27 maio 2016

Dois Irmãos - Milton Hatoum

Dois irmãos
Milton Hatoum

Companhia de Bolso
200 páginas
R$25,00


O primeiro capítulo do livro é curtinho, porém muito impactante. O autor recortou um trecho de altíssimo grau de emoção da história e abriu o livro com ele.
Eis os dois últimos parágrafos deste capítulo:
“Eu não a vi morrer, eu não quis vê-la morrer. Mas alguns dias antes de sua morte, ela deitada na cama de uma clínica, soube que ergueu a cabeça e perguntou em árabe para que só a filha e a amiga quase centenária entendessem (e para que ela mesma não se traísse): “Meus filhos já fizeram as pazes?”. Repetiu a pergunta com a força que lhe restava, com a coragem que mãe aflita encontra na hora da morte”.
“Ninguém respondeu. Então o rosto quase sem rugas de Zana desvaneceu; ela ainda virou a cabeça para o lado, à procura da única janelinha da parede cinzenta, onde se apagava num pedaço do céu crepuscular”.
            O capítulo lança uma questão “Meus filhos já fizeram as pazes?“ que mostra um enorme conflito e com a pergunta atiça a curiosidade do leitor. Antes de responder sim ou não, somos provocados à bisbilhotice, queremos saber que motivo é forte o suficiente para colocar em lados opostos dois irmãos? Ansiamos por saber por que estão brigados.
            A história se passa em Manaus de 1910 a 1968. No período, o autor mostra a evolução da cidade enquanto inunda as páginas com as águas do rio Negro e enreda a história de imigrantes libaneses com ramos das seringueiras e sons dos pios de jaçanãs e jacu-ciganas.
Aos poucos somos apresentados aos irmãos gêmeos Omar e Yaqub
Em relação a Yaqub: “O que lhe faltava no manejo do idioma sobrava-lhe no poder de abstrair, calcular, operar com números”.
“E para isso”, dizia o pai orgulhoso, “não é preciso língua, só cabeça. Yaqub tem de sobra o que falta no outro”.
O outro, o Caçula – referindo-se a Omar – exagerava as audácias juvenis: gazeava lições de latim, subornava porteiros sisudos do colégio dos padres e saía para a noite, fardado, transgressor dos pés ao gogó, rondando os salões da Maloca dos Barés, do Acapulco, do Cheik Clube, do Shangri-Lá. De madrugada, na hora do último sereno, voltava para casa.
“Colhe a orquídea mais rara, mas também arranca a aninga da lama”.
Apesar de narrado na primeira pessoa, durante muito tempo ficamos sem saber quem é o narrador. “E a mim, sem me olhar, sem se importar com a minha presença Na verdade, para Zana, a mãe dos gêmeos, eu só existia como rastro dos filhos dela”.  
No transcorrer da história descobrimos que o narrador é filho de um dos gêmeos com a empregada índia que mora nos fundos da casa. O narrador, desprezado pela família, quer saber quem é o pai.
Quem são os pais dos gêmeos?
Halim, marido de Zana e pai dos gêmeos era comerciante. “Vendia coisas de qualquer um. Vendia sem prosperar muito, mas atento à ameaça da decadência, que um dia ele me garantiu ser um abismo. Não caiu nesse abismo, nem exigiu de si grandes feitos. O abismo mais temível estava em casa, e este Halim não pode evitar”.
“A intimidade com os filhos, isso o Halim nunca teve. Uma parte de sua história, a valentia de uma vida, nada disso ele contou aos gêmeos”.
“Mas acreditava, bêbado de idealismo, no amor excessivo, extático, com suas metáforas lunares. Um romântico tardio, um tanto deslocado ou anacrônico, alheio às aparências poderosas que o ouro e o roubo propiciam. Talvez pudesse ter sido poeta, um flâneur da província; não passou de um modesto negociante possuído de fervor passional”.
E quem era a esposa Zana?
“Era possuída por uma teimosia silenciosa, matutada, uma insistência em fogo brando; depois, armada por uma convicção poderosa, golpeava ferinamente e decidia tudo, deixando o outro estatelado.”
E a pergunta lançada o primeiro capítulo?
“O duelo entre os irmãos era uma centelha que prometia explodir”.
“Duelo? Melhor chamar de rivalidade, alguma coisa que não deu certo ente os gêmeos ou entre nós e eles, revelou-me Halim, mirando a seringueira centenária no quintal.”
Antes que eu, nas transcrições, revele mais do que deveria, adianto que se trata de uma história triste, uma história sem advertências ou opiniões de moral. É história de seduções consanguíneas. É história de incestos, paixões e ódios.

