27 maio 2016
Dois Irmãos - Milton Hatoum
Milton
Hatoum
Companhia
de Bolso
200
páginas
R$25,00
O
primeiro capítulo do livro é curtinho, porém muito impactante. O autor recortou
um trecho de altíssimo grau de emoção da história e abriu o livro com ele.
Eis
os dois últimos parágrafos deste capítulo:
“Eu
não a vi morrer, eu não quis vê-la morrer. Mas alguns dias antes de sua morte,
ela deitada na cama de uma clínica, soube que ergueu a cabeça e perguntou em
árabe para que só a filha e a amiga quase centenária entendessem (e para que
ela mesma não se traísse): “Meus filhos já fizeram as pazes?”. Repetiu a
pergunta com a força que lhe restava, com a coragem que mãe aflita encontra na
hora da morte”.
“Ninguém
respondeu. Então o rosto quase sem rugas de Zana desvaneceu; ela ainda virou a
cabeça para o lado, à procura da única janelinha da parede cinzenta, onde se
apagava num pedaço do céu crepuscular”.
O capítulo lança uma questão “Meus filhos já fizeram as
pazes?“ que mostra um enorme conflito e com a pergunta atiça a curiosidade do
leitor. Antes de responder sim ou não, somos provocados à bisbilhotice,
queremos saber que motivo é forte o suficiente para colocar em lados opostos dois
irmãos? Ansiamos por saber por que estão brigados.
A história se passa em Manaus de
1910 a 1968. No período, o autor mostra a evolução da cidade enquanto inunda as
páginas com as águas do rio Negro e enreda a história de imigrantes libaneses com
ramos das seringueiras e sons dos pios de jaçanãs e jacu-ciganas.
Aos
poucos somos apresentados aos irmãos gêmeos Omar e Yaqub
Em
relação a Yaqub: “O que lhe faltava no manejo do idioma sobrava-lhe no poder de
abstrair, calcular, operar com números”.
“E
para isso”, dizia o pai orgulhoso, “não é preciso língua, só cabeça. Yaqub tem
de sobra o que falta no outro”.
O
outro, o Caçula – referindo-se a Omar – exagerava as audácias juvenis: gazeava
lições de latim, subornava porteiros sisudos do colégio dos padres e saía para
a noite, fardado, transgressor dos pés ao gogó, rondando os salões da Maloca
dos Barés, do Acapulco, do Cheik Clube, do Shangri-Lá. De madrugada, na hora do
último sereno, voltava para casa.
“Colhe
a orquídea mais rara, mas também arranca a aninga da lama”.
Apesar
de narrado na primeira pessoa, durante muito tempo ficamos sem saber quem é o
narrador. “E a mim, sem me olhar, sem se importar com a minha presença Na
verdade, para Zana, a mãe dos gêmeos, eu só existia como rastro dos filhos
dela”.
No
transcorrer da história descobrimos que o narrador é filho de um dos gêmeos com
a empregada índia que mora nos fundos da casa. O narrador, desprezado pela
família, quer saber quem é o pai.
Quem
são os pais dos gêmeos?
Halim,
marido de Zana e pai dos gêmeos era comerciante. “Vendia coisas de qualquer um.
Vendia sem prosperar muito, mas atento à ameaça da decadência, que um dia ele
me garantiu ser um abismo. Não caiu nesse abismo, nem exigiu de si grandes feitos.
O abismo mais temível estava em casa, e este Halim não pode evitar”.
“A
intimidade com os filhos, isso o Halim nunca teve. Uma parte de sua história, a
valentia de uma vida, nada disso ele contou aos gêmeos”.
“Mas
acreditava, bêbado de idealismo, no amor excessivo, extático, com suas
metáforas lunares. Um romântico tardio, um tanto deslocado ou anacrônico,
alheio às aparências poderosas que o ouro e o roubo propiciam. Talvez pudesse
ter sido poeta, um flâneur da província; não passou de um modesto negociante
possuído de fervor passional”.
E
quem era a esposa Zana?
