Ribeira negra, dois anosQuando vou ao teatro (tão raro) choro sempre no momento em que, acabada a peça, os actores dão as mãos e agradecem à audiência, ou agradecem ao mundo que a audiência encena sem saber. Quando ando no teatro do mundo imagino que haja um dia em que a peça possa acabar.
Faz dois anos a Ribeira Negra, e se souberem um bocadinho de mim sabem porque é que um blog pode ser uma coisa que sou, e não uma coisa que tenho. Faz dois anos que eu sou assim.
E hoje olho para trás, como se olhasse um rio tranquilo. Não, a peça ainda não acabou, no teatro do mundo ainda o pano não caiu. Este ainda não é, creio eu, o último post. A Ribeira ainda não sabe da Foz onde as coisas todas se alargam, da nascente onde as coisas todas se consomem. Ainda é esta coisa incompleta. Mas gostava de vos agradecer, aos vivos e aos mortos, aos anjos e aos homens, aos bons e aos maus.
Por aqui passaram o meu Caspar David Friedrich e os seus homens de negro, sempre de costas como se não valesse a pena sabermos deles. Passou a Danaide de Rodin, ombros vencidos tão frágeis. Passaram filósofos e reis, poetas e músicas, meninas de outono e criaturas sonhadas pelos pesadelos das crianças. Passaram palavras e silêncios, gestos e olhares, rosas mortas e buganvílias em flor. Passaram coisas que talvez sejam as sombras dos anjos, a voz terrível dos anjos. Anjos do princípio do mundo, anjos perdidos, anjos quietos que se confundem com as pedras e as asas dos pássaros. Tanta coisa passou, tanta coisa passei eu para as saber dizer ou as saber escutar. Tantas coisas.
Obrigado.
Alguns de vocês estão aqui desde o princípio.
O Mefistófeles do Tapor, que deixou o primeiro comentário, e os incontáveis Tapores que deram voz ao Argentino ("em noite de jogo e de complacência...)
O Lorde of Erewhon, Klatuu Niktos aka Monseigneur, que me trouxe uma noite o que ainda acho serem as mais belas palavras que a Ribeira já ouviu, o "nocturno Andaluz", e de quem recordo, como mais antigo comentário, ainda no blog antigo da gotika, o "este goldmundo não deve ser uma criança". Pois não. Pois sou.
O Musgo, de quem não posso dizer muito mais.
Alguns de vocês estão aqui, e estão aqui mesmo quando por aqui passam calados. São a Ribeira também, são também - saibam-no ou não - esta coisa que eu sou feita de histórias caladas. Alguns, tantos, todos, e a ribeira pequena nunca teve de crescer para vos abrigar. Mistério de ser.
Cruzei-me com tantos ("como navios que se saudam, no alto mar da vida"). Ãprendi tantas coisas. Vi pessoas de que não conheço o rosto ou as mãos ou o modo como os ombros sustentam a fragilidade da vida, vi pessoas que estiveram comigo como se estivéssemos já no lugar em que o corpo se deixou ficar. Vi coisas que passam caladas e de que a maior parte dos homens não suspeita sequer.
Amigos. Amigos de que não tenho telefone nem a morada nem a recordação das gargalhadas e dos dias. Porque ao entrar aqui fui eu que vos fiz, fui eu que vos dei um rosto e um nome, fui eu que dei à ribeira tudo aquilo que traziam convosco. Sim, a ribeira sou eu deste lado de um computador, são palavras deixadas, são coisas que não sabem ser a Verdade. Mas a Verdade apareceu sempre, mesmo quando nenhum de nós a chamava, mesmo quando eu me queria esconder dos seus olhos. Obrigado.
Obrigado Confessionário e Padre Zé e Caminante e Vitor Mácula e Conceição, obrigado aos meus amigos católicos que ouviram a minha dúvida, a minha pergunta, a minha negação tão mais que três vezes.
Obrigado Erewhon, Ardath Lilith, Elaine de Astolat, Venus Diablo, obrigado aos meus amigos que sabem de coisas que são a Noite maior.
Aquilária.
Fata Morgana.
Ebola.
Evil Angel.
Coisas que disseram que fizeram em mim outras coisas.
Actores no palco da Ribeira, alto mar da vida, estranhos passos. ("as tuas palavras cantam", disseste uma vez, e cantam apenas quando sei deixar que elas digam ao que vêm). Sophia Rui.
Misturámos todos, misturei eu, coisas pequenas e grandes, luzes e sombras. Arcos de pedra e folhas de madressilva. E que os meus olhos nunca mais se saibam fechar.
Eu-mesma.
Ainda não sei quem sou, ainda não sei o que fazem no mundo as coisas que tento fazer. Ao negro serei fiel, para que possa recusar a treva. E o meu amor é feito de silêncio e de distância. E o meu amor anda comigo como se o mundo fosse ainda o primeiro dia.
Zazie. Ninagasol. Moriana.
Os vivos e os mortos, os bons e os maus. Todo o mundo, todo eu. Quase. Este quase que eu sou.
Avançam os actores de mãos dadas, avança a ribeira pelo labirinto dos mundos. A vida chama, em indizível chama. A vida é sempre um anjo a calar. E a noite saberá o abraço que o fogo e o gelo ocultamente dão, desde o dia da fundação das coisas. Coisas caladas, coisas que não sei contar, convosco conto para que um dia eu seja.
Screvo meu livro à beira-mágoa, escrevo sim, escravo que ainda sou. Demos as mãos (Lídia). Les uns et les autres, os outros todos que sou. O canto.
Corpo. Alma. Da minha janela vejo o inconsciente Douro (d'ouro). Da minha casa nunca soube sair. Tantas coisas ficaram por dizer. E um dia veremos face a face. Os deuses só nos olharão quando nós proprios tivermos um rosto.
Somos a dança, e a blasfémia da dança, e o sacrifício puríssimo da dança. Tudo. Tremendamente tudo, abismo de babel coisas de nada. Somos todos isto que somos. E isto que nos falta, que é tudo.
Ribeira negra dois anos.
Devo ao encontro improvável de dois góticos e um imperador esta coisa que lês, feita de coisas quietas.
Gotika. Tanto.