Aqui - como convém aos mortais -
tudo é divino.
E a pintura embriaga mais
que o próprio vinho.
Não tenho senão a ideia que faço de mim mesmo para me suster nos oceanos do nada
Henri de Montherlant
Cada vez que leio um livro, o mundo que ainda não sei faz-se em mim um pouco maior. Cada vez que vejo uma coisa, coisas outras do longe assomam. Terra prometida dos homens, mistério: cada passo que dou faz-se caminho por ver.
Viver é dançar a dança divina. São tão estranhos os Caminhos. Maravilha.
Ando a pensar na vida, ando com pensares parados à espera que tenha tempo para os receber. Ando a pensar, a ver que andam paradas as coisas que sou. Anda o mundo, e eu vou parado com ele.
Lembrei-me hoje dos rios, pensei que pensamos neles para dizer que as águas não passam duas vezes. Coisas vistas e pensadas por quem anda parado à margem, coisa importante a aprender. Mas a grande lição, a lição que mais nada no mundo podia dar, essa não é da margem que a aprendemos mas do barco, que é canção das águas levadas. É no barco que podemos ficar parados, porque o próprio caminho se pôs a andar. Podemos ficar deitados comode itados na margemd e ontem, mas hoje as árvores andam, e ontem ainda eram a sombra mais quieta. Grande lição a do rio. Grande coisa andar embarcado.
E em aditamento ao anterior:
Sou, sempre fui, a multiplicidade, a dispersão, a fragmentação. Gémeos ascendente, não é? Talvez. Um que são dois que depressa se fazem quatro... ("Contradigo-me? Muito bem, entãom contradigo-me; sou grande, contenho multidões", gritava o Walt Whitman... mas não, eu não sou grande. As minhas multidões transbordam-me)
Ao longe, tão longe, o Único. A divindade. Às vezes tenho pena de não ser muçulmano. Talvez o deserto de Allah me unificasse. Mas como tudo na minha vida, o Um está longe demais.
Um. Tudo o resto no mundo são coisas pequenas, dispersas sombras. E sombras e coisas trago-as dentro de mim que baste. Tudo o resto no mundo não é mais do que mais de mim.
Nunca entendi a ligação cristã entre o amor e a luxúria, essa forma inferior de gula. E lembro-me, sim. Lembro-me da primeira paixão que tive (Uma vez vi os joelhos dela, de outra descalçou-se por momentos no fim de um passeio junto à praia, sacudiu a areia das sandálias), lembro-me da primeira vez o abismo, lembro-me da última vez. É raro tocar, coube-me quase sempre o amor de longe. Mas reservo a gula para a mousse de manga e para as incontáveis cerejas. Tocar e ser tocado: mistério da unidade do Outro, que por momentos me faria inteiro.
Talvez por isso deus me imponha a distância.
Tirem os crucifixos das escolas.
Tirem as Chagas de Cristo da bandeira de Portugal (as "quinas").
Tirem da cabeça que estamos num "país católico".
Deixem de transmitir a Missa Católica na televisão. Tirem da frente o senhor com voz embargada de comoção a falar na televisão de Fátima, horas e horas.
Peçam ao Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa, e aos Senhores Bispos Reverendíssimos, que deixem de comparecer em cerimónias de Estado.
Deixem de se opor à despenalização do aborto.
Deixem de mendigar subsídios do Estado para a construção de igrejas.
Parem com o supremo escândalo que é a construção da nova Catedral de Lisboa: temos uma catedral que é uma das igrejas mais bonitas do mundo, para quem a sinta, e temos a catedral da Luz, para quem queira ser moderninho.
Tirem das escolas públicas, juntamente com a cruz, os padres professores de "moral" ou lá como se chama esse outro escândalo.
Digam ao Senhor Bispo Capelão-Mor das Forças Armadas que tenha juízo e vá rezar para um sítio tranquilo.
Digam ao povo, em voz bem alta, que na NOSSA opinião, não se justifica que dias santos sejam feriados. O Estado que decida, mas não à nossa custa.
Deixem de pôr, mesmo em véspera de uma consagração, placards caricatos da Santíssima Virgem Maria, em formato gigante, na Praça do Marquês de Pombal em Lisboa, ainda por cima num local onde nas outras alturas há publicidade ao Banco com o nome infeliz de Espírito Santo. A Senhora já é insultada demais.
Deixem de atroar metade do país com horrendos "sinos" electrónicos a berrar de quarto em quarto de hora. Desliguem o horrendo néon das cruzes no cimo das igrejas (como é possível?!).
Recusem-se a ser "cultura".
Mas...
Vivam, os irmãos, como irmãos.
Vivam, os padres, como padres.
Vivam, os Bispos, como sucessores dos Apóstolos.
E isto não será coisa pouca. A fé é a coisa maior deste mundo, a par do amor (caridade, palavra tão estragada). É talvez maior que ele, porque a fé não é mais do que o amor que sabe donde vem. Não combatam o que julgam serem as trevas. Há trevas, sim, e maiores do que aquilo que podemos conceber. Mas esse combate não é nosso.
E olhem para a cruz, quando ela for retirada das escolas. Olhem para a parede nua onde ela esteve. Olhem para a cruz, a coisa do mundo todo onde é maior a diferença entre o ver e o simples olhar.
Olhem, já agora, para o meu Caspar David Friedrich, a cruz na montanha. A Cruz é um acto solitário. E é esse o mistério tremendo da comunhão dos homens.
[versos de Ricardo Reis]