quarta-feira, outubro 22, 2014

MAR SALGADO DE MIL EMIGRAÇÕES DESALMADAS

Esta paisagem é uma gravura feita com paixão por D.Carlos, 
por fim vítima dum dramático regicídio, no limiar abrasador da implantação da República


Ora Portugal tinha sido conquistado por terra e por mar, ficando amarrado àquele grande oceano, o Atlântico, a carpinteirar embarcações e amanhando a terra, numa distância de séculos antes da batata, coisa estranha e que tinha a alcunha de "veneno do chão". O chão foi muitas vezes o nosso mal, porque o tempo matava as plantas de comer e as árvores eram muito ocasionais para se aproveitarem. Claro que D. Dinis tratou do Pinhal de Leiria e há quem diga que, já nessa altura, numa vida tão rudimentar, alguns homens eram grandes, visionários. Teria o rei plantado tantos pinheiros por capricho, ainda por cima sem nada de substantivo para se comer? Diziam os historiadores menos científicos,  aqueles que pressentem a razão de ser das loucuras colectivas ou o imaginário que nos consome metade do cérebro: havia ali coisa, obviamente. Tanto pinheiro para tão pouca gente parecia mais o advento de uma indústria para ajudar em vários campos a instalação da vida. Não eram rosas, senhor, nem pão: eram os rolos da arte náutica, os planos de alargar a terra para além do mar, na primeira e talvez única visão a longo prazo de um governante do país.
Já ouviram falar dos Descobrimentos? Caravelas, naus, galeões, especiarias, paz de espírito, acção indiana, Brasis, Áfricas -- e tudo devagar, tudo pensado, desde a logística à alimentação e à cartografia. Fomos longe, fomos a vanguarda da Europa, e depois acantonámos a fazer gravuras e  perfumar monarquias decadentes. Da República nem se fala, porque acabou por mudar de número e fechar bocas e embocaduras com o Professor de botas lustrosas e uma ditadura em volta, por quarenta e oito anos, incluindo parte das guerras coloniais, ir e vir, mar, pastorícia dos espíritos, Cerejeira ao lado, uma visita jornalística, Só, Christine Garnier em São Bento, as pernas juntas, olhando a brancura do homem e o seu falejar em jeito de língua franco-portuguesa. Despediu-se um dia da porta, a mão ao alto, e ela no automóvel a apontar. De pé. E Só.

Mas vamos lá, tempos depois, "o 25 de Abril", "os capitães", "o Copcom da revolução", "o abaixo os latifundiários", "o deixa lá que do patrão tratamos nós", "o povo é quem mais ordena", "a Europa sopra ordens" e "os governos" (o nosso também), foram nessa. Euros em vez de escudos, uma União depressa desunida. Roubaram-nos as terras, a cortiça, mandaram abater os barcos que cumpriam a pesca, pagos enviesadamente, gente do mar metida em casa, com os restos, enquanto aquela gente também nos roubava o mar, as vinhas, o calibre natural das laranjas e das maçãs. Que reforma era esta? Em menos de um fósforo desapareceram a marinha mercante e as frotas da pesca longínqua, as aldeias dos imigrantes, tudo votado ao cimento armado, às auto-estradas contra os portos e as plataformas marítimas e ferroviárias da nossa ainda viagem, após as desastradas descolonizações, atrasadas, sem estrutura comunitária de raças e culturas. Voltámos para esta velha jangada (de pedra, como disse o Saramago) e um mar cada vez maior em volta. Um mar que vemos do ar, em vez de o aprofundarmos no mesmo e melhor intuito das antigas navegações por cima dele.
Nas listas das comissões nomeadas pelos partidos que arrumaram o país, com alguns militares, depois do "25 de Novembro", constam listas estranhas de bens alienados como lixo e pagos prémios de consolação em euros. Por isso vem lá, por ordem alfabética, os milhões de perdas: abóboras, abacates, albornozes, árvores (trinta mil espécies a favor do eucalipto) automóveis, casas, cadeiras, calmeirões, camaleões, canteiros, canais, dormitórios, donzelas, dormideiras, danças, enchidos, empilhadoras, escritores, editores, empreendedores, emblemas, exuberâncias, êxitos, além do ferro e dos ferros ou ferrovias, frémitos, fundos financeiros, deixando os forretas com quem se abriam novos negócios. Globalização mal-entendida e mal praticada, gente por ela empobrecida e as novas modas do ruído, governos sem governo, a deriva da água que secará um dia e os céus indomáveis pelos fumos cujo limite se aproxima do fim dos tempos, embora os grandes senhores das moedas em circulação, emparedados no seu fanatismo, se recusem a ter causas inteligentes cuja energia não vem das forças renováveis mas dos fósseis claramente destinados a provocarem desequilíbrios civilizacionais, mais doenças, mais catástrofes, mais indeterminação perante a própria vida solar.