“Era
possuída por uma teimosia silenciosa, matutada, uma insistência em fogo brando;
depois, armada por uma convicção poderosa, golpeava ferinamente e decidia tudo,
deixando o outro estatelado.”
E
a pergunta lançada o primeiro capítulo?
“O
duelo entre os irmãos era uma centelha que prometia explodir”.
“Duelo?
Melhor chamar de rivalidade, alguma coisa que não deu certo ente os gêmeos ou
entre nós e eles, revelou-me Halim, mirando a seringueira centenária no
quintal.”
Antes
que eu, nas transcrições, revele mais do que deveria, adianto que se trata de
uma história triste, uma história sem advertências ou opiniões de moral. É história
de seduções consanguíneas. É história de incestos, paixões e ódios.
Em
vez de responder a pergunta, elaboro outra: porque levei tanto tempo para
conhecer a escrita de Milton Hatoum?
24 maio 2016
A picape
A picape
– O casal foi lá
em casa
na hora do almoço .
Confirmei que a minha
camionete era de cabine
dupla . Entraram. Minha esposa ofereceu doce de abóbora
com coco aos dois. Célia aceitou. Ela e
minha mulher ficaram conversando na sala enquanto
nos dirigimos ao térreo
onde a picape estava estacionada. Fazia muito calor e lembro-me
que ainda no elevador
o Fernando perguntou se a picape tinha ar condicionado.
– E depois ?
– O Fernando examinou detalhadamente a pintura ,
procurou diferenças de brilho , observou se as frestas
das portas e do capô
estavam uniformes . Abriu o porta-malas e confirmou que
a lataria não
sofreu nenhuma avaria . Quando examinou o motor
comentou que não
gostava quando o motor
era lavado, pois ocultava possíveis vazamentos. Percebi que
os olhos dele brilharam quando viu a quilometragem. Orgulhosamente disse que eram 28 mil
quilômetros de asfalto
da cidade e de uma única e maravilhosa viagem
percorrendo todo o nordeste
em lua-de-mel .
– Aí, o Fernando virou a chave e ouviu o
ronco do motor
diesel . Ele
fechou a porta , abaixou o vidro e perguntou se a rua
à frente era
de mão para a
esquerda ou
a para direita . Engatou a primeira e saiu lentamente .
– E a senhora , dona
André ia?
– Fiquei ouvindo a Célia me contar que o Fernando
era uma pessoa
muito querida .
Que eles
passaram a noite em
claro se amando loucamente
e agora , de manhã, juntos ,
fizeram compras no shopping. Ela ganhou a blusa
e a calça que
estava usando. A bolsa também era nova para combinar
com as sandálias .
Ela estava eufórica
porque o Fernando iria apresentá-la para a família dele e
gostaria que ela
estivesse maravilhosa . Ah, e também foi
presenteada com um relógio.
– E o que mais ?
– Ela disse que
estava apaixonada pelo Fernando, que ele tinha bom gosto
e que escolhera pessoalmente
aquela blusa . Ela
disse que deveria ter
um decote
atraente porém
sem ser
vulgar . Que
detestava vulgaridades .
– Como foi que a senhora ,
dona Célia, conheceu o senhor
Fernando?
– Eu me
formei em pedagogia
e não consegui encontrar
emprego . Trabalhei como
secretária num escritório
de advogados por
seis anos
e fiquei desempregada e resolvi ganhar dinheiro da mesma forma como paguei minha faculdade . Coloquei anúncio no jornal
e foi daí que o Fernando me ligou.
– Então a senhora conheceu o Sr. Fernando ontem à noite, fizeram um
programa, foram às compras e depois escolheram a picape dele – apontando para o
marido da dona Andréia.
– É por isso, seu
delegado, que acho que o desgraçado não volta mais com a caminhonete.
