28.12.05

Boas Festas



Aqui - como convém aos mortais -
tudo é divino.
E a pintura embriaga mais
que o próprio vinho.

[versos de Sophia, pintura de Adolphe-Guillaume Bouguereau.
Não sei se alguém percebeu já que foi isto que eu sempre quis
dizer na Ribeira. Eu mesmo só o fui entendendo devagarinho,
e com a vossa ajuda. Tudo o resto são caminhos de andar.]

20.12.05

Leio sobre o deus vivo, e creio encontrar a verdade. Leio sobre os deuses pagãos, e creio encontrar a beleza.
Que deus, ou que ausência dele, me fará crer ter-me encontrado por fim? Ou não estarei eu nesse lugar longe em que a beleza e a verdade se enrolam como a serpente dupla?

14.12.05

Maravilha



Cada vez que leio um livro, o mundo que ainda não sei faz-se em mim um pouco maior. Cada vez que vejo uma coisa, coisas outras do longe assomam. Terra prometida dos homens, mistério: cada passo que dou faz-se caminho por ver.

Viver é dançar a dança divina. São tão estranhos os Caminhos. Maravilha.

13.12.05

Como um rio



Ando a pensar na vida, ando com pensares parados à espera que tenha tempo para os receber. Ando a pensar, a ver que andam paradas as coisas que sou. Anda o mundo, e eu vou parado com ele.

Lembrei-me hoje dos rios, pensei que pensamos neles para dizer que as águas não passam duas vezes. Coisas vistas e pensadas por quem anda parado à margem, coisa importante a aprender. Mas a grande lição, a lição que mais nada no mundo podia dar, essa não é da margem que a aprendemos mas do barco, que é canção das águas levadas. É no barco que podemos ficar parados, porque o próprio caminho se pôs a andar. Podemos ficar deitados comode itados na margemd e ontem, mas hoje as árvores andam, e ontem ainda eram a sombra mais quieta. Grande lição a do rio. Grande coisa andar embarcado.

9.12.05

E em aditamento ao anterior:

Sou, sempre fui, a multiplicidade, a dispersão, a fragmentação. Gémeos ascendente, não é? Talvez. Um que são dois que depressa se fazem quatro... ("Contradigo-me? Muito bem, entãom contradigo-me; sou grande, contenho multidões", gritava o Walt Whitman... mas não, eu não sou grande. As minhas multidões transbordam-me)

Ao longe, tão longe, o Único. A divindade. Às vezes tenho pena de não ser muçulmano. Talvez o deserto de Allah me unificasse. Mas como tudo na minha vida, o Um está longe demais.

Um. Tudo o resto no mundo são coisas pequenas, dispersas sombras. E sombras e coisas trago-as dentro de mim que baste. Tudo o resto no mundo não é mais do que mais de mim.

Nunca entendi a ligação cristã entre o amor e a luxúria, essa forma inferior de gula. E lembro-me, sim. Lembro-me da primeira paixão que tive (Uma vez vi os joelhos dela, de outra descalçou-se por momentos no fim de um passeio junto à praia, sacudiu a areia das sandálias), lembro-me da primeira vez o abismo, lembro-me da última vez. É raro tocar, coube-me quase sempre o amor de longe. Mas reservo a gula para a mousse de manga e para as incontáveis cerejas. Tocar e ser tocado: mistério da unidade do Outro, que por momentos me faria inteiro.

Talvez por isso deus me imponha a distância.

Uma parte de mim assusta-se imenso com aquilo que a outra parte faz.

Sou primo dos centauros e das sereias, híbrido estranho. Talvez por isso me façam falta os campos selvagens. Metade lobo, metade garça real. Foi sempre assim.

6.12.05

A cruz, em tempo de trevas



Tirem os crucifixos das escolas.

Tirem as Chagas de Cristo da bandeira de Portugal (as "quinas").

Tirem da cabeça que estamos num "país católico".

Deixem de transmitir a Missa Católica na televisão. Tirem da frente o senhor com voz embargada de comoção a falar na televisão de Fátima, horas e horas.

Peçam ao Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa, e aos Senhores Bispos Reverendíssimos, que deixem de comparecer em cerimónias de Estado.

Deixem de se opor à despenalização do aborto.

Deixem de mendigar subsídios do Estado para a construção de igrejas.

Parem com o supremo escândalo que é a construção da nova Catedral de Lisboa: temos uma catedral que é uma das igrejas mais bonitas do mundo, para quem a sinta, e temos a catedral da Luz, para quem queira ser moderninho.

