Esta paisagem é uma gravura feita com paixão por D.Carlos,
por fim vítima dum dramático regicídio, no limiar abrasador da implantação da República
Ora Portugal tinha sido conquistado por terra e por mar, ficando amarrado àquele grande oceano, o Atlântico, a carpinteirar embarcações e amanhando a terra, numa distância de séculos antes da batata, coisa estranha e que tinha a alcunha de "veneno do chão". O chão foi muitas vezes o nosso mal, porque o tempo matava as plantas de comer e as árvores eram muito ocasionais para se aproveitarem. Claro que D. Dinis tratou do Pinhal de Leiria e há quem diga que, já nessa altura, numa vida tão rudimentar, alguns homens eram grandes, visionários. Teria o rei plantado tantos pinheiros por capricho, ainda por cima sem nada de substantivo para se comer? Diziam os historiadores menos científicos, aqueles que pressentem a razão de ser das loucuras colectivas ou o imaginário que nos consome metade do cérebro: havia ali coisa, obviamente. Tanto pinheiro para tão pouca gente parecia mais o advento de uma indústria para ajudar em vários campos a instalação da vida. Não eram rosas, senhor, nem pão: eram os rolos da arte náutica, os planos de alargar a terra para além do mar, na primeira e talvez única visão a longo prazo de um governante do país.
Já ouviram falar dos Descobrimentos? Caravelas, naus, galeões, especiarias, paz de espírito, acção indiana, Brasis, Áfricas -- e tudo devagar, tudo pensado, desde a logística à alimentação e à cartografia. Fomos longe, fomos a vanguarda da Europa, e depois acantonámos a fazer gravuras e perfumar monarquias decadentes. Da República nem se fala, porque acabou por mudar de número e fechar bocas e embocaduras com o Professor de botas lustrosas e uma ditadura em volta, por quarenta e oito anos, incluindo parte das guerras coloniais, ir e vir, mar, pastorícia dos espíritos, Cerejeira ao lado, uma visita jornalística, Só, Christine Garnier em São Bento, as pernas juntas, olhando a brancura do homem e o seu falejar em jeito de língua franco-portuguesa. Despediu-se um dia da porta, a mão ao alto, e ela no automóvel a apontar. De pé. E Só.
Mas vamos lá, tempos depois, "o 25 de Abril", "os capitães", "o Copcom da revolução", "o abaixo os latifundiários", "o deixa lá que do patrão tratamos nós", "o povo é quem mais ordena", "a Europa sopra ordens" e "os governos" (o nosso também), foram nessa. Euros em vez de escudos, uma União depressa desunida. Roubaram-nos as terras, a cortiça, mandaram abater os barcos que cumpriam a pesca, pagos enviesadamente, gente do mar metida em casa, com os restos, enquanto aquela gente também nos roubava o mar, as vinhas, o calibre natural das laranjas e das maçãs. Que reforma era esta? Em menos de um fósforo desapareceram a marinha mercante e as frotas da pesca longínqua, as aldeias dos imigrantes, tudo votado ao cimento armado, às auto-estradas contra os portos e as plataformas marítimas e ferroviárias da nossa ainda viagem, após as desastradas descolonizações, atrasadas, sem estrutura comunitária de raças e culturas. Voltámos para esta velha jangada (de pedra, como disse o Saramago) e um mar cada vez maior em volta. Um mar que vemos do ar, em vez de o aprofundarmos no mesmo e melhor intuito das antigas navegações por cima dele.