Em vez de responder a pergunta, elaboro outra: porque levei tanto tempo para conhecer a escrita de Milton Hatoum?

24 maio 2016

A picape

A picape

– O casal foi em casa na hora do almoço. Confirmei que a minha camionete era de cabine dupla. Entraram. Minha esposa ofereceu doce de abóbora com coco aos dois. Célia aceitou. Ela e minha mulher ficaram conversando na sala enquanto nos dirigimos ao térreo onde a picape estava estacionada. Fazia muito calor e lembro-me que ainda no elevador o Fernando perguntou se a picape tinha ar condicionado.
– E depois?
– O Fernando examinou detalhadamente a pintura, procurou diferenças de brilho, observou se as frestas das portas e do capô estavam uniformes. Abriu o porta-malas e confirmou que a lataria não sofreu nenhuma avaria. Quando examinou o motor comentou que não gostava quando o motor era lavado, pois ocultava possíveis vazamentos. Percebi que os olhos dele brilharam quando viu a quilometragem. Orgulhosamente disse que eram 28 mil quilômetros de asfalto da cidade e de uma única e maravilhosa viagem percorrendo todo o nordeste em lua-de-mel. – Aí, o Fernando virou a chave e ouviu o ronco do motor diesel. Ele fechou a porta, abaixou o vidro e perguntou se a rua à frente era de mão para a esquerda ou a para direita. Engatou a primeira e saiu lentamente.
– E a senhora, dona Andréia?
– Fiquei ouvindo a Célia me contar que o Fernando era uma pessoa muito querida. Que eles passaram a noite em claro se amando loucamente e agora, de manhã, juntos, fizeram compras no shopping. Ela ganhou a blusa e a calça que estava usando. A bolsa também era nova para combinar com as sandálias. Ela estava eufórica porque o Fernando iria apresentá-la para a família dele e gostaria que ela estivesse maravilhosa. Ah, e também foi presenteada com um relógio.
– E o que mais?

Ela disse que estava apaixonada pelo Fernando, que ele tinha bom gosto e que escolhera pessoalmente aquela blusa. Ela disse que deveria ter um decote atraente porém sem ser vulgar. Que detestava vulgaridades.
Como foi que a senhora, dona Célia, conheceu o senhor Fernando?
Eu me formei em pedagogia e não consegui encontrar emprego. Trabalhei como secretária num escritório de advogados por seis anos e fiquei desempregada e resolvi ganhar dinheiro da mesma forma como paguei minha faculdade. Coloquei anúncio no jornal e foi daí que o Fernando me ligou.
– Então a senhora conheceu o Sr. Fernando ontem à noite, fizeram um programa, foram às compras e depois escolheram a picape dele – apontando para o marido da dona Andréia.

– É por isso, seu delegado, que acho que o desgraçado não volta mais com a caminhonete.

