sexta-feira, 30 de julho de 2010

A revolução haitiana: representação e paradigma


A revolução haitiana: representação e paradigma

Jovita Maria Gerheim Noronha
UFJF

O Haiti como locus ficcional da identidade caribenha: olhares transnacionais em Carpentier, Césaire e Glissant.

Maria Helena Valentim Duca Oyama
(Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense, 2009). Orientadora: Eurídice Figueiredo

Os escritores e intelectuais caribenhos contemporâneos, em suas reflexões sobre questões identitárias, vêm abandonando cada vez mais o ângulo puramente local e privilegiando uma perspectiva relacional - no sentido que dá ao termo o escritor martinicano Édouard Glissant - que enfatiza os encontros e as interfaces entre essas diferentes histórias, sem esquecer os laços problemáticos com as antigas metrópoles. Daí o interesse de um trabalho como O Haiti como locus ficcional da identidade caribenha: olhares transnacionais em Carpentier, Césaire et Glissant, que se elabora justamente segundo esse eixo.

Maria Helena Valentim Duca Oyama, em sua tese, examina como a Revolução haitiana - ou como prefere a autora, a Revolução de Saint Domingue - transformou-se, no século XX, para outros escritores caribenhos, em um paradigma que lhes permitiu refletir sobre suas problemáticas particulares. Além disso, a autora analisa o tratamento do tema em textos de autores franceses do século XIX que, obviamente por razões diversas, também elegeram essa revolução como objeto. Como explicita a autora, seu objetivo é "fazer uma análise da representação do Haiti e de seus heróis a fim de mostrar como ele se tornou o locus ficcional da identidade caribenha" (p. 13).

O corpus principal é constituído pelas seguintes obras: o romance El reino desse mundo (1949), do cubano Alejo Carpentier, o ensaio Toussaint Louverture. La révolution française et le problème colonial (1962), a peça de teatro La tragédie du roi Christophe (1963), do martinicano Aimé Césaire e a peça Monsieur Toussaint (1961), do também martinicano Edouard Glissant. A autora trabalha ainda com o que chama de corpus complementar: o drama Toussaint Louverture (1839-1850), de Alphonse de Lamartine e o romance Bur-Jargal (1818-1826), de Victor Hugo.

Trata-se de um tema relevante, na medida em que, como explica Duca Oyama, apoiada em Walter Mignolo, a Revolução de Saint-Domingue "é um elemento crucial para a formação da modernidade caribenha e latino-americana", já que introduz "a ideia de resistência (...) com uma dimensão internacional" (pp. 12-13). Mas, embora emblemático por fazer do Caribe uma lugar de contestação da ordem colonizadora, o acontecimento histórico foi silenciado pela ação de "duas ideologias geopolíticas e linguísticas dominantes: a Anglo-americana e a América Hispânica". Donde o isolamento do Haiti, depois da independência.

A tese, cuja fundamentação teórica se adequa bem ao objeto, desperta interesse e se lê com prazer, por ser bem escrita e bem organizada. A hipótese é desenvolvida em três etapas. O primeiro capítulo é dedicado aos principais projetos de construções identitárias no Caribe e na América Latina, com o propósito de mostrar os contextos intelectuais distintos dos quais emergem as diferentes apropriações da Revolução haitiana e de seus heróis: o real maravilhoso de Carpentier, o indigenismo de Jean-Price-Mars e Jacques Roumain, a negritude de Césaire, a antilhanidade e a crioulização de Glissant, além da noção de geopoética caribenha de Daniel Maxim.

O segundo capítulo constitui uma apresentação analítica do contexto histórico. São abordados os acontecimentos, seus protagonistas e as consequências da Revolução, como uma preparação para a leitura das obras que elegeram o Haiti como locus ficcional. São ressaltadas as ambiguidades tanto do gesto revolucionário quanto de seus heróis.

O terceiro capítulo apresenta e analisa as diferentes encenações desse locus ficcional, em acordo com os projetos poéticos e políticos de cada um desses autores, apontando para o diálogo, o entrecruzamento tanto desses pensamentos quanto de suas manifestações estéticas.

A diversidade genérica do corpus pode ser motivo de incômodo para alguns, já que a questão não é, de fato, problematizada, o que, em alguns - poucos - momentos, parece colocar certas dificuldades para a análise crítica comparativa de alguns aspectos das obras. É o caso da questão da coexistência de várias temporalidades do mundo colonial, que se traduziria, na narrativa de Carpentier, segundo Maria Helena, pelo procedimento da colagem, estratégia que é bem desenvolvida e bem analisada por ela. Porém, ao tentar abordar a mesma questão, na obra de Glissant, a autora se limita a afirmar que "a temporalidade é subvertida, na medida em que as constantes retomadas das falas dos personagens remontam a outras épocas, ligadas às insurreições" (p. 111), sem realmente desenvolver o ponto. A análise, aqui, parece se tornar inviável, na medida em que a estética do teatro se pauta em estratégias diferentes daquelas que são mobilizadas na narrativa. São apresentadas, na "Introdução", duas justificativas para esse hibridismo genérico. De um lado, a escolha de gêneros diversos para compor o corpus tornaria o trabalho "coerente com as teorias modernas que defendem a abolição das fronteiras entre gêneros literários" (p. 14). De outro, "a representação identitária do Haiti, e de seus heróis (...), é delineada pelo fio histórico da revolução de Saint Domingue. Esse fio condutor permite-nos afirmar que, se as tomarmos cronologicamente, uma complementa, aprofunda ou expande a outra, como se a intenção de cada autor fosse dar continuidade à obra anterior" (p. 18). Depreende-se da segunda justificativa que o eixo de análise escolhido é antes temático-histórico e, nesse sentido, despreza as distinções formais tradicionais, para se interessar pelos diversos modos de apropriação política do acontecimento. A opção de Glissant e Césaire pelo gênero teatral, nesse sentido, como explica a autora (pp. 16-17), obedeceria à necessidade de criar uma consciência coletiva, de se aproximar do povo, o que, para os dois autores seria uma urgência naquele momento histórico.