Embaladas, assim, as nossas vísceras, numa galáxia longe da nossa depois da morte solar e do fim deste planeta cheio de fezes concentradas ao longo de milhões de anos, coisas destas poderão sofrer trasladações hoje impensáveis. A vida transporta-se a anos-luz de distância, mas vida desencontrada da sua raiz, reduzida à sua essência polar. Isto quer dizer que os governozinhos que nos governam, lambendo notas e atravancando tudo, a própria vida sem nome de espécie, cospem em bocados de barcos que nos restam pelos oceanos todos, espaço do que foi potencialmente um novo mundo. Não haverá mais retratos de presidentes, só insectos capazes de viver entre ambientes de metano ou calcinações inamovíveis. Se nada sobrar de nós, assim, nada mesmo, nem a alma, nem um resto de saudade, que vísceras parecidas com as nossas poderão chegar a sítios ainda limpos, derivados da mesma lógica energética que nos tem rodeado? Mais acasos, vidas acidentais, depois dotadas de coisas como neurónios e de percepção e de uma qualquer consciência? 

Há cada vez menos respostas sob o peso colossal da tecnologia avançada e dentro da carne enervada (mortal) que entrou em desistência de valores supremos perante a utopia da conquista do tempo, aprendendo, enfim, o Universo. O conhecimento rudimentar e confuso que formámos da infinitude universal, entre milhões de galáxias, todas elas com mais de cem mil anos-luz de comprimento, levou-nos ao horror de desistir das culturas da invenção e das iluminações, como se, de facto, nos aproximássemos de um Apocalipse acima de tudo o que já foi convocado pelos profetas da morte dos astros.
Se a vida voltar a acontecer depois de nós, ou de outros, será de novo uma vida sem sentido e sem continuidade.



morte das máquinas ou vísceras



    
Enquanto a vida se desfaz entre molezas morfológicas, os sistemas sociais que as máquinas apoiaram, engrandecendo e deturpando, desagregam-se das partes cívicas, acaba a tabuada, 3 vezes 4 ou 34, sobrando as tintas pardas da indefinição que nos iludiu sempre e se multiplicou, pela luz solar, em milhares de reflexos coloridos. O mundo chegou a parecer aprazível, percorrendo contudo uma linha de perda civilizacional, entre excessos e perdas incontáveis.
As coisas foram perdendo as relações que as moviam, já quase ninguém sabe a ordem do que foi feito, calhando ainda marcas da carpintaria geométrica, habitação pós-rupestre ou do campo no século XX. 

                                                

Os restos, já sem europas, parlamentos, desigualdades, pobrezas, os  ódios dos últimos degoladores da beleza, em nome de Deus, desembarcados na terra áspera de um território sem árvores nem céu, são talvez as nossas memórias, longe do mar salgado, longe das díásporas hemorrágicas. Antes da Morte nos ligar definitivamente ao infinito, acabará o mar que não aproveitámos, a terra que despovoámos, as casas e o património todo que sepultámos, as crianças que não tivemos, os impérios que não partilhámos, a solidão e a solidariedade que não conjugámos; tudo isso fica aqui, desalinhado, nestes breves destroços que só a arte pressentiu.