13 maio 2016

A cor púrpura


A cor púrpura
Alice Walker
Editora Círculo do livro
258 páginas
R$ 16,00 na Estante Virtual



Este livro foi proposto e eleito pelo Clube de Leitura Leia Mulheres – Brasília. Mais um acerto de qualidade. O grupo se reúne mensalmente para conversar sobre uma obra de autora e este particularmente abre muitas possibilidades de discussão e questionamentos sobre racismo, machismo, lesbianismo, dignidade humana, direitos humanos, mas também é uma historia de resistência, superação e empoderamento de mulheres negras.
Embora não tenha visto, eu já conhecia o título por causa do filme de mesmo nome dirigido por Steven Spielberg, estrelado por Whoopi Goldberg e Oprah Winfrey e indicado para 11 Oscar’s. (não levou nenhum).
Foi escrito em 1982, vencendo o Prêmio Pulitzer no ano seguinte.
É um romance epistolar, isto é, a narração se desenvolve por cartas escritas primeiro a Deus e depois é uma correspondência trocada entre irmãs desde a adolescência até a meia idade.
A história começa numa pequena cidade da Georgia em 1906 quando Celie, uma menina de 14 anos, é estuprada seguidamente pelo pai, gerando dois filhos. Em outra violência o pai se desfaz das crianças e ainda oferece a irmã mais nova Nettie, em casamento para Sinhô, um senhor viúvo. Ela, por amor e proteção à irmã, se oferece para casar no lugar dela. É feita quase que uma escrava para cuidar da casa e filhos do primeiro casamento dele. Enquanto ele é apaixonado por Doci Avery uma sedutora cantora de blues. Celie, por não ter com quem compartilhar a dor, escreve cartas a Deus. Para piorar a situação Sinhô, acolhe a amante em casa para que Celie recupere a sua debilitada saúde.
É partir desse ponto que a história ganha nova configuração com a descoberta de Celie por outra opção sexual, tomada de consciência da dignidade e conquista da autoestima.
Posteriormente passa a receber cartas da irmã que eram escondidas pelo violento Sinhô e finalmente escreve cartas à irmã.

Apesar da apesar da abolição norteamericana ter sido proclamada em 1863 – Proclamação de Emancipação por Abraham Lincoln – ela não foi capaz de extinguir a humilhação e a violência aos negros nos Estados Unidos. Talvez até tenha motivado a criação de sociedades secretas como a temida Ku Klux Klan que objetivava manter o domínio dos brancos sobre os negros. A discriminação social foi tão grande que somente em 1967, mais de cem anos depois é que foram anuladas as últimas leis de proibição de casamentos interraciais.
É uma história pesada, dolorosa, retratando toda uma época de subjugação da mulher pelo homem e do negro pelo branco. Mas é uma grande história quando mostra a força e a superação triunfantes.


Há muitos personagens, então anotei os mais significativos:

Celie – protagonista. Feia e desajeitada, semi-analfabeta. Lutadora. Celie em inglês tem pronúncia parecida com silly que significa abobado.
Nettie – irmã protegida de Celie. Bonita, estudiosa. Missionária.
Sinhô – ou Albert – viúvo casou-se com Celie. Apaixonado por Doci Avery. Machista, arrogante e infeliz.
Doci Avery – ou dependendo da versão: Shug Avery, cantora de blues, paixão de Sinhô. Sincera, independente e má afamada.
Harpo – filho de Sinhô, casado com Sofia depois com Tampinha.
Sofia – Mulher de Harpo, foi presa pelo prefeito, depois a fez empregada doméstica. Bonita e de personalidade forte. “É o tipo de pessoa que qualque coisa que ela pega na mão fica parecendo uma arma.”
Tampinha – ou Mary Agnes – mulher de Harpo quer ser cantora também.
Grady – namorado de Doci Avery. Aproveitador.
Samuel – Reverendo, com a esposa, adotou Olivia e Adam, filhos de Celie. Como missionário levaram-nos juntos com Nettie para África.
Corrine – mulher do reverendo Samuel.