13 maio 2016
A cor púrpura
A cor púrpura
Alice
Walker
Editora
Círculo do livro
258
páginas
R$
16,00 na Estante Virtual
Este livro foi proposto e eleito pelo Clube de
Leitura Leia Mulheres – Brasília. Mais um acerto de qualidade. O grupo se reúne
mensalmente para conversar sobre uma obra de autora e este particularmente abre
muitas possibilidades de discussão e questionamentos sobre racismo, machismo,
lesbianismo, dignidade humana, direitos humanos, mas também é uma historia de
resistência, superação e empoderamento de mulheres negras.
Embora não tenha visto, eu já conhecia o título por
causa do filme de mesmo nome dirigido por Steven Spielberg, estrelado por
Whoopi Goldberg e Oprah Winfrey e indicado para 11 Oscar’s. (não levou nenhum).
Foi escrito em 1982, vencendo o Prêmio Pulitzer no
ano seguinte.
É um romance epistolar, isto é, a narração se
desenvolve por cartas escritas primeiro a Deus e depois é uma correspondência
trocada entre irmãs desde a adolescência até a meia idade.
A história começa numa pequena cidade da Georgia em
1906 quando Celie, uma menina de 14 anos, é estuprada seguidamente pelo pai,
gerando dois filhos. Em outra violência o pai se desfaz das crianças e ainda
oferece a irmã mais nova Nettie, em casamento para Sinhô, um senhor viúvo. Ela,
por amor e proteção à irmã, se oferece para casar no lugar dela. É feita quase
que uma escrava para cuidar da casa e filhos do primeiro casamento dele.
Enquanto ele é apaixonado por Doci Avery uma sedutora cantora de blues. Celie,
por não ter com quem compartilhar a dor, escreve cartas a Deus. Para piorar a
situação Sinhô, acolhe a amante em casa para que Celie recupere a sua
debilitada saúde.
É partir desse ponto que a história ganha nova
configuração com a descoberta de Celie por outra opção sexual, tomada de
consciência da dignidade e conquista da autoestima.
Posteriormente passa a receber cartas da irmã que
eram escondidas pelo violento Sinhô e finalmente escreve cartas à irmã.
Apesar da apesar da abolição norteamericana
ter sido proclamada em 1863 – Proclamação
de Emancipação por Abraham Lincoln – ela não foi capaz de extinguir a
humilhação e a violência aos negros nos Estados Unidos. Talvez até tenha
motivado a criação de sociedades secretas como a temida Ku Klux Klan que
objetivava manter o domínio dos brancos sobre os negros. A discriminação social
foi tão grande que somente em 1967, mais de cem anos depois é que foram
anuladas as últimas leis de proibição de casamentos interraciais.
É uma história pesada, dolorosa, retratando toda
uma época de subjugação da mulher pelo homem e do negro pelo branco. Mas é uma
grande história quando mostra a força e a superação triunfantes.
Há muitos personagens, então anotei os mais significativos:
Celie
– protagonista. Feia e desajeitada, semi-analfabeta. Lutadora. Celie em inglês
tem pronúncia parecida com silly que significa abobado.
Nettie – irmã protegida de Celie. Bonita, estudiosa.
Missionária.
Sinhô
– ou Albert – viúvo casou-se com Celie. Apaixonado por Doci Avery. Machista,
arrogante e infeliz.
Doci Avery – ou dependendo da versão: Shug Avery, cantora de
blues, paixão de Sinhô. Sincera, independente e má afamada.
Harpo
– filho de Sinhô, casado com Sofia depois com Tampinha.
Sofia
– Mulher de Harpo, foi presa pelo prefeito, depois a fez empregada doméstica.
Bonita e de personalidade forte. “É o tipo de pessoa que qualque coisa que ela
pega na mão fica parecendo uma arma.”
Tampinha – ou Mary Agnes – mulher de Harpo quer ser cantora
também.
Grady
– namorado de Doci Avery. Aproveitador.
Samuel – Reverendo, com a esposa, adotou Olivia e Adam,
filhos de Celie. Como missionário levaram-nos juntos com Nettie para África.
Corrine – mulher do reverendo Samuel.