Tirem das escolas públicas, juntamente com a cruz, os padres professores de "moral" ou lá como se chama esse outro escândalo.

Digam ao Senhor Bispo Capelão-Mor das Forças Armadas que tenha juízo e vá rezar para um sítio tranquilo.

Digam ao povo, em voz bem alta, que na NOSSA opinião, não se justifica que dias santos sejam feriados. O Estado que decida, mas não à nossa custa.

Deixem de pôr, mesmo em véspera de uma consagração, placards caricatos da Santíssima Virgem Maria, em formato gigante, na Praça do Marquês de Pombal em Lisboa, ainda por cima num local onde nas outras alturas há publicidade ao Banco com o nome infeliz de Espírito Santo. A Senhora já é insultada demais.

Deixem de atroar metade do país com horrendos "sinos" electrónicos a berrar de quarto em quarto de hora. Desliguem o horrendo néon das cruzes no cimo das igrejas (como é possível?!).

Recusem-se a ser "cultura".

Mas...

Vivam, os irmãos, como irmãos.

Vivam, os padres, como padres.

Vivam, os Bispos, como sucessores dos Apóstolos.

E isto não será coisa pouca. A fé é a coisa maior deste mundo, a par do amor (caridade, palavra tão estragada). É talvez maior que ele, porque a fé não é mais do que o amor que sabe donde vem. Não combatam o que julgam serem as trevas. Há trevas, sim, e maiores do que aquilo que podemos conceber. Mas esse combate não é nosso.

E olhem para a cruz, quando ela for retirada das escolas. Olhem para a parede nua onde ela esteve. Olhem para a cruz, a coisa do mundo todo onde é maior a diferença entre o ver e o simples olhar.

Olhem, já agora, para o meu Caspar David Friedrich, a cruz na montanha. A Cruz é um acto solitário. E é esse o mistério tremendo da comunhão dos homens.

4.12.05

Lídia

I.

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
que a vida passa, e nao estamos de maos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos)



(sossegadamente sim, que pena. mas Lídia foi sempre junto de quem me sentei, me quis sentar. deve ser daí que nasceste, ribeira-de-mim, aprendamos dizia a vozinha cá dentro. o Príncipezinho não teve nunca uma camisa ou uma capa de amarrotar. enlacemos as mãos: cuidado. fui sempre este ver o rio que passa, e tanto mais quanto mais perto as mãos me fitarem.)

II.

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
passa e nao fica, nada deixa e nunca regressa,
vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.


(tão pequeno o rio, sabes, e estava pensar que a vida passa e sinto a tua mão como se fosse uma ausência já perdoas-me?)

III.

Desenlacemos as mãos, porque nao vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer nao gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
e sem desassosegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixoes que levantam a voz,
nem invejas que dao movimento demais aos olhos,
nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
e sempre iria ter ao mar.


(não queria passar, sabes? mas sim, desenlacemos as mãos, não vale a pena cansas-te e eu começo a chorar. eu não queria ser igual ao rio, vamos para casa agora. eu nunca hei-de ser o grito inteiro)

IV.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,
se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
ouvindo correr o rio e vendo-o.

(se quiséssemos, se eu soubesse correr como o rio tão alto. se me deixasses afogar mas não te direi a palavra certa. se quisesses que eu fosse a tempestade maior. mais vale, sim, mais vale ficar. ouvimo-lo, não é? podíamos se quiséssemos mas eu não posso querer, não posso. se fosses Lìdia o abismo se fosses a pedra a sangrar)

V.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
no colo, e que o seu perfume suavize o momento -
este momento em que sossegadamente nao cremos em nada,
pagãos inocentes da decadencia.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-as de mim depois
sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as maos, nem nos beijamos
nem fomos mais do que crianças.

(lembrar-te-ás, diz-me. diz-me isso só e eu deixo-te sossegada as flores suaves. é tão triste ser criança e assim olha como eles dormem tão puros. não nos beijamos, Lídia, nem fomos mais e diz-me lembrar-te-ás do gesto e da incerteza do gesto e de quando disseste eu gosto do rio, vem.
Há um mistério tão grande em pés descalços)

VI.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
pagã triste e com flores no regaço.

(e se antes do que eu. porque eu vou ficar, Lidia. sou a ribeira onde quase enlaçamos as mãos. e já não vou ter com o mar. porque então teria que gritar, e teria que saber o abismo que me não deste. vai., Lídia vai devagarinho. enlacemos as mãos)

[versos de Ricardo Reis]