Percebe-se um pequeno desequilíbrio no tratamento do corpus no que diz respeito à obra Monsieur Toussaint, de Glissant, que fica um pouco esquecida, em proveito das análises bem desenvolvidas e fundamentadas das outras obras que constituem o corpus principal. Algumas propostas teóricas esboçadas inicialmente, como "o conceito de discurso 'estereótipo'", de Homi Bhabha (p. 15), não são retomadas no momento da análise do corpus. Entretanto, isso não prejudica de fato esse trabalho, marcadamente glissantiano, que nunca perde de vista seu apoio teórico principal. A começar pela proposta metodológica da autora: "associ[ar] o tempo ficcional com o tempo histórico" (p. 18) que se encontra em perfeito acordo com a epígrafe do primeiro capítulo, ponto de partida para a reflexão. No fragmento escolhido, Glissant propõe o resgate do passado através de uma "visão profética", ou seja, poética, única possibilidade, segundo ele, de restituir a uma comunidade uma história ocultada pela história oficial. O que nos parece mais relevante porém é que o próprio argumento desenvolvido na tese se constrói na esteira do pensamento do autor antilhano. A noção de Relação, tal como foi exposta em Poétique de la relation (1990), inspira o diálogo entre as distintas formas de apropriação de um acontecimento emblemático, "os projetos poéticos e políticos se entrecruzam, num verdadeiro processo de relação, de rizomas, na medida em que conceitos ou noções iniciais se completam e aprofundam"(p. 147). Também outra noção glissantiana, a de Détour (Desvio), pode iluminar o fato de todos esses autores reescreverem, cada qual a seu modo, a Revolução haitiana como mediação para pensar suas questões identitárias particulares, se opor às interpretações e projetos existentes e propor novas soluções. Assim, como explica a autora, duas visões políticas se confrontam nas peças de Césaire e de Glissant. Na primeira, o personagem Toussaint Louverture é "um mártir, um herói vítima, que acertou nas suas tomadas de decisões 'de circunstância'" (p. 150), interpretação que não deixa de ser uma justificativa para a decisão política do próprio Césaire em aceitar a Lei de Departamentalização da Martinica (1946), fazendo dos habitantes da ilha cidadãos franceses. Em Monsieur Toussaint, a crítica ao protagonista se transforma em mediação para criticar a própria decisão de Césaire, construindo a figura de "um dirigente confuso" (p. 151). Glissant propõe que só uma reflexão coletiva pode levar a uma saída, o que teria de passar forçosamente pelo reconhecimento de uma identidade marcada pela heterogeneidade, pela convergência de várias matrizes. Essas observações permitem ver que, nesse trabalho, o eixo teórico que se elegeu preferencialmente, o pensamento de Glissant, funciona efetivamente como elemento estruturador e argumentativo.

A tese de Maria Helena Valentim Duca Oyama, pela relevância do tema, pela abrangência da proposta, pela escolha do corpus, pela leitura crítica das obras, pela documentação e fundamentação teórica, nos parece constituir um texto de referência para pesquisadores que desejem explorar as questões identitárias e as manifestações estéticas caribenhas.

Revista Alea : Estudos Neolatinos

Cabe ao palco o que é efêmero, à literatura o que é eterno


Cabe ao palco o que é efêmero, à literatura o que é eterno

Mirna Spritzer
UFRGS


Um estudo de Roberto Zucco, peça teatral de Bernard-Marie Koltès. Fernanda Vieira Fernandes (Dissertação de Mestrado em Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras, Instituto de Letras, UFRGS, 2009. Orientador: Robert Ponge).

A presente Dissertação é oportuna e apropriada sob muitos aspectos. Ela apresenta um mergulho profundo sobre uma obra, seu autor, contexto e possibilidades. E este é um de seus grandes trunfos. Ao quase esgotar o estudo sobre a obra, ao contrário, ela abre um profícuo caminho de possibilidades para quem quiser estudar Koltès, suas peças e o panorama do teatro contemporâneo. Ou ainda, para quem desejar encontrar neste trabalho um exercício modelar de abordagem do texto teatral seja como estudo literário, seja como estudo da cena contemporânea.

A autora faz um trabalho bastante similar ao do Dramaturg (no Brasil chamado Dramaturgista), figura criada na Alemanha e que se espalhou por inúmeras realizações teatrais, que é o elemento designado a tratar de tudo que diz respeito à obra dramatúrgica, aplainando os caminhos para a encenação. Ou provocando, questionando e inquietando.

A escrita equilibra as exigências acadêmicas de um texto correto, estruturalmente bem desenhado e repercutindo uma pesquisa feita com rigor, e a paixão vislumbrada a cada momento, da atriz encantada com o objeto de seus estudos.

A leitura do trabalho é encantadora, reveladora e inquietante. Fazemos o caminho que ela nos propõe: conhecer o fascinante Koltès, imaginar sua África, seus temores, suas doenças, seu mundo para então conhecer o irresistível Zucco, adocicado pelo autor e pela autora, para nos provocar ainda mais. Queremos subir ao telhado e nos (des)equilibrarmos ao sol, artistas que somos desejosos de voar para além de nossas raízes.

Há na leitura desta Dissertação um antigo prazer redescoberto, o do "trabalho de mesa",1 da aventura de se aproximar de um novo texto teatral, com tudo que ele nos traz de possibilidades. Estudar cena a cena, entender as intenções de cada palavra, tecer, a partir do texto, novas texturas de situações e emoções. E, portanto, uma ampliação da potencialidade de análise do texto dramático.

Logo de início, Fernanda aponta que seu estudo parte da opção de estudar o texto abrindo mão de verificar possibilidades de encenação e complementa: "A escolha de estudar o texto foi feita considerando que o espetáculo tem sua presença primordial, mas a riqueza da literatura dramática sem a verificação prévia dos efeitos na plateia não pode ser ignorada. Cabe ao palco o que é efêmero, à literatura o que é eterno" (p. 10).

Uma escolha acertada sem dúvida, pelos motivos apontados por ela. E também porque o texto nos oferece um prazer que ultrapassa a repercussão na cena. Ele existe por si, até porque na sua constituição está implícita a imaginação da cena. Há um prazer da palavra que se imagina falada, um prazer da rubrica vislumbrada, dos espaços, dos tempos. Durante algum tempo, o teatro contemporâneo abriu mão da palavra e do texto teatral. Era uma resposta a anos de submissão do espetáculo ao autor. Passada esta necessidade de se contrapor, o teatro redescobre a palavra concebida de todas as formas. E o texto escrito para a cena é novamente acreditado e valorizado como propulsor do acontecimento, um reconhecimento de que no seu interior pulsa a vida da encenação.

E aqui, em Roberto Zucco, como em toda obra de Bernard-Marie Koltès, temos o novo texto teatral. Que se liberta da ação linear, que se apropria da fragmentação da contemporaneidade.

Fernanda constrói o percurso da biografia do autor, trazendo aspectos fascinantes que mais adiante reencontraremos em sua dramaturgia. Como é o caso do profundo desejo de viajar que vários autores reconhecem em Koltès e que ele levará também a seus personagens. Não qualquer viajante, mas aquele para quem, como lembra Tomáz Tadeu da Silva,*1

a viagem proporciona a experiência do 'não sentir-se em casa' que, na perspectiva da teoria cultural contemporânea, caracteriza, na verdade, toda identidade cultural. Na viagem, podemos experimentar, ainda que de forma limitada, as delícias - e as inseguranças - da instabilidade e da precariedade da identidade.
Identidade precária ou a invisibilidade de Zucco. E como Fernanda afirma mais adiante, também do autor que amava a errância e ridicularizava a ideia de se ter raízes.