As cartas escritas (a grande maioria) é de um
português capenga, de uma menina que pouco frequentou a escola. Isso cansou a
leitura durante muito tempo. Depois, eu me acostumei.
Exemplifico com um parágrafo quando a amante Doci
Avery já está na casa de Celie:
“A Doci tá meio entre duente e curada. Meio entre
boa e má, também. Na maior parte dos dia agora ela mostra pra mim e pro Sinhô o
lado bom dela. Mas hoje ela tá toda brava. Ela ri, feito uma navalha se
abrindo. Diz, Ora, ora, veja quem tá qui hoje.”
E Doci retribui o carinho de Celie:
“Ele num tá mais batendo muito em mim desque você
fez ele parar, eu digo. Só um tapa uma ou outra vez quando ele num tem mais
nada pra fazer.”
Mas a irmã escreve bem: como quando comentou:
“Eu me lembro de certa vez quando você me contou
que sua vida deixava você tão envergonhada que nem com Deus você conseguia
falar a respeito, você tinha que escrever, apear de achar que você escrevia
muito mal.”
Ou ainda num momento de alegria:
“Alguma coisa me tocou na alma, Celie, e como se eu
fosse um grande sino, eu simplesmente vibrei.”
Em outro comentário compara os a educação norteamericana
com o interior da África onde está como missionária:
“Quando falei para ela que os olinkanos não
acreditavam na educação das mulheres ela disse, rápido como um raio, Eles são
como os brancos da nossa terra que não querem que os negros aprendam.”
Nas inúmeras cartas observamos que as de Celie
apesar de fracas na escrita são fortes em emoção enquanto as escritas por Nettie
são fortes na escrita, porém fracas de emoção. O que demonstra uma enorme
capacidade da autora de interpretar duas magistralmente as duas personagens.
Indico. A cor púrpura é
leitura obrigatória para quem gosta de uma boa história e questiona o racismo,
o feminismo e o amor acima de tudo.
10 maio 2016
Palestra de autoajuda
Esta semana recebi três comunicações circulares relembrando a palestra com o prestigiado conferencista de renome nacional, o escritor de cinco best sellers, Dr. Tiago Neves de Melo Costa. Mesmo quem nunca ouviu falar em Melo Costa passou a enaltecê-lo após propagandearem a manada de informações.
O RH ressalta que as falas do Dr. Tiago superlotam auditórios. Que é muito importante se inscrever, apesar da gratuidade, e confirmar a presença, tendo em vista que o auditório comporta apenas trezentos felizardos. Que a palestra Melhorando a autoestima está contida na filosofia de valorização dos funcionários públicos. Que é restrita aos funcionários desta repartição. Vetada a presença de parentes.
Há vários dias, a figura do Dr. Melo Costa nos recebe com um sorriso de boas-vindas na entrada do nosso prédio. O tamanho do sorriso quase ultrapassa as margens do enorme banner multicolorido.
No hall dos elevadores, os cartazes informam que o Dr. Melo Costa já realizou mais de duzentas palestras de sucesso e que já vendeu mais de três milhões de livros. Que os seus livros “É mole ganhar dinheiro”, “Tenha amigos no lugar certo”, “Valorize-se e suba na vida”, “O mundo é dos vivos” e “O que o outro quer ouvir” estarão à venda.
Nos corredores e nas rodas de cafezinho o assunto é único: a vinda do idolatrado professor Melo Costa. Repentinamente, todos conhecem alguma tia ou vizinho que melhorara de vida após ler um dos livros dele. Os colegas citam frases selecionadas nos livros de Melo Costa: “Ajuda o teu semelhante a levantar a carga, mas não a levá-la.”, “A sorte ajuda os audazes.”, “As pessoas que vencem neste mundo são as que procuram as circunstâncias de que precisam e, quando não as encontram, as criam.”. Uma catarse coletiva estava em andamento e a palestra seria só à tarde.
Às 11h30, recebi mais uma circular informando que os funcionários que não conseguiram se inscrever teriam uma nova oportunidade dentro de 40 dias, porque o RH encontrou uma brecha na agenda do disputado conferencista.
