como que invisíveis na visibilidade fotografada de escolhas em performance. Tudo desde os tempos da sua beleza, feita de modo avançado, e certa altura geométrica e luminosa e contrastada. Escrevi textos sobre esta amiga cujo enleio no mundo, na companhia do marido, arquitecto Artur Rosa, fotógrafo emérito que logo se ligou às urgências expressivas da sua companheira, em poses fotográficas que se desdobravam em atitudes na pintura a fingir, o azul cuspido da boca, os relevos de dedos pressionando grandes panos brancos, esticados e submissos perante a luz.
Helena Almeida levou muito longe (até à Bienal de Veneza) a mobilidade criadora do corpo no espaço e da pintura espalhada pelo chão ou derramando-se da mão direita, enquanto a pintora se dirigia para o fundo, o nada de uma parede branca, por exemplo, o papel enganador no clássico devaneio sobre o estirador. Toda esta obra, conceptual, mordaz ou em paralítico, fez de Helena Almeida exemplo de achados muito raros, certa visão de um mundo construído em cenas reveladoras de uma ideia, invisíveis e de súbito redescobertas pelo nosso olhar, entre o desejo e a percepção. Era a magia sagaz dos enganos e das simulações, passando pela geometria do papel, telas, espaços frios. E nem sempre isso acontecia entre Helena e a tinta. A certa altura os seus passos eram laterais a um pó negro, caindo rectilíneo no chão, escorregando dos dedos leves e dobrados. Pólvora, exclamou alguém. Podia ser terra fina. Mas a ideia da pólvora sublinhava o último minuto ao fundo, a explosão. Mas a sua morte não foi assim, A Natureza levou-a no dia 26 deste mês, Setembro, 2018. É sempre estranho que a luz de uma vida, feita de passos de descoberta e belas ocasionalidades, desapareça assim, por nada e para nada, embora seja nossa reflexão a que nos conduz à memória da vida, dos factos, das obras, sempre a envelhecer mas ao mesmo tempo voltando a anunciar, no quadro do futuro, o exemplo pronto a nos enlaçar em nossos próprios sonhos de amanhã.
Helena Almeida iniciou a sua carreira no final dos anos 60 e foi sem dúvida uma figura incontornável no panorama artístico português. É um caso bem singular no quadro desta nossa contemporaneidade, entre dois séculos e sempre certeira nas teses de cada imagem. A sua arte que mais passou pela fotografia e pelo gesto suspenso é um caso raro no plano da multiplicidade de ideias que a arte, no seu melhor jogo de enganos, nos oferece e nos orgulha além de todos os limites do pensamento. Um dia morremos e de nós fica o testamento de uma humanidade afinal refeita, dizendo a hora em gritos e silêncios de pedra.
Com o mais interior sentimento da vida e da morte, por Helena / Rocha de Sousa
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