Zucco é um itinerante, em fuga, em viagem. Da mesma forma que o ator é este "viajante". O ator oferece sua bagagem para vestir qualquer personagem. O provisório e o transitório no ofício do ator de teatro referem-se ao seu corpo instrumento, o lugar de muitas identidades, quase todas transitórias. E à ação no tempo presente, e, portanto provisória, qualidade fundamental do teatro.

Peter Brook,*2 encenador fundamental do século XX, trabalha com a noção de precariedade no que diz respeito à ideia de construção. Refere-se ao senso comum em teatro relacionado à construção do personagem. Para ele, o personagem não pode ser erguido passo a passo como uma parede. Ao contrário, o personagem deve nascer e não ser construído, já que o papel construído é sempre o mesmo e a cada noite se desgasta. É este ator talhado para viver Zucco, que renasce a cada cena, ou estação como nos apresenta Fernanda.

Adiante, a autora enfatiza a relação de Koltès com os clássicos. Em especial Dostoiewski e Shakespeare. No caso de Shakespeare, na abertura de Roberto Zucco já nos deparamos com os dois guardas conversando e logo associamos com Hamlet, de Shakespeare. Se lá há um espectro do rei e se discute sua aparição, aqui temos Zucco se equilibrando pelo telhado, ele também de certa forma um espectro uma vez que os guardas não o veem. Em vários momentos do trabalho, Fernanda nos aponta referências a Shakespeare. Se fizermos uma leitura com este único objetivo encontraremos inúmeras possibilidades. É como se Koltès necessitasse antes apropriar-se dos clássicos reinventando-os, para então ousar sua própria escritura.

Um aspecto interessante marcado por Fernanda é a relação do dramaturgo com a iluminação. Suas construções revelam indicações precisas sobre a luz da cena. Percebe-se em Zucco, um jogo interessante entre luz e sombra, entre claro e escuro. Determinadas situações necessitam de uma luz singular para que aconteçam. E assim evidencia-se um olhar debruçado sobre as palavras, mas que jamais perde de vista a cena.

Há um intenso estudo das passagens de cena em termos de sua localização e do momento em que ocorrem. É um minucioso exercício de observação e reflexão, como se a autora tentasse compreender os motivos do autor para sua determinação. Como por exemplo:

A cozinha da casa da garota e a delegacia, que deveriam ser lugares tranquilos e seguros, não o são. Por sua vez, o Petit Chicago deveria ser uma zona de risco, por onde circularia a escória da sociedade. Pelo contrário, a realidade se mostra outra: o bairro é calmo e suas dependências acolhem aqueles que ali chegam em busca de consolo ou abrigo. (p. 51)
Quando reconhece no espaço um determinante da ação e mesmo das relações entre as personagens, ela está reconhecendo no texto aquilo que é caro ao teatro e devolvendo a ele uma análise que o amplia.

É um tipo de informação que em termos da literatura revela intenções, propõe hipóteses e faz articulações entre as características dos personagens e sua ação no espaço. Em termos de teatro, traça um mapa do andamento da ação fazendo-nos compreender que estamos diante de uma composição singular, de uma dramaturgia que fragmenta e quer desenhar o mundo contemporâneo através da sua estrutura.

Assim, Fernanda nos mostra um dramaturgo que, além de escrever com maestria sobre a alma de seu tempo, explora a capacidade do teatro de ir a muitos lugares em pouco tempo, de cambiar espaços sem sair do espaço do palco, sem compromisso com o realismo, como no caso do cinema que exige locações.

Em Personagens, vemos esmiuçados o caráter e a imagem dos personagens, agrupando-os, incluindo, separando, fazendo novos conjuntos. Mais uma vez podemos imaginar como este material reagiria nas mãos dos artistas do palco. Pois, assim como Koltès, Fernanda é do teatro. E é seu olhar cênico que guia a trajetória da dissertação. Como está dito no texto do trabalho: "Somente no palco Koltès pôde criar os universos que desejava propor, desenhando o real sem confundir-se com ele, pois o teatro não passa de convenção." (p. 90)

Fernanda nos demonstra em vários momentos que, para Koltès, a ação está em lugar da motivação dos personagens. Eles agem. E falam. Personagens que se constroem na fala, na linguagem. Não se trata apenas de construir um texto vocalizado organicamente, mas em criar condições em que a fala signifique mesmo a existência do personagem. Como Fernando Pessoa,*3 que diz, "desde que vivo, narro-me".

Brecht,*4 apresenta seus personagens na medida em que agem em relação aos outros:

A aprendizagem de cada ator deve-se processar em conjunto com a dos outros atores, e, da mesma forma, a estruturação de cada personagem tem de ser conjugada com a das restantes. É que a unidade social mínima não é o homem, e sim dois homens. Também na vida real nos formamos uns aos outros.

Koltès, segundo Fernanda, também afirma através de seus personagens que eles estão no centro do confronto de forças e choques entre eles, ou seja, que eles se constituem na relação com o outro.

Ainda que o trabalho não siga até a encenação, nos são apresentados vários aspectos que denunciam a profunda teatralidade na obra de Koltès, como a presença do coro, recriado, ou as estações como no teatro medieval.

A seguir, a autora elege autores contemporâneos e os apresenta ao seu leitor para comentar, concordar ou contrapor traços do trabalho de Koltès já delineados por ela. São vozes reconhecidas e respeitáveis que, ao seu lado, nos deixam mais fascinados pela figura singular do autor e a dimensão de sua obra. Ainda aqui, a forma com que a Dissertação está construída auxilia sobremaneira o caminho que vamos trilhando na descoberta de Bernard-Marie Koltès, Roberto Zucco e a nós próprios nesse emaranhado que nos é designado como mundo em que habitamos.

Salienta-se ainda o anexo, em que se desenha um panorama histórico do teatro francês do final do século XIX até o Nouveau Théâtre. Uma excelente contribuição incluída no trabalho de maneira a compreender a inserção da obra de Koltès no contexto da criação artística.

Jorge Larrosa*5 discute as questões e relações entre leitura e formação. Diz o autor que pensar a leitura como formação implica perceber não apenas o que o leitor sabe, mas aquilo que ele é, sua subjetividade. A leitura como algo que nos forma e transforma, que nos põe em questão, como algo que nos constitui. Ao mesmo tempo, ver a formação como leitura implica pensá-la como uma relação de sentido, como se tudo o que nos acontece pudesse ser considerado um texto, algo que põe em alerta nosso sentido de escuta. Ou seja, não importa somente o texto, mas a relação com o texto.

Ao estudar com tamanha profundidade o texto de Roberto Zucco, Fernanda nos oferece a possibilidade de, como ela mesma diz, reter um processo de criação no teatro. Se o espetáculo não permanece para além da memória de quem o viu, o texto literário fica, ainda e sempre, exposto a quem o quiser ler ou traduzir para o espaço da cena.