À tarde, meia hora depois do combinado, o professor se instala atrás do microfone e, com a desenvoltura de um bispo evangélico, cativa a plateia extasiada.
Em resumo, enaltece o trabalho dos funcionários públicos, afirma que todos são eficientes e eficazes. Eles é que levam o País para frente. Se há alguma deficiência nas repartições públicas é culpa dos malfalados políticos que transferem a má imagem aos trabalhadores da burocracia.
Incomodei-me ao perceber que o discurso estava de acordo com o título do livro mais recente: “O que o outro quer ouvir”. Quando ele pronunciou com orgulho a própria sabedoria: “Todos os dias fazemos muitas coisas que não são importantes. Mas é muito importante que as façamos.” Um alarme soou na minha cabeça. Essa frase é de Mahatma Gandhi.
Peguei a agenda e passei a anotar outras frases de efeito até o término do teatro, quando todos aplaudiram entusiasmados.
Evitei o lanche de confraternização após a conferência. Fui para a minha sala checar as anotações. Não fiquei surpreso ao consultar a Internet e confirmar que Melo Costa, sem constrangimentos, se apossara de pensamentos do Dalai Lama, de Shakespeare, Pitágoras, Sófocles, Paulo Coelho.
Em outra pesquisa, descobri que todas as palestras aconteciam em órgãos públicos: secretarias estaduais, prefeituras, estatais, câmaras municipais e até no Senado Federal. Procurei em listas de mais vendidos e nada encontrei. Todos os livros foram adquiridos pelo governo para distribuição nas escolas e bibliotecas públicas. Sem dúvidas, o Dr. Tiago Neves de Melo Costa aplicava na prática o que ensinava nos títulos dos livros. Tendo amigos no lugar certo é mole ganhar dinheiro. Pena que não tenha escrito nenhum livro sobre honestidade e ética.
Em casa, foi difícil adormecer. Três provérbios giravam velozes na minha insônia: "Quem encobre ladrão é ladrão e meio." “Não existe almoço de graça.”; “Ladrão que não é apanhado, passa por homem honrado."
No dia seguinte, mesmo sem ter a quem apontar os fatos na repartição, juntei a documentação. Lacrei anonimamente um envelope pardo. Dirigi-me ao Ministério Público.
Quando entrei, pediram que me identificasse na portaria. Passei a porta giratória e a figura do Dr. Melo Costa me recebeu com um sorriso de boas-vindas estampado num enorme banner multicolorido.
A porta girou novamente para a minha saída. Entrei em parafuso.
26 abril 2016
A herdeira
Henry James
Editora 7
letras
R$ 45,00
192 paginas
Leio mais de 25
livros por ano, mesmo assim, vários deles conseguem me impactar, fazer refletir
e desejar chegar logo ao capítulo seguinte. Esta história provocou isso em mim.
Henri James é
considerado um dos ícones da literatura inglesa. É seguidor de Jane Austen, de
quem li recentemente Orgulho e preconceito.
O título deste livro era Washington
Square, porém após vários relançamentos e adaptações para o teatro os
editores consideraram A herdeira
muito mais adequado. Ou, se seguisse o padrão de Jane Austen, o título poderia ser
Preconceito e hipocrisia.
A narrativa se
passa no final dos anos 1800, em Nova Iorque. Catarina, filha única, herdeira materna
de soma considerável, porém mal provida de esperteza e fisicamente
desinteressante. Ela é surpreendentemente flertada por um rapaz Morris
Townsend, bonito, inteligente, galanteador e inúmeras outras qualidades que não
incluem a vocação para o trabalho. O pai, Austin Sloper, um respeitado e rico
médico não concorda com a aproximação dos dois. Há um forte embate psicológico
entre pai e filha. O narrador é muito presente. Conversa, opina e detalha
sentimentos que nos levam a questionar se haverá ou não casamento ao final do
livro.
