Mysterium crucis
(isto vem do blog "Confessionário de um Padre", e escrevo para a Luz Dourada e para alguns outros que nele encontro. Um dia hei-de falar desse lugar que é igual à sombra dos dias.)
"Nada, absolutamente nada, é para toda a vida", dizia a Luz Dourada, e falava-se do falhanço das nossas coisas e da nossa vontade em ser feliz. Mas eu reparei que a fé dos católicos é a de que tudo, absolutamente tudo, é para a vida toda. Não sei de outra beleza assim, e para mim a beleza é a única fonte da alegria maior. Sempre: este é o Mistério da Cruz.
Tudo é para a vida toda, mesmo as coisas pequenas, coisas que passam. Disso andamos tão esquecidos, e por isso o mundo é agora um mundo tão triste. Frase de padres vingativos? Também Nietzsche-o-filósofo, que odiou a Cruz que aqui vês, disse um dia "não é a intensidade dos sentimentos que conta, mas a sua duração". E desde há séculos que, nos túmulos de D. Pedro e Inês de Castro, a pedra de Alcobaça guarda a frase simples que nos envergonha: "até ao fim do mundo".
Até ao fim do mundo, e por isso a Cruz é sempre o fim da tarde que o meu Friedrich pintou, tão só e tão alta enquanto o dia chora a derrota iminente. Faz tanto frio aqui, tanto vento. Mas a Cruz ergue-se da rocha inamovível, e sobre esta rocha o deus vivo edificou a sua igreja. E repara: da pedra morta dos séculos nasce já a trepadeira, que anuncia a rosa da manhã de ressuscitar.
Não, querida Luz, Deus não quer que sejamos felizes. Conheces a história de Job? Era um homem feliz, sim, e era também um homem justo. Tinha filhos, e rebanhos, e terras, e escravos. Mas um dia caiu sobre ele a desgraça como se fosse a noite, e o filho mais velho morreu e os rebanhos adoeceram e a terra secou e a sua própria carne se desfez em doença e podridão. Job-o-órfão-de-Deus proclama a sua inocência, nada fiz para merecer isto, enquanto os amigos lhe lançam à cara alguma coisa hás-de ter feito, homens ricos que julgavam que o Deus vivo é o premiador das almas gordas. E a sua própria mulher, que o devia conhecer bem, grita-lhe o grito que ainda hoje nos atordoa (quem o não ouviu já?): "Amaldiçoa Deus e morre!". Mas Job aguardou: Mistério de sofrer.
Não, Deus não nos libertou da Cruz. Não nos dispensou de sofrer. Não nos prometeu o arco-íris, nem a poesia, nem o instante de paixão, nem a claridade do sol, nem a compreensão dos homens. Não trouxe um alicate para quebrar os pregos terríveis. Olha para o meu quadro, este é o convite e a promessa e o caminho e a verdade, ou é a verdade da fé dos católicos. Não se trata de não sofrer, mas de aprender o sentido do sofrimento; não se trata de sermos criaturas de luz, mas de dar sentido à escuridão; não se trata de fugir do mundo, mas de abrir os olhos e os ouvidos às trevas dilaceradas e ao grito terrível do mundo. Toda a criatura geme, disse S. Paulo. E só em Cristo se reencontrará, naquilo para que foi feita.
Por isso o mistério da Cruz é, também, o escândalo da Cruz. E o escândalo é que a libertação não venha da espada e do oiro e das coisas fáceis e do momento de enternecer. Escândalo é que a rocha que aqui está pintada não esteja esculpida em degraus e coberta de rosas para que os pés se não magoem a andar. Que a cruz não esteja vazia, porque o Crucificado já lá esteve tempo que chegasse. Que nada, mas mesmo nada, tenha sentido se no fim da noite este homem que adivinhamos não ressuscitar e nos não abrir o caminho da vida eterna. Que não haja aqui coisas-talvez, coisas-até-certo-ponto, coisas que-por-um-lado-mas-por-outro-lado. ("que as coisas que disserem sejam sim, se for sim, e não, se for não", disse ele). A Cruz, ou a rocha vazia frente à noite enorme que se aproxima. É a hora de fechar os olhos, ou de os abrir, até ao fim do mundo. De dar sentido às coisas todas, ou de fazer do absurdo o único sentido delas.
Gosto do teu nome, Luz Dourada.
[pintura: sempre o meu Caspar David Friedrich...
agora, pormenor do retábulo do altar de Tetschen (c. 1808)]