Em volta do Manifesto: “Por uma arte
revolucionaria independente”.
Estas páginas
tem como objetivo desenvolver um olhar crítico e descritivo sobre a edição
brasileira do livro “Manifesto por uma arte
revolucionária independente”, assim como apontar desdobramentos que ocorrem nos
dias de hoje a partir das questões lançadas no texto.
Introdução.
A figura de
Trotsky foi tão difamada pela imprensa burguesa e pelo stalinismo que penso ser
oportuno reapresentá-la.
Trotsky foi
um ativista político de primeira grandeza, que dirigiu junto a Lênin a
revolução russa. Ocupou-se da direção do exército vermelho, tendo sido indicado
pelo líder bolchevique para substituí-lo no comando geral do partido e dar
continuidade às tarefas da revolução. Mas isto não aconteceu porque Stalin usurpou
o cargo, desterrou-o em 1929 até que, finalmente, o mandou matar no México em
1940.
Trotsky, além
de militante, foi um respeitável intelectual: escreveu algumas teses
importantes como “A Revolução Permanente”, “ A Internacionalização da Revolução” e livros
relacionados com o fazer artístico, como “Literatura e Revolução”. Daí vem o
interesse de André Breton , poeta francês, líder do surrealismo, em dialogar
com ele para elaborar um manifesto artístico que tivesse um desdobramento
político. Em 1938, Breton visita Trotsky e juntos com o pintor mexicano Diego
Rivera elaboram o “Manifesto por uma Arte Revolucionária
Independente”.
Aqui
temos de nos deter para sinalizar o caráter inaudito do “Manifesto Mexicano”: não
existe nenhum outro manifesto similar que tenha reunido a figura de um
referente revolucionário mundial da importância de Trotsky à de um líder de um
movimento vanguardista como Breton. Não há– este é um dos fatos originais do encontro
- outro documento que fale em termos tão práticos sobre a relação entre
estética e política revolucionária.
Cabe-nos refletir sobre a vigência deste
Manifesto 80 anos depois da sua criação, pois assistimos a uma atualização das
forças nazistas, stalinistas e trotskistas ao mesmo tempo em que estamos
atravessando uma tripla crise: crise da arte, crise política do capitalismo, e
crise de como organizar uma força revolucionária: também segue vigente a tarefa
de pensar de novo as relações entre a independência da arte –da revolução – e a
revolução – pela libertação definitiva da arte.
O
Manifesto no Brasil.
Trazer este livro para o Brasil foi a tarefa de alguns intelectuais
importantes que, em 1946,sob a direção de Mário Pedrosa,traduziram o manifesto
e foram incorporando artigos, atualizando-o com temas locais.Assim chegamos à edição
que usaremos como principal referência deste artigo.
O livro ainda tem uma segunda parte, onde se publicam artigos
de intelectuais locais. Os nomes citados na edição de 1985 da editora “Paz e
Terra” são os de Mário Pedrosa, Patrícia Galvão (Pagu), Mário de Andrade,
Eduardo Moniz, Sergio Millet e Geraldo Ferraz.
A idéia de retomar esta discussão da ordem do estético e do
político não é por acaso, mostra a vontade e a necessidade de reunir forças, de
afirmar o pensamento de Trotsky no Brasil e retomar seu ideal libertário.
A questão da liberdade.
Trotsky escreveria que o homem procura na arte “a sua
exigência da harmonia e plenitude da existência” e completa que “com a
revolução o homem poderá realizar toda sua potencialidade criadora” e conclui que
“a liberdade da arte é a liberdade que o artista se deve a si próprio e a sua
própria emoção”.
Ele comenta que, em oposição a esta idéia, o stalinismo se
apresenta como uma tendência destruidora dos ideais da revolução e da liberdade
artística.A revolução tinha sido tracionada e ao invés de potenciar o espírito
criativo acabou se consolidando como um elemento de controle, coesão e propaganda
política.
Trotsky considerava a exaltação da figura de Stalin, a idéia
de uma “arte proletária” e o “realismo socialista” na arte russa como uma
grosseria que rebaixa a revolução proletária em termos artísticos a uma
estatura inferior a da monarquia.