                                            DULOS                                                                                                               SAPIENS


quinta-feira, outubro 16, 2014

DAVID DE ALMEIDA MORREU NO CENTRO DE SI


David de Almeida  

Morreu  o artista gravador David de Almeida, um grande amigo que levou a gravura a um domínio minimalista esplendoroso. Aqui fica o meu pesar e a notícia para outros pares. Há alguns anos tive oportunidade de acompanhar por dias David de Almeida, no seu atelier, estudando, com as suas obras e as suas palavras (conceitos), todo aquele processo criativo. A seu pedido, viera para ver e saber se teria interesse técnico e cultural em escrever um livro sobre aquela produção. Foi um trabalho a que perdi o rasto, mas creio que chegou a ser publicado. 
Morreu mais um amigo, mais um homem de cultura, vítima de uma doença difícil,  deixando ao país um espólio, em colecções e museus, de grande nível no domínio da gravura, explorada na variedade dos meios e materiais, na unidade, entre a simetria e o lado geométrico do pensar que a decidia. Portugal, agora muito desatento a estas figuras e à importância do seu trabalho, assinala cada vez de forma mais baça os seus artistas, cientistas, homens do pensamento e da cultura. David de Almeida é mais um testemunho de que essa solidão no silêncio só nos acelera a decadência.

quinta-feira, outubro 02, 2014

MORREU O ARTISTA PLÁSTICO ESPIGA PINTO

ESPIGA PINTO

Inesperadamente, para mim, que estou isolado em Lisboa, morreu ontem, no Porto, um grande amigo e colega nas artes plásticas, Espiga Pinto. Foi penoso para mim, tão sem sentido, ele que seguia a minha obra escrita, publicada pela sua companheira Manuela Morais, conversando ou escrevendo. Desde há muito que acompanho esta obra, a sua, as figuras de grande qualidade gráfica, gente do Alentejo, até outras viragens na figuração e nos círculos e na geometria de um certo universo fantástico, salpicado de astros e de deuses ou símbolos zodiacais, tornando a ornamentalidade num jogo de pressentimentos metafísicos.
Espiga Pinto, natural de Vila Viçosa, ganhou, além de outras distinções, o Prémio da Bienal de São Paulo, no Brasil, em 1973. Tratava-se de cenografia para a Gulbenkian, A Dulcineia. Espiga Pinto foi, aliás, bolseiro daquela Fundação, em 1973 e 1974. Tanto quanto se pode avaliar, em termos curriculares, o pintor (também experimentador da escultura) realizou mais de 80 exposições individuais, participando em muitas outras de carácter colectivo. O seu trabalho foi sempre multidisciplinar, operando em pintura, escultura, desenho, medalhística, design grafico, sobretudo nas belas capas que produziu para a Ulisseia. Está representado em grande número de colecções, algumas verdadeiramente importantes, tendo recebido, por outro lado, diversos prémios, da Academia de Belas-Artes, 1987, e Prémio Coty, dos Estados Unidos, 2000, pela melhor moeda (moeda comemorativa do planeta Terra).
Foi professor de Desenho no Instituto de Artes Visuais (IADE, Lisboa, entre 1979 e 1987. Nomeado membro da Academia Nacional de Belas-Artes e sócio da Federação Internacional da Medalha.

Esta nota, sob um sentimento de perda, não passa da notícia terminal que o mundo nos vai obrigando a traçar, cada vez, com menos palavras, com menos caracteres, com mais silêncio. Espiga Pinto, apaixonado pelas coisas e temas que invadiam o seu imaginário, deixou sinais artísticos de grande valor gráfico ou pictórico. Sendo um dos mais dotados artistas do seu tempo, trabalhou muito e aparentemente numa espécie de recanto, sem trombetas nem viagens engalanadas. Aprendeu muito, no capismo, a dar rosto a vários livros, na editora Ulisseia. Um nome, afinal, de míticas partidas e românticas chegadas.