Aqui o leitor
não precisa se preocupar em anotar ou guardar o nome de dezenas e dezenas de
personagens. Basicamente são apenas quatro. Além dos três já citados ainda há
uma tia, irmã do pai, que com suas intromissões tumultua ainda mais as relações
entre pai, filha e pretendente.
Repetindo, em
outras palavras temos:
Catarina
sente-se rejeitada pelo pai que aprendera a reverenciar. Na sua pouca visão, em
vez de procurar informações que confirmem ou neguem a falta de caráter do
pretendente, questiona o amor paterno, questiona se é boa ou má pessoa por
discordar o pai.
“Morris não se
esquecera de que, na pior das hipóteses, Catarina tinha sua própria renda de
dez mil dólares anuais. Ele dedicara abundante reflexão a esse pormenor. Mas
com as qualidades superiores que lhe eram inatas, ele cultivava uma alta
opinião à respeito de si e atribuía um valor que ele julgava mal representado
pela quantia.”
“Se o médico
parecia frio, seco e completamente indiferente à presença da filha e da irmã,
era num estilo tão leve, elegante e fácil, que seria preciso conhecê-lo a fundo
para perceber que no todo, ele se comprazia em ser desagradável.”
Não vou detalhar
as características da tia, Lavínia Penniman, porque ela é afeita a fofocas e eu
não.
O livro é sucesso porque Henry James produziu
uma história feminista sem apelações, verossímil, universal e atemporal. No meu
entender, ainda há outro aspecto relevante que é a característica linear ou
plana dos personagens. São personagens construídos com uma única ideia ou
qualidade, de personalidade rasa, sem grandes mudanças, de condutas repetitivas
e previsíveis. Mesmo assim, ou justamente por isso torcemos e aguardamos um
final surpreendente.
Enquanto lia,
sublinhava diversas passagens pensando na minha resenha/crítica literária. Qual
não foi a minha surpresa ao constatar que a tradutora, Margarida Patriota,
assinalou no posfácio várias delas e com maestria superou tudo o que eu poderia
acrescentar. Então cabe-me apenas destacar um diálogo entre o pai e o
pretendente.
Morris
Townsend disse:
“A senhorita
Sloper não me parece uma mulher frágil.”
Ao que o pai
respondeu:
“É natural que
a defenda — é o mínimo que pode fazer. Mas eu conheço a minha filha há vinte
anos e o senhor há seis semanas. Ainda que ela não fosse frágil, o senhor continuaria
sendo um cavalheiro sem um centavo no bolso.”
“Ah, sim, essa
é a minha fraqueza! E por causa dela o senhor infere que eu seja um mercenário
— pensa que cobiço a sua filha pelo dinheiro.”
“Não disse
isso. Não estou obrigado a dizê-lo. E dizê-lo sem maior necessidade seria de
extremo mau gosto. Digo apenas que o senhor pertence à categoria errada.”
”Mas a sua
filha não vai se casar com uma categoria”, insistiu Townsend com seu belo
sorriso. “Vai se casar com um homem — homem a quem teve a bondade de declarar
que ama.”
“Homem que
oferece tão pouco em retorno?”
“O que é
possível oferecer, além do carinho mais terno e dedicação por toda a vida?”, perguntou
o rapaz.
“Depende do
prisma que se adote. É possível oferecer outras coisas em acréscimo. Não só é
possível, como é o costume. Uma vida de devoção só se mede após o fato.
Enquanto isso, o costume é que se peçam garantias materiais. Quais são as suas?
Um belo rosto, um belo porte, maneiras distintas. São qualidades ótimas até onde
vão, mas não vão muito longe.”
Após este
diálogo que mais parece um duelo, cabe-me finalizar.
Ergo-me em
reverência ao autor e, prometo, na primeira oportunidade conhecer um pouco mais
da vasta obra de Henri James.
19 abril 2016
A unha encravada
Perguntaram-me sobre o que escrevo. Como
resposta disse que
escrevia sobre o tudo ,
sobre o nada
ou qualquer
coisa entre aqueles dois .