*1 (SILVA, Tomaz Tadeu. "A produção social da identidade e da diferença". In: SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Identidade e Diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000: 88.)
*2 (BROOK, Peter. O teatro e seu espaço. Petrópolis: Vozes, 1970.)
*3 (PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. São Paulo, 1999: 501)
*4 (BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978: 123)
*5 (LAROSSA, Jorge. La experiência de la lectura. Estúdios sobre literatura e formación. Barcelona: Laertes, 1996.)
1 Tipo de ensaio em que direção e elenco trabalham sobre o texto dramático e sua análise, antes de partir para a prática no palco.

Revista Alea : Estudos Neolatinos

Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano

BRONCKART, J. P. (2006). Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Campinas: Mercado de Letras

No início do século XXI, emergiram vários trabalhos tratando de questões relacionadas à linguagem e ao trabalho. Nessa perspectiva, em especial na área da Lingüística Aplicada, os estudos da atividade profissional docente passam a ocupar um lugar de destaque, o que pode ser evidenciado por publicações em periódicos (GERALDINI e MARTINS FONTES, 2004; MACHADO e ABREU-TARDELLI, 2005; MAZZILLO, 2005), anais de congresso (MACHADO e CRISTOVÃO, 2005) e coletâneas (SOUZA-E-SILVA e FAÏTA, 2002; MACHADO, 2004; FAÏTA, 2005). De maneira especial, estamos fazendo referência a textos que exploram o trabalho do professor e o papel da linguagem em constituir essa atividade profissional e suas relações sociais. Nesse sentido o livro que ora apresentamos vem justamente especular as relações entre práticas de linguagem, atividade e ação.

A obra Atividade de Linguagem, discurso e desenvolvimento humano, organizado por Anna Rachel Machado e Maria de Lourdes Meirelles Matencio, traz oito artigos publicados ao longo dos últimos 10 anos, traduzidos e organizados em um volume, que ilustram as maiores orientações do Interacionismo Sociodiscursivo (doravante ISD) desenvolvido por Bronckart e seus colaboradores. Trata-se do primeiro livro com textos de Bronckart publicados no Brasil após sua obra Atividade de linguagem, textos e discursos de 1997, lançada em português em 1999.

O ISD, inscrito no movimento do interacionismo social, adota três princípios gerais: 1) a problemática da construção do pensamento humano consciente deve ser tratada paralelamente à construção do mundo, dos fatos sociais e obras culturais; os processos de socialização e individuação são vertentes indissociáveis do desenvolvimento humano; 2) os questionamentos das Ciências Humanas devem apoiar-se na filosofia (de Aristóteles a Marx) e preocupar-se ao mesmo tempo com questões de intervenção prática; 3) as problemáticas centrais de uma ciência do humano implicam relações de interdependência entre os aspectos psicológicos, cognitivos, sociais, culturais, lingüísticos, e também os processos evolutivos e históricos.

Para o ISD a problemática da linguagem é central ou decisiva para a ciência do humano e considera que os signos linguageiros estejam na origem da constituição do pensamento consciente. O ISD procura demonstrar que as práticas de linguagem situadas são os maiores instrumentos do desenvolvimento humano, tanto sob o ângulo do conhecimento e do saber como em relação às capacidades de agir e da identidade das pessoas. A construção das capacidades cognitivas resulta de um processo inicialmente marcado pelo sócio-cultural e pela linguagem.

Bronckart iniciou seus estudos filiando-se a diversas correntes de pensamento, entre as quais o behaviorismo de Skinner, a Gramática Gerativa de Chomsky, e as idéias de Vygotsky, Luria e Leontiev (às quais aderiu firmemente). Embora tenha depois rejeitado o behaviorismo, conservou a higiene metodológica dessa corrente, o que se reflete em seus trabalhos com os textos.

Numa segunda fase, Bronckart integrou o Centro Internacional da Epistemologia Genética, realizando estudos estritamente piagetianos. Tentou conciliar a perspectiva de desenvolvimento de Piaget com a abordagem estrutural de Chomsky em suas pesquisas, mas essas referências teóricas não se mostraram pertinentes para seus estudos. Percebeu, então, que necessitava de um quadro textual global, o que o fez entrar em contato com a obra de Bakhtin, iniciando um debate permanente com Jean-Michel Adam e seus trabalhos.

Em seguida, após 1973, Bronckart ministrou um curso de Lingüística destinado aos formadores e professores da escola Primária de Genebra e obteve um posto de professor de "Psicopedagogia das Línguas". Entre seus colaboradores estavam Daniel Bain e Bernard Schneuwly. Desta fase e de suas preocupações didáticas se originou o projeto do ISD propriamente dito. Nas fases iniciais, os trabalhos consistiam em criar e testar seqüências didáticas e elaborar paralelamente um modelo teórico capaz de sustentar e esclarecer questões práticas. Bronckart e seus colaboradores reexaminaram a abordagem de Vygotsky, a obra de Saussure, o papel da apropriação dos signos na emergência da consciência humana, e começaram a estudar os efeitos produzidos pela matriz dos gêneros textuais e dos tipos de discurso sobre o desenvolvimento humano, nas suas dimensões epistemológicas e praxiológicas.

O primeiro artigo do livro, As unidades de análise da psicologia e sua interpretação, apresenta a posição do ISD em relação à problemática do desenvolvimento humano por meio da confrontação dos aportes respectivos do interacionismo social de Vigostky e do construtivismo de Piaget. O autor entende que os princípios explicativos do humano se situam na construção do social e do semiótico, sendo que o comportamento só se explica pela construção e pela evolução das organizações sociais.

O artigo Ação, discurso e racionalização: a hipótese de desenvolvimento de Vygotsky revisitada (capítulo 2) é um reexame das propostas psicológicas de Vygotsky e de seu quadro epistemológico. Nessa análise Bronckart critica, entre outras coisas, a ausência de uma verdadeira conceitualização praxiológica (apoiando-se principalmente nas teorias de Anscombe, Habermas e Riccouer), enfatizando o papel decisivo da atividade de linguagem na construção das próprias ações e dos conhecimentos declarativos. Critica a hipótese de Vygotsky de que os desenvolvimentos da inteligência prática e da linguagem na criança se dêem de forma separada, e de que só haja uma convergência de ambos após 15/18 meses de vida. Para Bronckart, a criança é imediatamente imersa em um mundo de pré-construídos sociais que mediatizam suas relações com o meio ambiente e constroem suas primeiras imagens mentais.

O artigo A análise do signo e a gênese do pensamento consciente (capítulo 3) consiste em uma tentativa de demonstração dessa hipótese, que se articula com um reexame empírico dos dados analisados por Piaget em La formation du symbole. Bronckart apóia-se em Saussure, em sua análise da natureza do signo lingüístico, ao comentar sobre as quatro propriedades dos signos (seu caráter imotivado, radicalmente arbitrário, discreto e dinâmico) e mostra como a interiorização dessas propriedades pela criança transforma a organização psíquica que emerge do estado sensório motor.