Aparece uma anedota interessante para ilustrar a questão da
liberdade na elaboração do manifesto entre Breton e Trotsky que merece um destaque,
a frase: “toda licença à arte, salvo contra a revolução proletária” citada do
livro “Literatura e Revolução”; foi criticada por Trotsky,que pediu para
retirar a restrição, argumentando que se,hipoteticamente, existisse algum tipo
de frase ofensiva aos ideais revolucionários,o próprio autor seria condenado
pelo seu público sem necessidade de uma indicação que se antecipe ao julgamento,
inclusive ponderou que, em vista dos fatos que acontecem na Rússia, a frase que
condena o que fosse “contra a revolução proletária”poderia abrir caminho para
interpretações falsas. Lembremos que Stalin incriminava toda oposição
justamente com essa acusação.
Arte e política.
Complementando o discurso, Trotsky incorpora a questão do
comprometimento: a arte tem de ser livre,mas não pode ser gratuita, simplesmente
“arte pela arte”.Ela teria de estar subjetivamente engajada com seu conteúdo
social, mas sem qualquer relação com o que seria uma proposta propagandística.
Apenas tem de ser entendida no sentido de se colocar contra o indiferentismo
político, o artista exerce seu papel emancipador quando está compenetrado
subjetivamente em seu conteúdo individual e social.
O Manifesto relata como a força da criação está sendo
esmagada pelo nazismo e pelo stalinismo, afirma que uma arte verdadeira tem que
ser revolucionária, tem de aspirar a uma reconstrução da sociedade, mesmo que
apenas para libertar a criação individual do homem.
Neste artigo, Trotsky coloca a questão da relação da arte
com a luta política: ele fala que o homem expressa na arte a plenitude da sua
existência e as privações que a sociedade dividida em classes impõe. Ele continua:
”parece impossível apenas lutar com os métodos da arte”. Assim, a relação da
luta ideológica e política se torna necessária. Mas a história criou uma cilada:
a revolução foi traída e a arte sofreu como totalitarismo e a falta de liberdade.
A questão da verdade.
Citando o Manifesto: “A arte, como a ciência, não só não
precisa de ordens, mas não pode, por sua natureza, suportá-las. A criação
artística tem suas leis, mesmo quando está conscientemente a serviço do
movimento social. A criação intelectual é incompatível com a mentira, a
falsificação e o oportunismo. A arte pode ser uma grande aliada da revolução,
enquanto permanecer fiel a si mesma”. Em outras palavras,Trotsky fala sobre a
necessidade da verdade que se exige para ser um artista.
No artigo “Arte e Revolução”,Trotsky afirma que uma
revolução não pode nem deve tutelar a arte. Ela não precisa de ordens, ela
precisa ser verdadeira; “a arte pode ser uma verdadeira aliada da revolução em
quanto permanecer fiel a si mesma”.
A questão da verdade aqui aparece ligada ao conceito de ser
autônomo: “a independência da arte para
a revolução, a revolução para a libertação definitiva da arte”.
Finalmente, Trotsky expõe que nem o comunismo nem o fascismo
podem levar a cabo esta tarefa, a libertação da cultura é inseparável da
libertação social de toda a humanidade.
A questão da arte e o
mercado.
O Manifesto agrega que toda manifestação artística, de certo
modo, expressa esta revolta. A sociedade burguesa domestica este movimento subversivo
e o “oficializa” introduzindo-o nos meios acadêmicos. Os movimentos engolidos
pelo sistema são adversos às novidades,assim como orientam os sindicatos e os
partidos. Neste contexto, as artes que se afastam deste conservadorismo são as
primeiras vitimas do movimento, sendo sepultadas e afastadas. Em outras
palavras, o próprio movimento da arte encontra dificuldade de poder se
desenvolver pela apropriação que o meio acadêmico faz o petrificando e pela
orientação tendenciosa do discurso político que tenta o colocar ao seu serviço.
Para exemplificar como a cultura é manipulada, Egberto
Gismonti alertava como o sistema, a “indústria cultural” americana, dividiu a
música popular ou folclórica da música de concerto; ele descreve como até o
século XIX a música ancestral tinha sido entendida como origem e fonte da
música de concerto e como em determinado momento a “indústria cultural”cria uma
hierarquia escolhendo a primeira como inferior e a segunda como superior. A conseqüência
deste critério seletivo se traduz em colocar o ensino acadêmico e toda uma rede
de teatros à disposição, colocando prioridades para uma arte superior e marginalizando
as demais a uma situação de inferioridade.