– Coisa louca !
Parece um camarada
que contava piada
sobre qualquer
tema , bastava dizer
uma palavra e lá
ia ele contar
piada usando aquela palavra .
É isso mesmo ?
– É, pode ser .
– Então vou escolher
uma palavra e duvido você
escrever sobre
isso . Humm... amor ?
Não . Política ?
Não . Uma palavra ,
não um
tema . Nuvem ,
não . Cachorro .
Tem tanta gente
escrevendo sobre cachorros .
Janela . Essa é muito
fácil . Já
sei. Desafio a escrever sobre unha . Isso mesmo ,
quero que escreva sobre
a unha .
– Isso é piada ?
– Está entre o tudo e o nada !
– Bem mais
perto do nada .
– Pediu arrêgo? Num dá conta ?
Cocei a cabeça e topei a empreitada .
Se eu não
tivesse unha como
iria coçar a cabeça .
É para isso que serve a unha :
para se coçar .
A gente pode coçar
com força ou
fazendo carinho . Com
a unha a gente
pode tirar casquinha
da ferida daquela picada
de mosquito . Tem gente
que tira
meleca do nariz
com a unha .
Que nojo !
Juro que eu
nunca fiz isto .
Pelo menos quando tinha alguém olhando.
A primeira coisa é consultar o pai-dos-burros .
Quando a gente
tem um à mão .
Quando a gente
não tem, a gente
fica imaginando a descrição à respeito :
– pedaço de osso
que não
é osso e fica na ponta
dos dedos ;
– utensílio que
as mulheres quebram ao fechar
gavetas ;
– arma usada pelas felinas em briga de rua ;
– coisa que
continua crescendo junto
com os cabelos
quando a gente
morre;
– instrumento penetrante
usado por algumas mulheres
para cravar nas costas dos amados
na hora do orgasmo ;
– ferramenta disponível
nas lotéricas para as raspadinhas;
– coisa utilizada para
retirar alface
do dente ;
– apêndice que
semanalmente nos
obriga procurar por
toda casa
a tesourinha de cortar unhas ;
– objeto que ,
quando recém-pintado, serve de desculpa para as mulheres pedirem ajuda
para calçarem sapatos ;
– passatempo com
os quais funcionários
públicos usam o expediente
para limpeza , aparo e
lixamento;
– aparador de batidas
de martelo ;
– instrumento de tortura para as mulheres indecisas na hora
de escolher a cor
ao pintarem as unhas ;
– calmante ingerido nos
filmes de terror .
11 abril 2016
Girafa barulhenta
Caminhar sempre é bom.
Acompanhado é melhor. E quando a companhia é agradável, é o máximo. Tenho uma
vizinha que gosta de caminhar comigo.
Infelizmente a velocidade
dela é devagarzinho. Bem devagarzinho, para poder falar bastante. Ela é muito
alegre, extrovertida e perguntadeira. Bem típico da idade. Eu que não tenho
nenhuma neta, a princípio fiquei incomodado com esse negócio de me chamar de
Vô. Porém é uma menina muito fofinha, de olhos grandes. Demorei a me acostumar,
agora até gosto de ser chamado vovô. Quando ganho beijo lambuzado, nem reclamo.
Hoje ela me contou que já
sabe o que o irmãozinho vai ganhar de aniversário, mas que não ia me contar
porque a mãe disse que era segredo.
Depois cantou a
musiquinha da escola.
vou comer, vou comer
pra ficar fortinho, pra ficar
fortinho
e crescer e crescer.
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— Quem te disse isso?
— A tia. Ela disse que os
cachorros latem, que os gatos miam, que os passarinhos piam, mas que as girafas
não falam. As coitadas não fazem nenhum barulho.
Percebi os olhos tristes
da menina com pena da girafa.
— As pescoçudas fazem
barulho, sim. Você precisa ouvir como é alto o pum da girafa.
A menina deu uma risada e
eu continuei.