O artigo Os gêneros textuais e os tipos de discurso como formatos das interações propiciadoras de desenvolvimento (capítulo 4) apresenta as teses centrais do ISD em relação aos estatutos da linguagem, dos gêneros textuais e dos tipos de discursos, bem como o papel desempenhado pelos últimos no processo do desenvolvimento humano. Bronckart apóia-se em diversos referenciais teóricos, tais como a filosofia marxista, as correntes da física dinâmica, as abordagens de Volishinov, de Fregue, Saussure e Wittgenstein. O modelo de arquitetura textual proposto pelo ISD coloca no centro as unidades lingüísticas, chamadas de tipos de discurso, as quais dão conta dos diferentes mundos discursivos que podem ser construídos e combinados nos textos. São essas unidades macrossintáticas de base que se aplicam aos diversos mecanismos de textualização (conexão e coesão) e de enunciação (vozes e modalização). Mas a utilização do termo discurso traz um problema, na medida em que o mesmo termo se aplica a numerosos outros quadros teóricos. O autor prefere, dessa forma, designar discurso como a atividade da língua em contexto, por oposição às dimensões do sistema da língua e aos textos concretos que são produtos dessa atividade.

O capítulo 5 - Questões em jogo e problemas da nossa análise do discurso - apresenta os argumentos que fazem o ISD adotar e a manter essa acepção do termo discurso, apesar dos problemas de compreensão que possam advir.

Os próximos três artigos são mais centrados nas questões da educação e da intervenção formativa. No capítulo 6, As condições de construção dos conhecimentos humanos, Bronckart analisa os três conceitos de desenvolvimento que exercem maior influência na educação: a tradição escolástica e sua reformulação parcial dentro do quadro das abordagens behavioristas; o modernismo, proveniente de Comenius, desenvolvido pelos promotores da Nova Escola, ou da Educação Ativa, apoiada pela psicologia do desenvolvimento de Piaget; e a abordagem sócio-cultural herdada de Vygotsky e do interacionismo social. Faz uma análise do conceito de competências e suas implicações político-ideológicas e propõe uma releitura dessa noção, introduzindo uma ênfase em sua dimensão dinâmica. Centra-se também nas abordagens relevantes da análise do trabalho e anuncia as razões que levaram o ISD a se integrar a esse movimento, apresentando as grandes linhas de pesquisa nessa perspectiva.

O capítulo 7, Porque e como analisar o trabalho do(a) professor(a), apresenta três situações de trabalho com a finalidade de: analisar as características comportamentais e de linguagem do trabalho real; as representações dessa atividade de trabalho pelas instituições e as pessoas implicadas; e os efeitos formativos e/ou de desenvolvimento potenciais dessas análises interpretativas da atividade. Utilizam-se conceitos e métodos da ergonomia, sendo apresentados, em seguida, os princípios que orientam tal pesquisa, bem como os principais conceitos utilizados para interpretar os dados coletados. São resumidos, enfim, alguns resultados obtidos, que confirmam por um lado as diferenças entre o trabalho prescrito e o trabalho realizado, e as dificuldade de se conduzir uma pesquisa que revela o cotidiano dos professores.

O capítulo 8 - Entrar em acordo para agir e agir para entrar em acordo - faz uma análise histórica dos conflitos entre pesquisas de base e pesquisas aplicadas, que marcaram as Ciências Humanas e Sociais, e traz um conjunto de reflexões sobre o estatuto das Ciências da Educação e das intervenções formativas. O autor entende que é importante analisarmos as ações e os discursos produzidos no quadro das intervenções, por um lado, e por outro tomarmos "consciência das propriedades, da problemática e dos efeitos dessas produções acionais e textuais" (p.255). Essa análise e tomada de consciência em si, embora importantes, não constituem um objetivo final de formação. É preciso ir além, se quisermos fazer frente à economia capitalista globalizada, repensando o futuro à luz de outros critérios e valores.

A coletânea do autor tem como título Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano, mas, no entanto, Bronckart opta por utilizar a expressão atividades de linguagem (ao invés de discurso) para designar "a operacionalização da linguagem por indivíduos em situações concretas" (p. 140). O termo discurso aparece no texto para referir-se a atividades de linguagem, enquanto que tipos de discurso estão relacionados a modalidades do agir da linguagem, que são expressas por meio de quatro formas lingüísticas relativamente estáveis: discurso interativo, teórico, relato interativo e narração. Os capítulos deste livro não contemplam as relações de poder no discurso e não discutem seu caráter ideológico, embora, conforme o autor, o objeto da educação seja constituído por "intervenções formativas deliberadas" (p.255), o que, no nosso entender, envolve essas questões. Consideramos que o agir humano (tema central do livro) seja permeado pela ideologia e por relações de poder, que influem inclusive nas escolhas dos gêneros textuais a serem utilizados nas interações sociais. O autor, no entanto, não deixa claro o que entende por ideologia e sua relação com o agir.

O livro cumpre o objetivo de apresentar um panorama dos princípios que subjazem ao interacionismo sociodiscursivo detalhando a especificidade da linguagem ser central nessa ciência do humano. Como explicitado na introdução, "o ISD visa demonstrar que as práticas linguageiras situadas (ou os textos-discursos) são os instrumentos principais do desenvolvimento humano, tanto em relação aos conhecimentos e aos saberes quanto em relação às capacidades do agir e da identidade" (p.10). A organização da obra procura discorrer sobre os construtos necessários para a compreensão dessas propostas, pressupondo leituras prévias em áreas como a lingüística, a filosofia, a psicologia da linguagem. Assim, acreditamos que o livro se destina àqueles realizando estudos e/ou pesquisas dentro de uma perspectiva sócio-histórica com vistas a análises lingüístico-discursivas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRONCKART, J. P. (2006). Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Campinas: Mercado de Letras.
FAÏTA, D. (2005). Análise dialógica da atividade profissional. Rio de Janeiro: Express Editora.
GERALDINI, A. F. S. ; FONTES, M. C. M. (2002). Ações docentes em meio digital: uma proposta sócio-interacionista. Calidoscópio, São Leopoldo, v. 02, p. 97-105.
MACHADO, A. R. (org.) (2004). O Ensino como Trabalho: uma abordagem discursiva. Londrina: EDUEL.
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SOUSA-E-SILVA, M. C. P. de; FAÏTA, D. (orgs.) (2002). Linguagem e Trabalho: construção de objetos de análise no Brasil e na França. São Paulo: Editora Cortez.