As cartas escritas (a grande maioria) é de um português capenga, de uma menina que pouco frequentou a escola. Isso cansou a leitura durante muito tempo. Depois, eu me acostumei.
Exemplifico com um parágrafo quando a amante Doci Avery já está na casa de Celie:
“A Doci tá meio entre duente e curada. Meio entre boa e má, também. Na maior parte dos dia agora ela mostra pra mim e pro Sinhô o lado bom dela. Mas hoje ela tá toda brava. Ela ri, feito uma navalha se abrindo. Diz, Ora, ora, veja quem tá qui hoje.”
E Doci retribui o carinho de Celie:
“Ele num tá mais batendo muito em mim desque você fez ele parar, eu digo. Só um tapa uma ou outra vez quando ele num tem mais nada pra fazer.”
Mas a irmã escreve bem: como quando comentou:
“Eu me lembro de certa vez quando você me contou que sua vida deixava você tão envergonhada que nem com Deus você conseguia falar a respeito, você tinha que escrever, apear de achar que você escrevia muito mal.”
Ou ainda num momento de alegria:
“Alguma coisa me tocou na alma, Celie, e como se eu fosse um grande sino, eu simplesmente vibrei.”
Em outro comentário compara os a educação norteamericana com o interior da África onde está como missionária:
“Quando falei para ela que os olinkanos não acreditavam na educação das mulheres ela disse, rápido como um raio, Eles são como os brancos da nossa terra que não querem que os negros aprendam.”
Nas inúmeras cartas observamos que as de Celie apesar de fracas na escrita são fortes em emoção enquanto as escritas por Nettie são fortes na escrita, porém fracas de emoção. O que demonstra uma enorme capacidade da autora de interpretar duas magistralmente as duas personagens.
Indico. A cor púrpura é leitura obrigatória para quem gosta de uma boa história e questiona o racismo, o feminismo e o amor acima de tudo.

10 maio 2016

Palestra de autoajuda


Esta semana recebi três comunicações circulares relembrando a palestra com o prestigiado conferencista de renome nacional, o escritor de cinco best sellersDr. Tiago Neves de Melo Costa. Mesmo quem nunca ouviu falar em Melo Costa passou a enaltecê-lo após propagandearem a manada de informações.
O RH ressalta que as falas do Dr. Tiago superlotam auditórios. Que é muito importante se inscrever, apesar da gratuidade, e confirmar a presença, tendo em vista que o auditório comporta apenas trezentos felizardos. Que a palestra Melhorando a autoestima está contida na filosofia de valorização dos funcionários públicos. Que é restrita aos funcionários desta repartição. Vetada a presença de parentes.



