As pinturas da gruta Chauvet são provavelmente as mais antigas do mundo. No «Público» do dia 8 de Maio deste ano era mostrada ao público esta arte parietal que se estima ter sido executada há cerca de 30.000 anos. A recente datação, a mais exacta que existe, confirma que o bestiário que cobre as paredes desta gruta do Sul de França consolida um tempo de formação mais recente do que se supunha, o que obriga a rever muitas teses sobre a natureza das obras e em que termos funcionavam para os homens daquele idade, desenhos e pinturas numa agitação vitalista realizadas, presumivelmente, em níveis de claridade muito baixos, mesmo que reforçados com fogo de tochas criteriosamente orientado. Ao primeiro impacto, Éliette Brunel, sob o clarão da lâmpada frontal, exclamou apenas: «Eles vieram cá!»
Eis uma bela frase. Uma frase que mostra o espanto de uma cientista do século XX perante a absurda qualidade plástica, exímia representação de animais do meio, feita, segundo se conseguira determinar, até então, como tendo uma idade de mais de 40.000 anos. E a quem se referia Éliette, quem estivera ali, quem era essa gente que precedeu o homem histórico tal como o conhecemos? Seriam seres semelhantes a nós, do espaço exógeno, que ali apontara exemplos do seu estudo no local, onde nunca mais voltaram? A mitologia dos OVNIS acercou-se bem cedo destes testemunhos de uma sábia expressão gráfica e pictórica, aprontada onde ficasse preservada e exprimisse a capacidade do encontro com os meios locais e o seu valor sintético dizendo a beleza de animais já tão complexos, ao mesmo tempo exaltando a vida daquela terra e ornamentando os tectos das noites quentes ou frias que o fim do nomadismo viera alinhar, convocando mais meios de sobrevivência.
São razoavelmente conhecidas as matérias que o homem deste tempo usava, partindo da própria terra, a fim de assegurar a paleta básica, os materiais de expressão. As especulações quanto a datas, para um pensamento sobre causas e fins, pouco importa. Claro que os artesãos deste mundo remoto tinham uma praxis adequada ao que realizavam e certamente não desconheciam a fauna mais persistente de cada lugar. Mas para que pintavam e desenhavam, alheios e gatos e cães, a sítios de faustosa flora? Penso que isso se devia ao facto de o seu trabalho não ser desinteressado. E era interessado no conhecimento de certos animais, quer a sua anatomia e mobilidade, quer o grau de resistência a um lançamento de caça. Tais pinturas resultariam assim numa educação visual ordenada no sentido de se obter um justo e rápido olhar sobre tudo o que importava ver no intuito da caça. Parece muito pragmático para seres tão acossados por perigos de origem desconhecida. A metodologia e o rigor das representações podem apontar esse modo de operar quanto ao caminho visado. Mas não seria o rigor a face de uma mimética capaz de tornar límpido o objecto do desejo? Percepcionas e conheces bem, melhor acertas com os instrumentos de morte. Os desenhos parietais, sem composição de campo, seriam alvos de uma liturgia repetida muitas vezes e propiciadora do êxito na caça e no índice de sobrevivência.
Intriga, em todo o caso a raridade e a situação destes procedimentos. Não há bizontes pintados por tudo quanto é tecto de rocha ou parede alisada. Esses habitáculos, se é que se tratavam de habitáculos, não tiveram uma disseminação estrondosa: talvez porque eram trabalhos de manejo difícil, talvez porque poderiam servir sobretudo para a comunidade aspirar colectivamente à bondade dos deuses. Então, em lugar de habitação, as cavernas seriam espaços de refúgio e convocação dos espíritos. O homem tolhia-se perante a sua figura, porque aspirava a eternizar em qualidade aquele material tão constante à sua volta. Houve sítios, em todo o caso, onde figuras humanoides, de cabeças orladas, foram aparecendo no que talvez fosse a invenção a montante da pastorícia. A estranheza das cabeças e das suas ornamentações iguais levou os crentes da mitologia OVNI a verem ali figuras de outros lados, estrangeiros, que procuravam estabilizar os meios da vida na Terra. É muito e é pouco para ser verdade. Olhamos aquelas figuras e apetece-nos rodar a cabeça, ver em movimento para melhor sentir o movimento dos seres representados. Não há praticamente grutas destas onde, a certa altura e num espaço maior, não nos confrontemos com figura acima do nosso olhar. Também isto nos faz espécie, porque imagina-se mal como fariam os artesãos para subir ao seu campo de trabalho e executá-lo como que em primavera, sem os tornar façanhudos e distorcidos.
No primeiro dia em que entrei na capela Sixtina, no Vaticano, havia muita gente, um marulhar de vozes baças. Vendo mal e sem grande ânimo as pinturas das paredes, verticais, tive a sensação de que não havia tecto e fui olhando para cima, afinal como a maior parte das pessoas que me envolviam e até rezavam. Lá estava, bem no alto e com grande sabedoria técnica, uma série de pinturas que interessavam ao lugar e sugeriam a ascensão salvadora. Assombrado, só me vinham à memória o grande enlace das pinturas nas paredes e tectos das grutas que conhecera.