Francisco Carlos Fogaça
Vera Lúcia Lopes Cristóvão
Trabalhos em Linguística Aplicada - UNICAMP

domingo, 18 de julho de 2010

Uma história do corpo na Idade Média


As tensões no/do corpo medieval
por Fernanda Luzia Lunkes*


Resenha:
LE GOFF, J. TRUONG, N. Uma história do corpo na Idade Média. [Tradução de Marcos Flamínio Peres. Revisão técnica de Marcos de Castro]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006 (207 p.)

A concepção do corpo, o lugar que ocupa na sociedade e sua presença no imaginário sofreram modificações com o decorrer da história, e Le Goff e Truong entendem que há uma grande lacuna histórica no que se refere ao corpo na Idade Média. A escolha deste período histórico, para os autores, deve-se, entre outros fatores, ao fato de que a Idade Média provocou uma revolução nos conceitos e nas práticas corporais desde o triunfo do cristianismo, nos séculos IV e V; porque a Idade Média aparece como a matriz do nosso presente mais do que qualquer outra época, ajudando-nos a compreender melhor nosso tempo, tanto por suas convergências surpreendentes como por suas irredutíveis divergências; porque é na Idade Média que as instituições farão uso das metáforas do corpo e o irão modelar.

Os autores partem da hipótese de que algumas “técnicas” vão traçando uma história para e no corpo, e que mesmo a vergonha, o constrangimento e o pudor têm uma história. É necessário, portanto, sair de uma perspectiva natural desses acontecimentos para um olhar político sobre o “civilizar o corpo”. E mostrar suas tensões na Idade Média, o qual era “glorificado e reprimido, exaltado e rechaçado” (p. 29), das quais o cristianismo foi um dos grandes responsáveis.

No primeiro capítulo, “Quaresma e Carnaval: uma dinâmica do Ocidente”, os autores mostram como a Igreja buscava controlar os gestos corporais. O esperma e o sangue eram repugnados. Houve um intenso trabalho da Igreja no sentido de estabelecer a diferença entre o sangue de Cristo e o sangue “impuro” dos homens, inclusive o sangue menstrual da mulher. O sexo era controlado até mesmo entre os casais, cujo objetivo único era o de procriar. No entanto, citando Paul Veyne e Michel Foucault, os autores explicam que já havia um ‘puritanismo da virilidade’ antes da guinada decisiva do alto Império Romano (séculos I-II) em direção ao cristianismo. De alguma forma, o cristianismo foi o operador de uma reviravolta que já vinha sendo preparada, a qual condenava a luxúria, a gula e o excesso de bebida e de alimentação. O corpo, simbolicamente, era atravessado pela tensão entre o jejum sexual e alimentício da Quaresma com os excessos do Carnaval. Para os autores, no entanto, esta tensão estendia-se a todos os níveis do corpo.

O cristianismo também operou outra reviravolta: o choro e as lágrimas tornaram-se uma dádiva, uma renúncia da carne e que compensava o que era proibido, ou seja, os líquidos relacionados ao “pecado”. O riso, por sua vez, passou a ser relacionado ao demônio. Com o corpo dividido entre cabeça/espírito e ventre/carne, o riso foi silenciado dos séculos IV ao X, aproximadamente.

O segundo capítulo, “Viver e morrer na Idade Média”, aborda o desinteresse pelo amor. O amor não era um fundamento da sociedade medieval. A palavra, inclusive, significava paixão devoradora e selvagem. Na Idade Média desenvolveu-se um erotismo animalizado, cuja presença de floresta e de campos na sociedade moldou a realidade e o imaginário social, o que foi bastante combatido pela Igreja.

À época medieval também não interessavam a mulher grávida e a criança. Este quadro mudou quando a Igreja passou a promover o nascimento de Jesus, dando ao sacramento do batismo, um gesto corporal, um imenso valor. Foi a figura do pai que sofreu um declínio, desaparecendo também das representações artísticas da Natividade.

Como a expectativa de vida era baixa, a velhice era objeto de uma tensão “entre o prestígio da idade e da memória e a malignidade da velhice, a feminina em particular” (p. 104). A doença também não escapava à relação entre corpo e espírito. Nesta imbricação houve muita polêmica, porque havia os que defendiam a doença ligada ao corpo e aqueles que viam a doença como um castigo pelos pecados. Por isso, em geral, os milagres atribuídos aos santos são milagres de curas.

E neste sentido, a Igreja foi uma “crítica teórica da novidade” (p. 114). A medicina buscava meios para atenuar os sofrimentos físicos, mas mesmo assim permaneceu bastante estagnada, porque era inaceitável considerar o corpo sem a alma. A medicina era antes uma medicina da alma. Houve, todavia, importantes inovações técnicas, principalmente na área cirúrgica.

Foi a partir do tratado “dos cuidados devidos aos mortos”, de Agostinho, escrito em 421 e 422, que a Igreja inaugurou sua “carta funerária para o Ocidente” (p. 121). A Igreja passou a se encarregar dos mortos, ritualizando e regulamentando a morte. A morte passou a ser individualizada.

A presença dos mortos ganhou muitos significados na Idade Média. As narrativas com espectros passaram a ser difundidas pela Igreja após serem acusadas de supersticiosas e pagãs. O discurso cristão passou a apresentar o corpo dos mortos glorificado juntamente com a alma. Houve a redenção do corpo morto que era desprezado em vida. Mas uma questão atormentou teólogos e provocou muita polêmica na Idade Média: os corpos dos eleitos ficarão nus ou vestidos no paraíso? Em geral optou-se pela nudez. Pela nudez codificada, civilizada. A partir da segunda metade do século XII, surgiu um terceiro lugar além do céu e do inferno: o purgatório, uma espécie de “sala de espera” para os pecadores comuns.

As piores descrições dos sofrimentos e dos castigos infernais eram corporais, principalmente a danação, que priva o condenado de ver a Santíssima Trindade. Diversificaram-se os suplícios e procurou-se adaptar o castigo à falta cometida. A Igreja tentou negar o corpo, mas pela necessidade de dar “visibilidade” ao inferno, deu forma e volume aos corpos, não os excluiu.

No terceiro capítulo, “Civilizar o corpo”, os autores falam sobre a criação, pelo cristianismo e pela sociedade de corte nascente, de uma instituição das boas maneiras. Abordam também os modelos alimentares herdados pela Idade Média: a civilização do trigo e a civilização da carne e quais as conseqüências no imaginário medieval. Uma delas, bastante relevante, foi que “no lugar da oposição entre a civilização do pão e a da carne, que separava a civilização dos antigos e dos bárbaros, aparece então a oposição entre pobres e ricos, que, de algum modo, se reveza com ela e a substitui” (p. 137). Esta preocupação fez surgir os livros de culinária entre os séculos XIII e XIV. O alimento se transformou em cultura e a cozinha em gastronomia, dando à refeição um caráter social, codificado, hierarquizado.