Há vários dias, a figura do Dr. Melo Costa nos recebe com um sorriso de boas-vindas na entrada do nosso prédio. O tamanho do sorriso quase ultrapassa as margens do enorme banner multicolorido.
No hall dos elevadores, os cartazes informam que o Dr. Melo Costa já realizou mais de duzentas palestras de sucesso e que já vendeu mais de três milhões de livros. Que os seus livros “É mole ganhar dinheiro”, “Tenha amigos no lugar certo”, “Valorize-se e suba na vida”, “O mundo é dos vivos” e “O que o outro quer ouvir” estarão à venda.
Nos corredores e nas rodas de cafezinho o assunto é único: a vinda do idolatrado professor Melo Costa. Repentinamente, todos conhecem alguma tia ou vizinho que melhorara de vida após ler um dos livros dele. Os colegas citam frases selecionadas nos livros de Melo Costa: “Ajuda o teu semelhante a levantar a carga, mas não a levá-la.”, “A sorte ajuda os audazes.”, “As pessoas que vencem neste mundo são as que procuram as circunstâncias de que precisam e, quando não as encontram, as criam.”. Uma catarse coletiva estava em andamento e a palestra seria só à tarde.
Às 11h30, recebi mais uma circular informando que os funcionários que não conseguiram se inscrever teriam uma nova oportunidade dentro de 40 dias, porque o RH encontrou uma brecha na agenda do disputado conferencista.
À tarde, meia hora depois do combinado, o professor se instala atrás do microfone e, com a desenvoltura de um bispo evangélico, cativa a plateia extasiada.
Em resumo, enaltece o trabalho dos funcionários públicos, afirma que todos são eficientes e eficazes. Eles é que levam o País para frente. Se há alguma deficiência nas repartições públicas é culpa dos malfalados políticos que transferem a má imagem aos trabalhadores da burocracia.
Incomodei-me ao perceber que o discurso estava de acordo com o título do livro mais recente: “O que o outro quer ouvir”. Quando ele pronunciou com orgulho a própria sabedoria: “Todos os dias fazemos muitas coisas que não são importantes. Mas é muito importante que as façamos.” Um alarme soou na minha cabeça. Essa frase é de Mahatma Gandhi.
Peguei a agenda e passei a anotar outras frases de efeito até o término do teatro, quando todos aplaudiram entusiasmados.
Evitei o lanche de confraternização após a conferência. Fui para a minha sala checar as anotações. Não fiquei surpreso ao consultar a Internet e confirmar que Melo Costa, sem constrangimentos, se apossara de pensamentos do Dalai Lama, de Shakespeare, Pitágoras, Sófocles, Paulo Coelho.
Em outra pesquisa, descobri que todas as palestras aconteciam em órgãos públicos: secretarias estaduais, prefeituras, estatais, câmaras municipais e até no Senado Federal. Procurei em listas de mais vendidos e nada encontrei. Todos os livros foram adquiridos pelo governo para distribuição nas escolas e bibliotecas públicas. Sem dúvidas, o Dr. Tiago Neves de Melo Costa aplicava na prática o que ensinava nos títulos dos livros. Tendo amigos no lugar certo é mole ganhar dinheiro. Pena que não tenha escrito nenhum livro sobre honestidade e ética.
Em casa, foi difícil adormecer. Três provérbios giravam velozes na minha insônia: "Quem encobre ladrão é ladrão e meio." “Não existe almoço de graça.”; “Ladrão que não é apanhado, passa por homem honrado."
No dia seguinte, mesmo sem ter a quem apontar os fatos na repartição, juntei a documentação. Lacrei anonimamente um envelope pardo. Dirigi-me ao Ministério Público.
Quando entrei, pediram que me identificasse na portaria. Passei a porta giratória e a figura do Dr. Melo Costa me recebeu com um sorriso de boas-vindas estampado num enorme banner multicolorido.
A porta girou novamente para a minha saída. Entrei em parafuso.

