NESTE DIA DE FINADOS, DEDICO ESTE TEXTO A TODOS QUE PARTIRÃO UM DIA!
Perambulava aquela cabeça cadavérica pelos corredores do sem
fim até que, pondo a cabeça no lugar, estacionou-se à beira do caminho a
espera de Armando . Foram vários e vários, talvez séculos, aguardando a
passagem daquele por quem ela, um dia, perdera a cabeça.
Ficou ali na certeza de que um dia ele, Armando, certamente
passaria, como muitos passaram e passarão, naquela passagem certa e necessária.
Observava sem piscar aquela fila de esqueletos que subiam em
mão única. Iam, mas não voltavam. Esperou por ele com a cabeça, digo, caveira,
encostada nas ossadas que se desengonçaram de fraqueza antes de alcançarem um
refúgio, sei lá onde, porque ela não sabia o que acontecia depois daquele lugar,
nunca antes tentou atravessar o próximo umbral.
Lá vinha ele, o Armando. Ufa! Chegou o dia dele. Já caminhava pelo
corredor da eternidade há, mais ou menos, meia eternidade quando, de repente,
encontrou-se com uma caveira. Era ela, Lélia, que há..., deixa pra lá, havia
perdido a cabeça.
– Armando! – gritou cheia de entusiasmo aquele resto de
ossos, entre outros restos de ossos. – Aqui embaixo, encostada nas ossadas.
Sou eu, a Lélia!
Os 2 buracos enormes no crânio do Armando procuravam aquela
voz que saía do buraco do crânio de Lélia.
Não demorou muito e ele a encontrou.
– Lélia? É você? Nossa! Você não mudou nada, continua com a
mesma feição! Mas... cadê o seu esqueleto?
O que houve com o restante da sua ossada?
– Armando, meu querido! Não se lembra de que eu perdi a
cabeça por sua causa!? Então... estou aqui, do mesmo jeito de quando eu a
perdi. Perambulei procurando um corpo para encaixar a minha cabeça, mas quando
cai em mim- confesso: doeu pra caramba- resolvi ser apenas caveira. Pois o
esperaria, Armando, da mesma forma com que o deixei quando parti. Afinal de
contas, sempre lhe fui honesta, jamais entregaria um corpo a você que não fosse
o meu.
– Uai,Lélia! De onde tirou essa ideia de que eu quereria o
seu esqueleto?
– Claro que quer!
Sempre se fez de durão, Armando, eu sabia, mas agora que eu o encontro aqui,
nesta eternidade, onde eu apeei para encontrá-lo, tudo se concretizará.
– Lélia, você nunca foi boa da cabeça, mas agora, pela falta
do cérebro, parece que piorou mesmo. Há quanto tempo não se olha no espelho? Tá
acabada, hein!?
– Mas você acabou de dizer que eu não mudei nada! É que
nesta dimensão onde estamos só
enxergamos o outro. Você também não está lá aquela coisa. Foi a espera por você,
Armando, que me consumiu.
– Preste atenção, Lélia! Não se iluda comigo. Para chegar
até aqui eu passei por diversas portas, em cada uma delas fui pagando até o que
eu não devia. Portanto, chego até aqui duro, duro. Como todos outros que já estão passando na
minha frente. Vê , você está atrasando o meu percurso. Sinto muito
decepcioná-la, Lélia, mas eu preciso seguir o meu caminho.
– Armando, que é
isso? Você, enquanto vivo, sempre foi um duro. E de todas as formas que se
apresentava duro eu gostava, mas se me confessa que até morto continua duro, quer coisa melhor??
Venha comigo. Já reservei um lugar pra nós dois repousarmos os restos da nossa
dureza! Venha comigo. Arrumei nosso ninho aqui atrás dessas ossadas...
– Lélia! Preste atenção! Você é pura caveira. Não tem mais o
esqueleto, como eu vou fazer para... hum... para... você sabe o que eu quero
dizer, não sabe?
– Claro que sei, Armando. Por isso eu consegui com uns passantes que eles me
arrumassem algo. Vamos, pegue-me com as
suas mãos esqueléticas e leve-me lá. Irá gostar.