Os movimentos e os gestos corporais eram centrais na vida social na Idade Média, acentuando a tensão de uma sociedade na qual o corpo oscilava entre o glorificado e o desprezado. A nudez, por exemplo, encontrava-se no limiar entre a inocência anterior ao pecado original e a luxúria. Houve uma significação na passagem da nudez à roupa, principalmente nos personagens iminentes da sociedade, e a nudez tornou-se cada vez mais associada à selvageria. A beleza feminina dividia-se entre Eva, “a tentadora”, e Maria, “a redentora”, personagens que constituíram os pólos da beleza feminina na Idade Média.

Os esportes na Idade Média eram praticados, embora não apresentem “nem o caráter de referência à sociedade de organização institucional, nem as condições econômicas que foram as do esporte na Antigüidade ou quando de seu renascimento, no século XIX” (p. 149). Os exercícios físicos na Idade Média foram uma contribuição ao processo de civilizar o corpo.

No capítulo “O corpo como metáfora”, os autores mostram como na Idade Média se enraíza o uso da metáfora do corpo para designar uma instituição, seja na religião, na ciência, na literatura. Há um trabalho político em associar certos órgãos e lados com melhor e pior, superior e inferior. O coração tornou-se o lugar do sofrimento, por exemplo, enquanto o fígado foi associado às partes inferiores, vergonhosas. A mão repousou sobre uma grande tensão: representava a proteção e o comando ao mesmo tempo em que era um instrumento de penitência, de trabalho inferior.

O discurso político também se apropriou da metáfora do corpo, utilizada com mais entusiasmo no século XII, principalmente nos tratados. De modo geral, a cabeça foi associada a permanecer ou a se tornar líder do corpo político. A metáfora corporal estendeu-se também à cidade, cuja idéia é a da “necessidade solidária entre o corpo e os membros” (p. 172), representando um conjunto funcional de solidariedades das quais o corpo foi o modelo.

Le Goff e Truong conseguem abordar as práticas políticas institucionais com relação ao corpo e desconstruir noções cristalizados na sociedade atual. É certo que o corpo não foi ignorado por algumas instituições que, cientes de sua importância, tiveram o cuidado de controlá-lo, de civilizá-lo. A obra consegue, sem dúvida, atentar para um perigoso jogo político com relação ao esquecimento do corpo na história.

* Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Maringá. Integra os Grupos de Pesquisa CNPq: GELCE: Grupo de Estudos – UEM; NECOIM-Memória, Cultura, Oralidade e Imagem – UNB. E-mail: flunkes@gmail.com
Revista Espaço Acadêmico

Uma história do corpo na Idade Média


A história do corpo feminino e masculino no ocidente medieval*


Diogo da Silva Roiz

Professor do departamento de História da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Campus de Amambaí (em afastamento integral para estudos); doutorando em História pela UFPR (bolsa CNPq). diogosr@yahoo.com.br


O corpo está no centro de toda relação de poder. Mas o corpo das mulheres é o centro, de maneira imediata e específica (Perrot, 2005:447).

Deste modo, Michelle Perrot, em 1994, sintetizava as relações de poder que mediavam estreitamente os debates sobre "gênero" na Europa. Embora Jacques Le Goff apenas circunstancialmente houvesse tratado do assunto, com Uma história do corpo na Idade Média, escrito em parceria com Nicolas Truong, os autores ofereceram uma bela contribuição para o entendimento desse tema na civilização do ocidente medieval.

Não faz muito tempo, os estudos históricos se abriram para um conjunto de temas e objetos mais amplos. A ampliação das abordagens na pesquisa histórica tornou mais nítida a constatação de que as "grandes" mudanças teóricas e metodológicas da história são provenientes da renovação e da ampliação dos temas investigados.

No entanto, o problema, muitas vezes, está em operacionalizar adequadamente um procedimento de pesquisa à análise de certos objetos. Cada vez mais tem se demonstrado que certos problemas e certas abordagens são pertinentes para alguns temas, mas não para outros. Como tornar o assunto passível de ser inquirido e estudado pelo pesquisador é, neste caso, o problema fundamental. A partir dessas questões, os autores indicam a necessidade e justificam o propósito de estudarem o "corpo" na Idade Média européia.

Desde o início, os autores estavam preocupados em demonstrar que o corpo, enquanto objeto de pesquisa, constitui uma das grandes lacunas da história,

um grande esquecimento do historiador. A história tradicional era, de fato, desencarnada. Interessava-se pelos homens e, secundariamente, pelas mulheres. Mas quase sempre sem corpo (9). [Seria] preciso (...) dar corpo à história. E dar uma história ao corpo [por que] o corpo tem uma história [e a] concepção do corpo, seu lugar na sociedade, sua presença no imaginário e na realidade, na vida cotidiana e nos momentos excepcionais sofreram modificações em todas as sociedades históricas (10).

Por isso mesmo, a "história do corpo na Idade Média é (...) uma parte essencial de sua história global" (11), inevitável e indispensável para se compreender adequadamente a sociedade contemporânea, na qual o corpo tem, progressivamente, ganhado cada vez mais destaque na mídia.

Mas, tratando-se de um tema pouco estudado, embora justificável, como deve ser estudado o corpo na história das sociedades? Como o corpo foi pensado e visualizado na Idade Média? O que foi, portanto, o "corpo" para a sociedade do ocidente medieval?

Para os autores, primeiro, o corpo foi o resultado de uma das várias tensões vividas no período, porque a "dinâmica da sociedade e da civilização medievais resulta[va] de tensões" (11). E uma das principais tensões no período "é aquela entre o corpo e a alma". De um lado, é fruto da benção e da glorificação, principalmente religiosa (quando se trata do corpo de Cristo), de outro, é "desprezado, condenado, humilhado". Isso porque "O corpo cristão medieval é de parte a parte atravessado por essa tensão, esse vaivém, essa oscilação entre a repressão e a exaltação, a humilhação e a veneração" (13). Segundo, e como conseqüência, as representações dos homens sobre as mulheres e sobre eles mesmos no período (que tinha na visão sua principal medida de sentido da realidade), acabavam sendo mediadas por "tensões" entre o material e o espiritual. Terceiro, para melhor compreender o período, os autores pensaram a Idade Média na sua divisão clássica - séculos V ao XV e XV ao XVIII -, e acreditam que suas principais características ainda estejam incidindo.