26 abril 2016

A herdeira

A herdeira

Henry James
Editora 7 letras
R$ 45,00
192 paginas


Leio mais de 25 livros por ano, mesmo assim, vários deles conseguem me impactar, fazer refletir e desejar chegar logo ao capítulo seguinte. Esta história provocou isso em mim.
Henri James é considerado um dos ícones da literatura inglesa. É seguidor de Jane Austen, de quem li recentemente Orgulho e preconceito. O título deste livro era Washington Square, porém após vários relançamentos e adaptações para o teatro os editores consideraram A herdeira muito mais adequado. Ou, se seguisse o padrão de Jane Austen, o título poderia ser Preconceito e hipocrisia.
A narrativa se passa no final dos anos 1800, em Nova Iorque. Catarina, filha única, herdeira materna de soma considerável, porém mal provida de esperteza e fisicamente desinteressante. Ela é surpreendentemente flertada por um rapaz Morris Townsend, bonito, inteligente, galanteador e inúmeras outras qualidades que não incluem a vocação para o trabalho. O pai, Austin Sloper, um respeitado e rico médico não concorda com a aproximação dos dois. Há um forte embate psicológico entre pai e filha. O narrador é muito presente. Conversa, opina e detalha sentimentos que nos levam a questionar se haverá ou não casamento ao final do livro.
Aqui o leitor não precisa se preocupar em anotar ou guardar o nome de dezenas e dezenas de personagens. Basicamente são apenas quatro. Além dos três já citados ainda há uma tia, irmã do pai, que com suas intromissões tumultua ainda mais as relações entre pai, filha e pretendente.
Repetindo, em outras palavras temos:
Catarina sente-se rejeitada pelo pai que aprendera a reverenciar. Na sua pouca visão, em vez de procurar informações que confirmem ou neguem a falta de caráter do pretendente, questiona o amor paterno, questiona se é boa ou má pessoa por discordar o pai.
“Morris não se esquecera de que, na pior das hipóteses, Catarina tinha sua própria renda de dez mil dólares anuais. Ele dedicara abundante reflexão a esse pormenor. Mas com as qualidades superiores que lhe eram inatas, ele cultivava uma alta opinião à respeito de si e atribuía um valor que ele julgava mal representado pela quantia.”
“Se o médico parecia frio, seco e completamente indiferente à presença da filha e da irmã, era num estilo tão leve, elegante e fácil, que seria preciso conhecê-lo a fundo para perceber que no todo, ele se comprazia em ser desagradável.”
Não vou detalhar as características da tia, Lavínia Penniman, porque ela é afeita a fofocas e eu não.
 O livro é sucesso porque Henry James produziu uma história feminista sem apelações, verossímil, universal e atemporal. No meu entender, ainda há outro aspecto relevante que é a característica linear ou plana dos personagens. São personagens construídos com uma única ideia ou qualidade, de personalidade rasa, sem grandes mudanças, de condutas repetitivas e previsíveis. Mesmo assim, ou justamente por isso torcemos e aguardamos um final surpreendente.
Enquanto lia, sublinhava diversas passagens pensando na minha resenha/crítica literária. Qual não foi a minha surpresa ao constatar que a tradutora, Margarida Patriota, assinalou no posfácio várias delas e com maestria superou tudo o que eu poderia acrescentar. Então cabe-me apenas destacar um diálogo entre o pai e o pretendente.
Morris Townsend disse:
“A senhorita Sloper não me parece uma mulher frágil.”
Ao que o pai respondeu:
“É natural que a defenda — é o mínimo que pode fazer. Mas eu conheço a minha filha há vinte anos e o senhor há seis semanas. Ainda que ela não fosse frágil, o senhor continuaria sendo um cavalheiro sem um centavo no bolso.”
“Ah, sim, essa é a minha fraqueza! E por causa dela o senhor infere que eu seja um mercenário — pensa que cobiço a sua filha pelo dinheiro.”
“Não disse isso. Não estou obrigado a dizê-lo. E dizê-lo sem maior necessidade seria de extremo mau gosto. Digo apenas que o senhor pertence à categoria errada.”
”Mas a sua filha não vai se casar com uma categoria”, insistiu Townsend com seu belo sorriso. “Vai se casar com um homem — homem a quem teve a bondade de declarar que ama.”
“Homem que oferece tão pouco em retorno?”
“O que é possível oferecer, além do carinho mais terno e dedicação por toda a vida?”, perguntou o rapaz.
“Depende do prisma que se adote. É possível oferecer outras coisas em acréscimo. Não só é possível, como é o costume. Uma vida de devoção só se mede após o fato. Enquanto isso, o costume é que se peçam garantias materiais. Quais são as suas? Um belo rosto, um belo porte, maneiras distintas. São qualidades ótimas até onde vão, mas não vão muito longe.”
Após este diálogo que mais parece um duelo, cabe-me finalizar.

Ergo-me em reverência ao autor e, prometo, na primeira oportunidade conhecer um pouco mais da vasta obra de Henri James. 