Armando enfiou os dedos nos buracos da caveira e a levantou
daquele encosto em que ela se encontrava.
– Armando, você está enfiando os dedos nos meus olhos!
– Não tem olhos, Lélia, estou com os dedos nos buracos da sua cara.
E vê se para de balançar essa mandíbula, senão cairão os poucos dentes que
ainda lhe restam. Nossa, Lélia, como você está feia!
– Ai, Armando! Você continua o mesmo mal educado de sempre.
Foi por causa desse teu gênio do cão que eu perdi a cabeça. Aqui! Pare, é aqui
o nosso ninho. Gostou?
– Aqui!? Mas o que é isso, sua caveira louca?
– Uai! Uma folha de zinco! Isso fará com que vivamos um amor
ardente. Sinta, vê se está quente. Há décadas e décadas está pronta esperando
por você!
– Com que intenção, caveira maluca!?
– As piores. Não gostou!? Consegui com uns pagadores de
pecados que se perdiam pelo caminho. As
vibrações da folha de zinco substituirão o meu esqueleto, o som será quase o
mesmo, e o quentor do zinco, penetrando-lhe os ossos, será o mesmo que o meu,
armazenado todo esse tempo à sua espera.
– Lélia, você acha mesmo que eu vou esfolar os meus joelhos nessa folha de zinco,
comprometer as minhas falanges me apoiando nesse negócio pegando fogo só pra
matar sua vontade de ser consumida morta? Mas nem morto, Lélia! Esperou pelo
esqueleto errado. Se a ponta dessa folha de zinco bater em uma das minhas joanetes, aí mesmo que eu morro de vez!
KKKKKKK
– Armando, joanetes você tinha enquanto estava vivo, morto
não tem joanetes!
– Lélia, você morta é mais louca do que viva! Juanetes a
gente não perde, como a carne, a gente as carrega nos pés, como castigo!
– Aff, Armando! Vivo você tinha caroços em todos os membros, usava os pés
também para fazer o seu trabalho? Taí, agora entendo porque demorou tanto para
chegar aqui. Foi difícil aos tatus
comerem a sua carne fraca, né!?
Na confusão, entre os dois mortos, surge uma pequena
aglomeração de esqueletos fazendo o
trajeto na contramão, descendo.
– Ali! Foi aquela caveira ali que nos subornou para
roubarmos aquela folha de zinco – gritava um esqueleto histérico.
– Que é isso, esqueleto louco! Tá me confundindo, tá?
– Confundindo, não! Caveira parada no meio do caminho, há
décadas, somente você. Tinha certeza que
encontraria você nesse mesmo lugar encostada nas ossadas. Como pôde nos
ludibriar, se já tínhamos liquidado todos os nossos débitos nas passagem que
conseguimos transpor? Agora essa,
chegando ao patamar do perdão, somos obrigados a retornar do ponto de partida.
– Vamos levá-la junto – gritou um esqueleto castigado!
– Isso mesmo, ela vai junto, começar o trajeto dela desde o
início, por castigo, por nos seduzir a
roubarmos uma folha de zinco.
– Mas como? Eu não fiz nada disso. Armando, por favor me
defenda, eu não posso recomeçar a minha caminhada. Nem pernas tenho mais, como
chegarei aqui novamente ?
– Ah, Lélia, Lélia! Não posso fazer nada. Se você os ajudou
a pecar, o seu castigo deverá ter o mesmo peso que o deles.
Num tilintar de dentes, um esqueleto deu um bicudo na
caveira da Lélia, pinchando-a longe.
– Ah,Lélia, Lélia! Viva você sempre me surpreendia, morta continua me surpreendendo. Onde já se
viu – Armando se dirigiu aos esqueletos – quis pôr a folha de zinco aqui no
chão, para me esperar, sonhando realizar um encontro amoroso comigo. Coitada,
merecia o perdão, só tinha cabeça pra mim, a pobre!
Entreolhando-se, os
esqueletos interpretaram códigos. E num instante, a folha de zinco rangeu
vinganças à caveira da Lélia.
autoria - Rita Lavoyer