Nas listas das comissões nomeadas pelos partidos que arrumaram o país, com alguns militares, depois do "25 de Novembro", constam listas estranhas de bens alienados como lixo e pagos prémios de consolação em euros. Por isso vem lá, por ordem alfabética, os milhões de perdas: abóboras, abacates, albornozes, árvores (trinta mil espécies a favor do eucalipto) automóveis, casas, cadeiras, calmeirões, camaleões, canteiros, canais, dormitórios, donzelas, dormideiras, danças, enchidos, empilhadoras, escritores, editores, empreendedores, emblemas, exuberâncias, êxitos, além do ferro e dos ferros ou ferrovias, frémitos, fundos financeiros, deixando os forretas com quem se abriam novos negócios. Globalização mal-entendida e mal praticada, gente por ela empobrecida e as novas modas do ruído, governos sem governo, a deriva da água que secará um dia e os céus indomáveis pelos fumos cujo limite se aproxima do fim dos tempos, embora os grandes senhores das moedas em circulação, emparedados no seu fanatismo, se recusem a ter causas inteligentes cuja energia não vem das forças renováveis mas dos fósseis claramente destinados a provocarem desequilíbrios civilizacionais, mais doenças, mais catástrofes, mais indeterminação perante a própria vida solar.
Embaladas, assim, as nossas vísceras, numa galáxia longe da nossa depois da morte solar e do fim deste planeta cheio de fezes concentradas ao longo de milhões de anos, coisas destas poderão sofrer trasladações hoje impensáveis. A vida transporta-se a anos-luz de distância, mas vida desencontrada da sua raiz, reduzida à sua essência polar. Isto quer dizer que os governozinhos que nos governam, lambendo notas e atravancando tudo, a própria vida sem nome de espécie, cospem em bocados de barcos que nos restam pelos oceanos todos, espaço do que foi potencialmente um novo mundo. Não haverá mais retratos de presidentes, só insectos capazes de viver entre ambientes de metano ou calcinações inamovíveis. Se nada sobrar de nós, assim, nada mesmo, nem a alma, nem um resto de saudade, que vísceras parecidas com as nossas poderão chegar a sítios ainda limpos, derivados da mesma lógica energética que nos tem rodeado? Mais acasos, vidas acidentais, depois dotadas de coisas como neurónios e de percepção e de uma qualquer consciência?
Há cada vez menos respostas sob o peso colossal da tecnologia avançada e dentro da carne enervada (mortal) que entrou em desistência de valores supremos perante a utopia da conquista do tempo, aprendendo, enfim, o Universo. O conhecimento rudimentar e confuso que formámos da infinitude universal, entre milhões de galáxias, todas elas com mais de cem mil anos-luz de comprimento, levou-nos ao horror de desistir das culturas da invenção e das iluminações, como se, de facto, nos aproximássemos de um Apocalipse acima de tudo o que já foi convocado pelos profetas da morte dos astros.
Se a vida voltar a acontecer depois de nós, ou de outros, será de novo uma vida sem sentido e sem continuidade.
Mas vamos lá, tempos depois, "o 25 de Abril", "os capitães", "o Copcom da revolução", "o abaixo os latifundiários", "o deixa lá que do patrão tratamos nós", "o povo é quem mais ordena", "a Europa sopra ordens" e "os governos" (o nosso também), foram nessa. Euros em vez de escudos, uma União depressa desunida. Roubaram-nos as terras, a cortiça, mandaram abater os barcos que cumpriam a pesca, pagos enviesadamente, gente do mar metida em casa, com os restos, enquanto aquela gente também nos roubava o mar, as vinhas, o calibre natural das laranjas e das maçãs. Que reforma era esta? Em menos de um fósforo desapareceram a marinha mercante e as frotas da pesca longínqua, as aldeias dos imigrantes, tudo votado ao cimento armado, às auto-estradas contra os portos e as plataformas marítimas e ferroviárias da nossa ainda viagem, após as desastradas descolonizações, atrasadas, sem estrutura comunitária de raças e culturas. Voltámos para esta velha jangada (de pedra, como disse o Saramago) e um mar cada vez maior em volta. Um mar que vemos do ar, em vez de o aprofundarmos no mesmo e melhor intuito das antigas navegações por cima dele.
