terça-feira, 26 de junho de 2018

O fuzil de caça.


Yasushi Inque.

Chegou até minhas mãos um filme baseado no livro “O fuzil de caça” de Yasushi Inque.

Como sou apaixonado pelo cinema japonês descobri este filme instigante de Heinosuke Gosho e ele me levou a conhecer o relato inspirador do roteiro. O filme se chama Ryoju (Hunting Rifle) é de 1961,-aqui o link - https://youtu.be/WhOwGY8xVmg-.

A obra literária foi escrita em 1949 , na suas páginas encontramos toda a discrição e a sutileza oriental; o conto surpreende pela elegância e pela forma do relato: um preâmbulo, três cartas e um epílogo.

O enredo.

Um poeta é convidado para publicar numa revista de caça, ele escreve um poema, mas como não tinha nenhuma adesão com a caça acaba descrevendo no texto a figura de um homem desconhecido que viu um dia numa paisagem de inverno com um fuzil nas costas.  Ele dá ao poema o nome: O fuzil de caça.  O poema termina dizendo: ”a solidão de um homem irradiando uma beleza sanguinária, que nunca mostraria ao mirar uma criatura viva”.
Com o tempo o poeta recebe uma carta de um leitor se identificando como o personagem daquele poema.  A carta e sucinta e direta não deixando muita informação sobre seu autor.  No entanto, ele recomenda ao poeta que leia as cartas num pacote que mandará em futuro próximo. Para que entenda o que passava pela mente daquele homem que o inspirou. Dias depois o poeta recebe um pacote com cartas de três mulheres diferentes que endereçadas ao caçador descrevem-no de acordo com cada uma de suas visões, elas são: a  sua sobrinha,  sua esposa e sua amante.

As perspectivas.

Primeiro temos a visão do poeta sobre um homem desconhecido. Depois alguém se reconhece naquele poema, por último o que se descobre nas cartas.  O jogo epistolar é fascinante e Josuke Misugi, personagem principal, acaba revelando uma relação extraconjugal que emerge nas confecções dos envolvidos.

As cartas.

O autor parece nos querer dizer que a realidade, os fatos, não são necessariamente o que são, o que acontece depende também de quem narra esses acontecimentos. Ao contrario do que seria a afirmação do real como algo único e objetivo; no relato são os olhares dessa realidade o que constroem a historia. O autor, como se fosse um sortilégio, abre três dimensões na nossa frente a partir de um fato único.
Na primeira carta a jovem Shoko, sua sobrinha, ao mesmo tempo filha da amante do protagonista, escreve para ele (seu tio Josuke) após a morte da sua mãe.
Conta que descobriu a relação paralela que sua mãe (Saiko) tinha com ele, descreve a ruptura da relação da sua mãe com seu pai por conta de uma infidelidade e decide se afastar deste triângulo e recomeçar uma nova vida longe dali.  
Na segunda carta Midori,a mulher de Josuke, conta como soube durante todo o tempo sobre a relação paralela entre ele e sua prima Saiko.
Com um clima tenso de rancores pede a separação e tenta rebaixar a figura de Josuke recriminando sua falta de virilidade e sua imagem desinteressante.
Na terceira carta Saiko conta como viveu com remorso toda a relação oculta, mas se despede de Josuke com um olhar generoso.

Final.

A solidão permeia a ação, a sobrinha se afasta, a mulher se separa e a amante morre; num clima de insinuações e de sombras o silencio parece ser a única voz.
Cenas sutis, nuances, antiguidades e detalhes como o da teoria de Josuke quando diz para Saiko que cada um de nos carrega uma pequena serpente dentro, tingem as imagens discretas do amor aparentemente oculto. O não dito parece explodir no peito dos personagens.
O autor, Yasushi Inoue (1907-1991), graduado em estética e filosofia, estreou em 1949, com este livro sua longa trajetória literária.




sexta-feira, 22 de junho de 2018

O inferno de Dante.


A divina comedia. (o inferno).


A DIVINA COMEDIA de Dante Alighieri assim como o Quixote, a Ilíada ou a Odisséia fazem parte de um acervo necessário que todo bom leitor que queira entrar em contato com as grandes obras da historia precisa conhecer.
Tal vez o maior mérito do livro esteja na originalidade do tema, na métrica de seus versos, na musicalidade ou na afirmação do dialeto toscano, base da língua italiana,  como passível de possibilitar obras literárias - lembramos que até então às obras literárias eram escritas só em latim.
Mérito também na própria anedota, nos mitos, nas imagens que inspiraram tantos artistas e que povoaram a fantasia e a imaginação dos seus intermináveis leitores.
A repercussão da obra é tanta que o significado da palavra “dantesco”, por exemplo, ficou fixado há 700 anos, em todas as línguas, como sinônimo de algo descomunal.

O inferno.

“Ó, vós que entrais , abandonai toda esperança” (frase da entrada do inferno).
O próprio autor é o protagonista da sua obra, no inicio da narração ele se perde numa floresta encontra uma saída, mas é impedido de avançar numa montanha por três feras: um leopardo, um leão e uma loba.
Esta cena guarda toda uma simbologia: Domingos Van Erven interpreta que a floresta obscura estaria associada com a ignorância, (o pecado); a montanha a saída, o sol, a luz a ascensão espiritual e as feras: o leopardo, o leão e a loba com a incontinência (falta de controle ante o impulso), a violência e a fraude, forças que estariam impedindo a elevação.
Outros interpretes concordam com associar o leopardo com a incontinência (também entendida como tentação), mas interpretam  o leão e a loba como símbolos da soberba e da inveja.
Ainda outros interpretam estas três feras com a luxúria, o orgulho e a avareza.  Dorothy Sayers menciona que estas categorias do pecado estão relacionadas também com as três etapas da vida: luxuria com juventude, vaidade com os anos médios e avareza com a velhice.

