Apesar de ela nunca me falar no emprego, podia ver que não era um mundo de maravilhas. Quando chegava a casa, via-a sentada no sofá azul (lembro-me tantas vezes do nosso sofá) a olhar estática para a televisão, mais estática que as imagens do fim da emissão. Agarrava-a e deitava-a na cama. Abraçava-a e ia tomar um banho quente. Quando voltava já ela dormia. Encolhia-se no meio da cama, mesmo no centro, e aninhava-se nos lençois. Um beijo na testa, na boca não, tinha medo de a acordar. Afinal este era o seu primeiro trabalho, ela estava cansada e nada podia contra isso. Por vezes acordava-me a meio da noite. “Estou sem sono” e agarrava-me, abraçava-me e despia-me, uma raridade.
De manhã acordava mais cedo que eu. Preparava-se para ir embora e resmungava entre-dentes enquanto barrava a manteiga no croissant. Eu aproveitava o cheiro dela no meio dos lençois, deitava-me na almofada dela e dormitava mais um pouco, à espera que me viesse beijar. E ia embora, todos os dias, com o mesmo tédio pendurado nos olhos.
***
Chegou a casa naquele dia com a aparência debilitada. Parecia que os cabelos tinham baloiçado ao vento num parque qualquer no meio da avenida. Uma lágrima a escorrer-lhe na cara. Tornei-me redil em volta dela mas os meus braços não chegavam para deter o transbordar do terror que lhe percorria a pele. Os meus beijos não lhe secavam a cara. “Já passa, vai ficar tudo bem, meu amor.” E as lágrimas percorriam-me a pele em surdina, por detrás do cabelo dela. Peguei-lhe como se embalam os sonhos e deitei-me com ela nos braços a chorar de mansinho como a brisa a bater na janela. Sabia que a abraçava com tal força que mais um pouco e ela sufocava. Uma ventania soprava lá fora, os vidros não paravam de gemer.
Acordei com o som de àgua a correr, um gemido e um grito afogado pelas mãos. Corri até ela, deitada sobre a pedra branca, meio adormecida, meio em estado de choque. Entrei em pânico, não sabia... Não sabia o que fazer! Abracei-a como se abraçam os anjos, sem nunca realmente lhes tocar, e levei-a de volta para a cama. Não se mexeu, não me falou. Nos olhos transcreviam-se páginas de dor e de terror que ela nunca me contaria.
Fiquei sentado, ao lado dela, a chuva lá fora a entoar uma autêntica serenata junto ao vento. E então chorei. Chorei baixinho com o medo a decapitar-me a voz e, com a mão húmida, toquei-lhe nos cabelos escuros. Cheiravam a rosas e túlipas, cheiravam a amor e a saudade. Cheiravam à minha pele tão presa na dela.
Não tardou a acordar. Abriu os olhos e virou-se para mim. “Já passou, meu amor” e beijei-lhe a testa sem saber que mais fazer, era tão estranho o mundo dela. “Descança”, “Amo-te”. Percorreu-me um calafrio, ouvi-la dize-lo, saber que o sentia... “Também te amo” e abracei-a com a força da chuva lá fora a tocar a melodia dos dias cinzentos. Beijei-a. E fiquei assim, perdido no mundo dela, com o vento a gemer ao lado lado, as grossas gotas de chuvas a cantarem para nós.
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Depois desse dia, nunca mais voltou à loja de lingirie naquele sítio desmazelado. Não gostei muito que voltasse à velha rotina do sem-nada-para-fazer mas pelo menos assim estava comigo a tempo inteiro. Não poderá isso ser considerado um emprego? Quase.
Passado pouco tempo (devia ser por peso de consciência), arranjou um novo emprego. Não gostei também. Afinal, agora pensando friamente no assunto, creio que não gostava de nada o que a afastasse de mim. Mas a verdade é que o clube de vídeo não me agradava muito. Muita gente a entrar, muita a sair. Não lho disse, apoei-a. Afinal de contas era isso que ela precisava, apoio, e isso ela tinha a 100%.
Um dia decidi ir buscá-la ao emprego. Ela estava sentada numa cadeira atrás de um balcão pequeno e enferrujado com a cabeça apoiada no braço a olhar para a televisão. Parecia que aquilo não era assim tão movimentado quanto isso. Olhou para mim e não esboçou um sorriso. Fui ao balcão. “Queria um filme muito, muito porco para ver com a minha mulher.” Ela sorriu, riu e deu uma gargalhada. Como eu me alimentei daquele sorriso! Era o sol dos dias cinzentos que se viviam. Abraçou-me com força e sussurrou-me ao ouvido. “Parece que só temos filmes amadores feitos em casa” e piscou-me o olho. Não acreditei. Sabia que era puro ímpeto, ela já não tinha vontade de estar comigo à noite, afastava-me. Inventava dores de cabeça (como se eu acreditasse), ou então, falava da menstruação avançada, que estupidez. Não acreditei, sabia que era apenas um jogo, estava feliz por me ter visto alí, surpresa, e eciciu seguir o meu jogo, apenas isso.
Peguei nela e viemos os dois para casa. Ao entrar na avenida o chão tornou-se dourado. Choviam folhas das árvores que dançavam ao vento. Ela não as queria pisar. Levou-me num jogo de criança, o “não pises as folhas douradas senão morres”. E então íamos aos saltos com as pessoas pasmas a reparar em nós: dois adultos a saltar de um lado para o outro numa barulheira enorme. O jogo era extremamente difícil. As folhas eram imensas e não tardavam a cair mais. Só não entendo por que me recordo tão bem deste momento... Afinal eramos somento nós a fugir das folhas bailarinas. Ah, eramos NÓS!
Quando a noite inundava o ar, ela aninhava-se na cama, bem longe de mim, num canto da cama, e fingia adormecer depressa. Tentei muitas vezes abraça-la mas ela afastava-se. Tentei muitas vezes beija-la, mas os beijos eram frios como o tempo lá fora. E era assim que as coisas avançavam. As vertigens e o sexo iam desaparecendo, os beijos esfriavam e os abraços eram muitas vezes evitados. Desculpas para um lado e para o outro. E, à noite, quando pensava que eu já estava a dormir, chorava de mansinho, tão de mansinho que se confundia com o vento a uivar. Queria tanto abraça-las, ser o seu porto seguro... Mas tinha medo. Sabia que fingiria, que mentiria. Não sabia o porquê das lágrimas dela, mas as minha tinham razão nas dela.
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Uma manhã, cinzenta como as outras, acordei e decidi-me a falar com ela. “O que se passa?” Ela tornou-se meio violenta, olhou-me de cima a baixo. O coração começou cavalgar-me no peito, sei que de um momento para o outro iria ficar corado de raiva. Ou seria medo? Medo de a perder, com certeza. Não me respondeu, fugiu para o banho matinal.
Sentei-me no parapeito da janela a ver a chuva. As gotas grossas caiam e formavam possas lá ao fundo. Imaginei um “plim” para cada gota quando tocava o solo e a melodia que isso formaria. Parece que fiquei muito tempo naquele estado de transe no parapeito da janela porque quando voltei à realidade ela já estava por detrás de mim num abraço quente e sinuoso. Sorvi-lhe a paixão num beijo aceso, um beijo desejado há tanto tempo. Matei a saudade no peito dela, bebi-lhe da pele a seiva ardente e caimos na cama sem dar por isso. Os nossos pés tinham simplesmente levitado, só pode ter sido isso.
Beijou-me a pele núa e, como uma louca, percorreu-me com a língua. Parecia esfomeada, por isso deixei-me levar.