Nas listas das comissões nomeadas pelos partidos que arrumaram o país, com alguns militares, depois do "25 de Novembro", constam listas estranhas de bens alienados como lixo e pagos prémios de consolação em euros. Por isso vem lá, por ordem alfabética, os milhões de perdas: abóboras, abacates, albornozes, árvores (trinta mil espécies a favor do eucalipto) automóveis, casas, cadeiras, calmeirões, camaleões, canteiros, canais, dormitórios, donzelas, dormideiras, danças, enchidos, empilhadoras, escritores, editores, empreendedores, emblemas, exuberâncias, êxitos, além do ferro e dos ferros ou ferrovias, frémitos, fundos financeiros, deixando os forretas com quem se abriam novos negócios. Globalização mal-entendida e mal praticada, gente por ela empobrecida e as novas modas do ruído, governos sem governo, a deriva da água que secará um dia e os céus indomáveis pelos fumos cujo limite se aproxima do fim dos tempos, embora os grandes senhores das moedas em circulação, emparedados no seu fanatismo, se recusem a ter causas inteligentes cuja energia não vem das forças renováveis mas dos fósseis claramente destinados a provocarem desequilíbrios civilizacionais, mais doenças, mais catástrofes, mais indeterminação perante a própria vida solar.
Embaladas, assim, as nossas vísceras, numa galáxia longe da nossa depois da morte solar e do fim deste planeta cheio de fezes concentradas ao longo de milhões de anos, coisas destas poderão sofrer trasladações hoje impensáveis. A vida transporta-se a anos-luz de distância, mas vida desencontrada da sua raiz, reduzida à sua essência polar. Isto quer dizer que os governozinhos que nos governam, lambendo notas e atravancando tudo, a própria vida sem nome de espécie, cospem em bocados de barcos que nos restam pelos oceanos todos, espaço do que foi potencialmente um novo mundo. Não haverá mais retratos de presidentes, só insectos capazes de viver entre ambientes de metano ou calcinações inamovíveis. Se nada sobrar de nós, assim, nada mesmo, nem a alma, nem um resto de saudade, que vísceras parecidas com as nossas poderão chegar a sítios ainda limpos, derivados da mesma lógica energética que nos tem rodeado? Mais acasos, vidas acidentais, depois dotadas de coisas como neurónios e de percepção e de uma qualquer consciência?
Há cada vez menos respostas sob o peso colossal da tecnologia avançada e dentro da carne enervada (mortal) que entrou em desistência de valores supremos perante a utopia da conquista do tempo, aprendendo, enfim, o Universo. O conhecimento rudimentar e confuso que formámos da infinitude universal, entre milhões de galáxias, todas elas com mais de cem mil anos-luz de comprimento, levou-nos ao horror de desistir das culturas da invenção e das iluminações, como se, de facto, nos aproximássemos de um Apocalipse acima de tudo o que já foi convocado pelos profetas da morte dos astros.
Se a vida voltar a acontecer depois de nós, ou de outros, será de novo uma vida sem sentido e sem continuidade.
morte das máquinas ou vísceras
Enquanto a vida se desfaz entre molezas morfológicas, os sistemas sociais que as máquinas apoiaram, engrandecendo e deturpando, desagregam-se das partes cívicas, acaba a tabuada, 3 vezes 4 ou 34, sobrando as tintas pardas da indefinição que nos iludiu sempre e se multiplicou, pela luz solar, em milhares de reflexos coloridos. O mundo chegou a parecer aprazível, percorrendo contudo uma linha de perda civilizacional, entre excessos e perdas incontáveis.
As coisas foram perdendo as relações que as moviam, já quase ninguém sabe a ordem do que foi feito, calhando ainda marcas da carpintaria geométrica, habitação pós-rupestre ou do campo no século XX.
Os restos, já sem europas, parlamentos, desigualdades, pobrezas, os ódios dos últimos degoladores da beleza, em nome de Deus, desembarcados na terra áspera de um território sem árvores nem céu, são talvez as nossas memórias, longe do mar salgado, longe das díásporas hemorrágicas. Antes da Morte nos ligar definitivamente ao infinito, acabará o mar que não aproveitámos, a terra que despovoámos, as casas e o património todo que sepultámos, as crianças que não tivemos, os impérios que não partilhámos, a solidão e a solidariedade que não conjugámos; tudo isso fica aqui, desalinhado, nestes breves destroços que só a arte pressentiu.
MÓDULOS SAPIENS