Existem vários exemplos de como o poder se apodera dos
estilos para produzir a sensação de valorização para aqueles que o consomem: o
jazz, que na sua origem foi negro e popular nos EE.UU,foi transformado em um
gênero chic e esnobe para consumo de uma pequeno burguesia entediada; o samba,
que é uma manifestação espontânea das comunidades negras e pobres brasileiras, foi engolido, erotizado para ser vendido para
o turismo, assim como o sertanejo passou a ser desprezado na sua versão
original e consumido na sua versão “universitária” pelas massas alienadas.
O poder, com seus métodos, domestica o comportamento de
alguns artistas, o estado burguês absorve-os como mercadoria e o partido
comunista (que teria de representar uma oposição lúcida), com sua preferência
estética de retratar o realismo socialista, coage aos artistas criativos, acusando-os
de realizar uma arte burguesa.
Alem destes métodos de dominação ainda temos as formas mais grosseiras:
a compra direta, o encanto pela via acadêmica ou a imposição de padrões estéticos
rígidos como forma de adoecer a liberdade da arte; o Manifesto denuncia como os
artistas dotados de caráter e talento são marginalizados e como os carreiristas
e desprovidos de dom ocupam a primeira fila.
As dicotomias.
Trotsky continua falando do ceticismo como um tipo de desmoralização
e defende o trotskismo das acusações de ser minoritário, argumentando que isso representa
uma postura política de quem não teve medo de ficar só no meio de uma dicotomia
que não oferece uma terceira opção. Faz um paralelo com a arte ao afirmar que
muitos artistas audaciosos experimentam este isolamento e, enquanto os
rotineiros, esnobes e céticos a desonram, a vida os leva em arrastão. Continua,
dizendo que as diferenças entre a III e a IV internacional não estão só no
âmbito político, mas também no território da arte. Assim, a perspectiva
artística stalinista é necessariamente reacionária.
Trotsky estava no meio de uma crise de pré guerra, crise que
acabou com o projeto audacioso da FARI (Federação de Artistas Revolucionários Independentes).Muitos
artistas romperam com a federação por achar que ela teria que apoiar o stalinismo
contra o nazismo, argumentavam basicamente que criticar a burocracia russa
seria fazer jogo com o nazismo. Trotsky esclarece que foram os próprios erros
do stalinismo que propiciaram o fascismo e que,na realidade,é o antifascista
omisso com a URSS quem faz jogo com o fascismo.
Política da arte e
preferências pessoais.
Trotsky, como já tinha constatado no livro “Literatura e Revolução”
e como assevera novamente neste Manifesto,era aficionado por uma arte realista,
admirava Diego Rivera pelo modo como expunha em suas telas uma arte que elevava
a consciência das massas ao narrar a epopéia do povo mexicano e por tirar essa
arte do circuito elitista dos salões,levando-o às ruas.
Uma das grandes colaborações de Trotsky neste Manifesto foi
separar seu gosto pessoal e evitar uma postura que negasse as outras
possibilidades artísticas. Ele é enfático em dizer que a arte não poderia
servir de veículo para nenhuma ideologia, nem mesmo a socialista revolucionária.
Tarefas.
O Manifesto propõe
uma liga revolucionária para difundir os objetivos e criar um fórum de
discussão mundial. Esta liga existiu realmente, mas teve vida curta devidoà
crise que se criou em relação ao conflito binário nazismo/stalinismo.
SEGUNDA PARTE.
A segunda parte da edição inclui uma série de artigos de Intelectuais
brasileiros que publicaram idéias em sintonia com o espírito do documento. No
primeiro texto,Mário de Andrade narra como os intelectuais percebem que suas
reivindicações se confundem com as da sociedade como um todo e como eles
desenvolvem uma distância lúcida do PCB.
A seguir, numa entrevista, Edmundo Moniz fala sobre o jornal “Vanguarda Socialista” e
descreve como era a relação com o PC. Cita o caso de Jorge Amado, que
introduzia nos livros elogios ao partido comunista e à luta social.