A continuidade do enredo.

Prestes a desistir e voltar para a selva, Dante é surpreendido pelo espírito de Virgílio - poeta da antiguidade que ele admira - disposto a guiá-lo por um caminho alternativo (Virgílio foi chamado por Beatriz, paixão da infância de Dante, que o viu em apuros e decidiu ajudá-lo).
A presença do Dante no texto representaria ao homem, o poeta Virgilio, representaria à razão, e Beatriz a fé.
 O caminho proposto por Virgílio consiste em fazer uma viagem pelo centro da terra (reino dos mortos). A viagem começa nos portais do inferno, os protagonistas atravessariam o mundo subterrâneo até chegar aos pés do monte do purgatório. Dali, Virgílio guiaria Dante até as portas do céu. Dante então decide seguir Virgílio que o guia e protege por toda a longa jornada através dos nove círculos do inferno, mostrando-lhe onde são expurgados os diferentes pecados, o sofrimento dos condenados, os rios infernais, suas cidades, monstros e demônios, até chegar ao centro da terra, onde vive Lúcifer. Passando por Lúcifer, conseguem escapar do inferno por um caminho subterrâneo que leva ao outro lado da terra, e assim voltar a ver o céu e as estrelas.

Os círculos.

Dante cria um inferno em forma de cone invertido e dentro dele teríamos uma seria de círculos, estes correspondem a uma serie gradativa de nove espaços onde se pagam os pecados. A jerarquia deles corresponde com a menor e a maior gravidade dos atos, estes estão ligados com aqueles três princípios que encontramos quando citamos as feras. Do primeiro até o quinto circulo teríamos os incontinentes , neles entram os glutões e luxuriosos, a segunda etapa inclui do sexto até o oitavo, aqui estão os violentos , os irascíveis e rancorosos, no nono se encontram os que mentem, que traem, os feiticeiros e os bajuladores.

Historias.

No segundo circulo do inferno Dante coloca também os adúlteros, entre os que se encontram neste circulo temos os amantes Francisca e Paolo.
É importante assinalar que Dante funda o mito de Francisca com este relato e que esse mito inspirou muitos artistas ao longo da historia.
 Francisca de Rimini tinha uma paixão secreta pelo cunhado, eles costumavam passar as tardes compartilhando leituras e cultivando um amor sublimado.
Um bom dia Francisca e Paolo estavam lendo a historia de Lancelot com a reina Ginevra (esposa do rei Arthur) . No romance Lancelot também mantinha um amor segredo e proibido.
No livro a conselho de um amigo do casal chamado Galeoto,  Ginevra oferece a boca para ser beijada - a leitura foi para Francisca e Paolo o que Galeoto foi para Ginevra e Lancelot. Os amantes se aproximam e no momento crucial aparece o marido, os surpreende e com sua espada mata os dois.                                                                                                            

As historias e os mitos.

Um dos juízes do inferno é Minos, exerce a missão de condenar os recém chegados; ele ouve a confissão dos mortos e os destina a um dos nove círculos, faz isso enrolando sua enorme cauda envolta do corpo, cada volta representa um círculo abaixo.
Até Ulises aparece em um dos círculos do inferno, mas Dante muda o percurso da historia e faz que o herói não volte aos braços de Penélope e sim avance no mar desconhecido.
As artes se inspiraram em Dante.
Dore, Bottichelli, William Blake e Dali foram alguns dos artistas que retrataram a Divina Comedia . Na escultura, a Divina Comedia inspirou Rodin, na música, Franz Liszt, dentre outros.
Aqui um link para assistir as ilustrações de Botticelli.

Final.

Dante tem uma imaginação muito fecunda e um conhecimento em um uso da mitologia que potencializa seus versos. Em determinado momento, quando encontra um grupo de gigantes até inventa uma língua imaginada para dar uma amostra de sua língua estranha: “Raphèl maì amècche zabì almi” (isto ocorre
no canto XXXI do inferno. v.68).
As imagens são por momentos aterradoras e parecem estar querendo atemorizar aos pecadores com os tormentos descritos,  torturas são citadas com requintes de crueldade : lembramos a do boi siciliano, de bronze, que parecia expressar sua dor aos mugidos. Tratava-se, na realidade, de um instrumento de tortura que, sendo aquecido, assava a vítima dentro
dele, e seus gritos de desespero davam tal impressão. Os feiticeiros e adivinhos (os áugures), sofreram a punição de ter o rosto sempre voltado para as costas, obrigados por isso a andar para trás.
As imagens sensoriais nos remetem (segundo Borges) aos martírios pintados pelo Bosco no  painel dos infernos.
O chocante das imagens produziram rechaços históricos, tal vez o mais conhecido seja o de Friedrich Nietzsche , ele falou que Dante Alighieri foi: “Uma hiena que escreveu poesia nas tumbas”.
Deixo aqui esta resenha como uma motivação para novos leitores se encorajem a mergulhar em esta obra incrível.
Finalmente deixo aqui um link para assistir o Borges comentado o livro de Dante.
https://youtu.be/AHBYA7-ldQc
e aqui outro para ouvir a Sinfonia de Frank Liszt.
https://youtu.be/lEK1ojgQ1-4


 Nota das imagens:

 1)Willian Dyce.
2) Dore.
3)Fleubach
4) Botgicelli
5) Dore.
6)Bosco