19 abril 2016

A unha encravada


Perguntaram-me sobre o que escrevo. Como resposta disse que escrevia sobre o tudo, sobre o nada ou qualquer coisa entre aqueles dois.
Coisa louca! Parece um camarada que contava piada sobre qualquer tema, bastava dizer uma palavra e ia ele contar piada usando aquela palavra. É isso mesmo?
– É, pode ser.
Então vou escolher uma palavra e duvido você escrever sobre isso. Humm... amor? Não. Política? Não. Uma palavra, não um tema. Nuvem, não. Cachorro. Tem tanta gente escrevendo sobre cachorros. Janela. Essa é muito fácil. sei. Desafio a escrever sobre unha. Isso mesmo, quero que escreva sobre a unha.
Isso é piada?
– Está entre o tudo e o nada!
Bem mais perto do nada.
– Pediu arrêgo? Num dá conta?
Cocei a cabeça e topei a empreitada.
Se eu não tivesse unha como iria coçar a cabeça. É para isso que serve a unha: para se coçar. A gente pode coçar com força ou fazendo carinho. Com a unha a gente pode tirar casquinha da ferida daquela picada de mosquito. Tem gente que tira meleca do nariz com a unha. Que nojo! Juro que eu nunca fiz isto. Pelo menos quando tinha alguém olhando.
A primeira coisa é consultar o pai-dos-burros. Quando a gente tem um à mão. Quando a gente não tem, a gente fica imaginando a descrição à respeito:
pedaço de osso que não é osso e fica na ponta dos dedos;
utensílio que as mulheres quebram ao fechar gavetas;
arma usada pelas felinas em briga de rua;
coisa que continua crescendo junto com os cabelos quando a gente morre;
instrumento penetrante usado por algumas mulheres para cravar nas costas dos amados na hora do orgasmo;
ferramenta disponível nas lotéricas para as raspadinhas;
coisa utilizada para retirar alface do dente;
apêndice que semanalmente nos obriga procurar por toda casa a tesourinha de cortar unhas;
objeto que, quando recém-pintado, serve de desculpa para as mulheres pedirem ajuda para calçarem sapatos;
passatempo com os quais funcionários públicos usam o expediente para limpeza, aparo e lixamento;
aparador de batidas de martelo;
instrumento de tortura para as mulheres indecisas na hora de escolher a cor ao pintarem as unhas;
calmante ingerido nos filmes de terror.

            – Uau! Peguei o touro à unha e o derrubei!

11 abril 2016

Girafa barulhenta

 

Caminhar sempre é bom. Acompanhado é melhor. E quando a companhia é agradável, é o máximo. Tenho uma vizinha que gosta de caminhar comigo.

Infelizmente a velocidade dela é devagarzinho. Bem devagarzinho, para poder falar bastante. Ela é muito alegre, extrovertida e perguntadeira. Bem típico da idade. Eu que não tenho nenhuma neta, a princípio fiquei incomodado com esse negócio de me chamar de Vô. Porém é uma menina muito fofinha, de olhos grandes. Demorei a me acostumar, agora até gosto de ser chamado vovô. Quando ganho beijo lambuzado, nem reclamo.

Hoje ela me contou que já sabe o que o irmãozinho vai ganhar de aniversário, mas que não ia me contar porque a mãe disse que era segredo.

Depois cantou a musiquinha da escola.

Meu lanchinho, meu lanchinho
vou comer, vou comer
pra ficar fortinho, pra ficar fortinho
e crescer e crescer.

E aí, sem mais nem menos me perguntou se era verdade que as girafas não faziam barulho. Eu não sabia se aquilo era uma piada, pegadinha ou uma demonstração de conhecimento.

— Quem te disse isso?

— A tia. Ela disse que os cachorros latem, que os gatos miam, que os passarinhos piam, mas que as girafas não falam. As coitadas não fazem nenhum barulho.

Percebi os olhos tristes da menina com pena da girafa.

— As pescoçudas fazem barulho, sim. Você precisa ouvir como é alto o pum da girafa.

A menina deu uma risada e eu continuei.