Ao longo da entrevista ele descreve também como a postura estética defendida pelo
stalinismo: o “realismo socialista” se opunha ao abstracionismo defendido por
Mário Pedrosa que achava que o figurativo de algum modo cerceava o crescimento
das possibilidades estéticas.
A edição inclui um artigo onde Mário de Andrade faz uma
critica à falta de verdade, aos clichês e lugares comuns de uma antologia de
poesia de proletários americanos. Também ironiza a postura do intelectual médio
brasileiro, dizendo que ele deveria ser um revoltado, mas acaba sendo engolido
pelo sistema, que o transforma em uma existência inofensiva.
Patrícia Galvão (a Pagu) faz intervenções tocando diferentes
assuntos: por um lado critica a literatura best-seller, inculta, dita
proletária, de Jorge Amado. Também fala sobre a necessidade de o intelectual se
situar e reconhecer o que é ir à frente. Onde estaria esse lugar? O que teria de
transpor?
A autora por outro lado fala de valorizar a pesquisa, no
sentido que a pesquisa nos ajuda a entender o passado para intervir no presente.
Ela orienta a pesquisa como o ato de acompanhar os
movimentos dos criadores e não dos dogmas.
Faz uma comparação entre a literatura traída e a revolução
traída. Levanta a questão da liberdade e pergunta: “é livre quem milita dentro
de uma organização que cerceia aos seus membros o exercício dela? Uma
organização que impõe uma disciplina de ferro?”. Critica Portinari quando que
ele afirma que toda arte tem de estar ligada ao povo, do contrário seria apenas
um jogo de cores sem sentido.
A segunda parte da edição culmina com alguns artigos de Mário
Pedrosa, onde ele descreve a política nazista de Stalin ao querer negar aos artistas
os movimentos que não compactuavam com o realismo socialista ou com o culto à
sua pessoa.
Final.
Existiu no Brasil, assim como na Argentina, toda uma geração
seduzida pelo partido comunista ou pelo nacionalismo burguês (representados
pelo Getulismo e o Peronismo).Estas tendências discutiam no âmbito local as
políticas do nazismo/stalinismo que existiam a nível global.
O partido comunista dirigia os sindicatos de músicos,
atores, escritores e atraia figuras como Mercedes Sosa, na Argentina; Pablo
Neruda no Chile e, Jorge Amado, Portinari e Cláudio Santoro no Brasil.
Hoje essas forças se reinventam em novas dicotomias
Lula/Bolsonaro; Freixo/Crivela. Temos de tirar conclusões de toda esta
experiência histórica e buscar posturas independentes destes caminhos
oferecidos.
Os antigos stalinistas hoje estão divididos em três grupos:
os que romperam na época da Perestróica, representados por Roberto Freire(setores
que hoje apóiam o governo Temer), o PC do B de Jandira, que apóia o PT, e fez
parte do governo Cabral e Paes no Rio e o PCB que apóia o PSOL.
Enquanto a esquerda, burocratizada, quer a arte ao seu
serviço, a direita, grosseira, retira as matérias humanas do ensino obrigatório
para divulgar seus dogmas de superficialidade, alienação , obediência e provocar o que Cortázar chamava
de “genocídio cultural”.
É fácil imaginar as dificuldades e o isolamento político que
sofrem e sofreram os artistas e intelectuais que não se alinham em nenhuma
destas duas posturas. Cristina Galvão
(Pagu) afirmava: “estamos empreitados entre a direita opressiva e a esquerda
totalitária”.
O futuro.
A grande colaboração do Manifesto foi a de fazer uma ponte
entre uma postura política própria e a liberdade artística que se desdobrava
dessa postura.
No Brasil, um grupo de intelectuais, artistas plásticos e
militantes políticos entenderam este legado e criaram um núcleo importantíssimo
para o desenvolvimento da política e da arte. O artista plástico Antonio Manuel
afirma que a grande colaboração de Pedrosa foi o seu ato político de não direcionar,
mas de estimular a criação.
A releitura do Manifesto, a criação de uma nova FIARI para
divulgar os ideais libertários que colaborem para desenvolver uma consciência
social e uma postura crítica em relação ao poder ou ao direcionamento estético
podem ser caminhos saudáveis e legados importantes, nos quais possamos nos
orientar para dar continuidade a esta herança
.
Roberto Rutugliano 2017.