— Silenciosas são as
borboletas. Ou você já ouviu as borboletas batendo papo, cantando e fazendo
algazarra?
Antes que ela
respondesse, prossegui:
— Fale para a sua tia que
o único bicho que não fala é o criado-mudo.
Ganhei um delicioso beijo
e ela saiu correndo.
05 abril 2016
Corrida de morte
Há pessoas que começam
a praticar esporte pelos mais diversos motivos: mudar de estilo de vida,
diminuir o peso, sair do sedentarismo, recomendação médica, encontrar mulheres
gostosas na academia.
Para meus amigos eu
digo que comecei a caminhar para emagrecer e pegar sol. Nem sob tortura revelaria
que procuro caminhar no mesmo horário da minha vizinha. Nunca! Ainda mais que
não é verdade. Honestamente, estou constrangido em confessar a verdade verdadeira.
Mas aqui entre nós e a folha de papel não há segredos. Vou cochichar o real
motivo: medo de um enfarte fulminante na hora do sexo. Precisei interromper uma
secção maravilhosa porque o coração ameaçou explodir.
Ainda bem que a minha
mulher não lê as minhas crônicas.
Consultei o médico e
ele receitou-me uns comprimidos e exercícios físicos diários sob pena de não me
atender de novo. Eu morreria em menos de um mês.
Depois deste drástico
diagnóstico é lógico que comprei um tênis novo e pus-me a caminhar e praticar
exercícios logo após.
Ao fim dos primeiros
trinta dias perdi 3kg e continuava vivo. Terminei o segundo mês reduzindo
outros 2 kg. No terceiro mês a animação foi enorme quando tinha diminuído três
buraquinhos do meu cinto. Para comemorar os resultados e recompensar o esforço
me dei de presente um Polar. Aquele relógio com cronômetro que também informa a
pulsação cardíaca captada numa cinta na altura do peito.
Agora eu já não me
sentia um sedentário. Era um quase atleta. Poderia até arriscar umas
corridinhas alternadas no meu percurso de 4 km, contanto que não excedesse os
batimentos cardíacos determinados pelo doutor.
Inicialmente levava 48
minutos esbaforidos para completar o circuito. A performance foi melhorando com
rapidez. E cheguei a reduzir o tempo até 40 minutos antes de comprar o Polar.
Supervisionado pelo reloginho,
me atrevi a caminhar e correr alternadamente e diminuir o tempo para 36
minutos. Já me sentia um atleta.
Cada dia com mais
velocidade e em menos tempo. Sempre controlando os batimentos.
Foi ai que aconteceu:
eu morri.
Durante o pico da corrida,
o Polar que vinha a 140 batidas por minuto repentinamente foi a zero.
O ar faltou.
As nuvens enegreceram
ao meu redor.
Os joelhos fraquejaram,
dobraram.
Fui derretendo na
calçada.
Com os olhos
esbugalhados confirmei que o Polar continuava no zero.
Sem dúvida, eu morri em
trezentas pratas num relógio pirata.
29 março 2016
Absolutamente velho
— Obsoleta?
— Sim, senhor, sua máquina está obsoleta.
— Mas, como? Deixei meu micro aqui e você fez o up grade a menos de um ano!
— Hoje em dia tudo evolui muito rapidamente. Tudo fica ultrapassado em pouco tempo. O senhor precisa trocar a placa mãe. Vai aumentar a velocidade de processamento e a capacidade de armazenamento.
— E quanto custa essa peça? Como é mesmo o nome?
— Placa mãe, ou mother board. Ela é importada, é japonesa. Da melhor qualidade. Custa R$ 700. Eu posso fazer à base de troca. Vou cobrar só R$ 600.
— Mas é quase o preço de um computador novo!
— Justamente, senhor, como eu disse antes, sua máquina está obsoleta e vai ficar nova, com a vantagem de estar totalmente configurada e com todos os programas que precisa e usa.
— Acho que você está confundindo os valores.
— Como assim?
— A máquina está ótima. A sua ética é que está obsoleta.
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