— Silenciosas são as borboletas. Ou você já ouviu as borboletas batendo papo, cantando e fazendo algazarra?

Antes que ela respondesse, prossegui:

— Fale para a sua tia que o único bicho que não fala é o criado-mudo.


Ganhei um delicioso beijo e ela saiu correndo.

05 abril 2016

Corrida de morte



Há pessoas que começam a praticar esporte pelos mais diversos motivos: mudar de estilo de vida, diminuir o peso, sair do sedentarismo, recomendação médica, encontrar mulheres gostosas na academia.

Para meus amigos eu digo que comecei a caminhar para emagrecer e pegar sol. Nem sob tortura revelaria que procuro caminhar no mesmo horário da minha vizinha. Nunca! Ainda mais que não é verdade. Honestamente, estou constrangido em confessar a verdade verdadeira. Mas aqui entre nós e a folha de papel não há segredos. Vou cochichar o real motivo: medo de um enfarte fulminante na hora do sexo. Precisei interromper uma secção maravilhosa porque o coração ameaçou explodir.

Ainda bem que a minha mulher não lê as minhas crônicas.

Consultei o médico e ele receitou-me uns comprimidos e exercícios físicos diários sob pena de não me atender de novo. Eu morreria em menos de um mês.

Depois deste drástico diagnóstico é lógico que comprei um tênis novo e pus-me a caminhar e praticar exercícios logo após.

Ao fim dos primeiros trinta dias perdi 3kg e continuava vivo. Terminei o segundo mês reduzindo outros 2 kg. No terceiro mês a animação foi enorme quando tinha diminuído três buraquinhos do meu cinto. Para comemorar os resultados e recompensar o esforço me dei de presente um Polar. Aquele relógio com cronômetro que também informa a pulsação cardíaca captada numa cinta na altura do peito.

Agora eu já não me sentia um sedentário. Era um quase atleta. Poderia até arriscar umas corridinhas alternadas no meu percurso de 4 km, contanto que não excedesse os batimentos cardíacos determinados pelo doutor.

Inicialmente levava 48 minutos esbaforidos para completar o circuito. A performance foi melhorando com rapidez. E cheguei a reduzir o tempo até 40 minutos antes de comprar o Polar.

Supervisionado pelo reloginho, me atrevi a caminhar e correr alternadamente e diminuir o tempo para 36 minutos. Já me sentia um atleta.

Cada dia com mais velocidade e em menos tempo. Sempre controlando os batimentos.

Foi ai que aconteceu: eu morri.

Durante o pico da corrida, o Polar que vinha a 140 batidas por minuto repentinamente foi a zero.

O ar faltou.

As nuvens enegreceram ao meu redor.

Os joelhos fraquejaram, dobraram.

Fui derretendo na calçada.

Com os olhos esbugalhados confirmei que o Polar continuava no zero.

Sem dúvida, eu morri em trezentas pratas num relógio pirata.

29 março 2016

Absolutamente velho


— Obsoleta?

— Sim, senhor, sua máquina está obsoleta.

— Mas, como? Deixei meu micro aqui e você fez o up grade a menos de um ano!

— Hoje em dia tudo evolui muito rapidamente. Tudo fica ultrapassado em pouco tempo. O senhor precisa trocar a placa mãe. Vai aumentar a velocidade de processamento e a capacidade de armazenamento.

— E quanto custa essa peça? Como é mesmo o nome?

— Placa mãe, ou mother board. Ela é importada, é japonesa. Da melhor qualidade. Custa R$ 700. Eu posso fazer à base de troca. Vou cobrar só R$ 600.

— Mas é quase o preço de um computador novo!

— Justamente, senhor, como eu disse antes, sua máquina está obsoleta e vai ficar nova, com a vantagem de estar totalmente configurada e com todos os programas que precisa e usa.

— Acho que você está confundindo os valores.

— Como assim?

— A máquina está ótima. A sua ética é que está obsoleta.
 
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