Portanto, o mais difícil para os autores foi como estudar o corpo, objeto praticamente "esquecido pela história e pelos historiadores", segundo apontam ao longo da justificativa do trabalho. Para eles, autores como Norbert Elias, Marc Bloch, Lucien Febvre, Michel Foucault e mesmo Jules Michelet, no século XIX, foram exceções à regra, abrindo caminhos, posteriormente trilhados por Ernest H. Kantorowicz (1895-1968), Mikhail Bakhtin (1895-1975), Michel de Certeau (1925-1986), Georges Duby (1919-1996), Paul Veyne, Peter Brown e Jean-Claude Schmitt. Os autores indicam ainda a importância dos estudos sociológicos (desde os produzidos por Émile Durkheim) e antropológicos (desde os pioneiros do século XIX). Ao demonstrarem sua dívida intelectual para com estes autores pioneiros, eles apontam que, ainda assim, o corpo continuou um objeto pouco estudado. Desse modo, ser investigado na Idade Média era também oportuno, não apenas por ser escassamente estudado, mas por que naquele período se concebeu muitos de nossos comportamentos. Com o "Cristianismo" houve uma reestruturação nos conceitos e nas práticas corporais e comportamentais daquela sociedade. Foi o momento de formação do "Estado" e das "cidades modernas", "de que o corpo será uma das mais prolíficas metáforas e cujas instituições o irão moldar". No plano cultural houve uma completa alteração no espaço urbano, que acabou redefinindo as próprias práticas religiosas, ao redimensionar o centro de poder do "campo" para as "cidades". Na Idade Média, "o corpo é o lugar crucial de uma das tensões geradoras da dinâmica do Ocidente" (31), porque, até então, era uma novidade. Por outro lado, pensar o corpo e a sua história é pertinente também para inquirir a sociedade contemporânea e sua revolução comportamental, sexual, gestual e corporal, acelerada a partir dos anos de 1960.

Para delimitarem melhor a pesquisa, os autores dividiram o trabalho em quatro capítulos. Os dois primeiros, mais densos e consistentes, discutem as conseqüências do carnaval e da quaresma, e de viver e morrer na Idade Média. Os dois últimos discutem como o corpo passou a ser sistematicamente "civilizado" e utilizado como uma "metáfora" para pensar outras questões e lugares. Para eles:

A humanidade cristã repousa tanto sobre o pecado original - quanto sobre a encarnação: Cristo se faz homem para redimir os homens de seus pecados. Nas práticas populares, o corpo é contido pela ideologia anticorporal do cristianismo institucionalizado, mas resiste à sua repressão (35).

A "tensão" entre um corpo feminino "diabolizado" e um corpo masculino "endeusado" ficaria latente no período, porque, de início, o corpo na Idade Média foi renunciado. Controlar a sexualidade feminina, seus gestos, suas práticas, sua conduta na sociedade passaria a ser uma questão mediada pela Igreja e aceita pela sociedade. Mesmo assim, o próprio corpo feminino, não deixou de também ter "tensões" entre o bem - procriação, virgindade de "Maria", castidade e cuidado com a família - e o mal - sexualidade, prostituição, luxuria e perversão da alma -, porque "o culto do corpo da Antiguidade cede lugar, na Idade Média, a uma derrocada do corpo na vida social" (37). Igualmente importante, foram os "tabus" construídos pela instituição religiosa sobre os fluidos corporais, como o esperma e o sangue. E

é possível afirmar que o corpo sexuado da Idade Média é majoritariamente desvalorizado, as pulsões e o desejo carnal, amplamente reprimidos (41) [principalmente, no discurso institucionalizado da Igreja].

(...) a religião cristã institucionalizada introduz uma grande novidade no Ocidente: a transformação do pecado original em pecado sexual. Uma mudança que é uma novidade para o próprio cristianismo, já que, em seus primórdios, não aparece traço algum de uma tal equivalência, assim como nenhum termo dessa equação figura no Antigo Testamento da Bíblia. O pecado original, que expulsa Adão e Eva do Paraíso, é um pecado de curiosidade e de orgulho (49).

No entanto,

A transformação do pecado original em pecado sexual é tornada possível por meio de um sistema medieval dominado pelo pensamento simbólico. Os textos da Bíblia, ricos e polivalentes, se prestam de bom grado a interpretações e deformações de todos os gêneros. A interpretação tradicional afirma que Adão e Eva quiseram encontrar na maçã a substância que lhes permitiria adquirir uma parte do saber divino. Já que era mais fácil convencer o bom povo de que a ingestão da maçã decorria da copulação mais que do conhecimento, a oscilação ideológica e interpretativa instalou-se sem grandes dificuldades (51).

Assim, não é por acaso que "a subordinação da mulher possui uma raiz espiritual, mas também corporal". Sendo ela "fraca", conforme lhe verá a Igreja,

a primeira versão da Criação presente na Bíblia é esquecida em proveito da segunda, mais desfavorável a mulher. [Com isso, da] "criação dos corpos nasce, portanto, a desigualdade original da mulhe [e ela] irá pagar em sua carne o passe de mágica dos teólogos, que transformaram o pecado original em pecado sexual. [Por outro lado] ela é subtraída até mesmo em sua natureza biológica, já que a incultura científica da época ignora a existência da ovulação, atribuindo a fecundação apenas ao sexo masculino (54).

Não foi sem razão que Georges Duby disse que essa Idade Média é "masculina", pois os discursos, além de serem escritos por homens, estavam convictos de sua superioridade, lembram os autores.

De acordo com os autores, a revanche do "corpo" martirizado pela Quaresma, que visava contornar o "paganismo" e sistematizar regras de conduta para homens e, principalmente, para as mulheres, estava nas práticas do Carnaval. A tensão entre a Quaresma e o Carnaval será também uma tensão entre vontade e liberação, regra e discórdia, bem e mal, homem e mulher, numa sociedade fundamentalmente rural (já que em torno de 90% da população vivia nos campos nesse período). As cidades só passaram a ter maior representatividade entre os séculos XII e XIV. Tensão semelhante aparece no "trabalho", entre o castigo e a criação. Os autores apontam que:

O corpo é separado entre as partes nobres (a cabeça, o coração) e ignóbeis (o ventre, as mãos, o sexo). Ele dispõe de filtros que podem servir para distinguir o bem do mal: olhos, orelhas e boca.

A cabeça está do lado do espírito; o ventre, do lado da carne. Ora, o riso vem do ventre, isto é, de uma parte má do corpo [não sendo por isso, visto com bons olhos pelos teólogos e, consequentemente, pela sociedade] (76).

Assim, o

Carnaval do coração se manifesta[va] sob a Quaresma do corpo. (...) O que não quer dizer que os homens e as mulheres da Idade Média não conheçam os arroubos do coração ou as folias do corpo, que ignorem o prazer carnal e a afeição pelo ser amado, mas o amor, sentimento moderno, não era um fundamento da sociedade medieval (97).

O desinteresse pela mulher na Idade Média aparece também no período de gestação, no qual a mulher grávida "não é objeto de nenhuma atenção particular". Essa desatenção perpassa todas as camadas da sociedade. Na velhice, a mulher também não será bem quista, em muitas ocasiões, por ser vista como "bruxa". De modo geral, a velhice feminina terá uma desatenção semelhante a da mulher grávida.

As doenças e o estado mental das pessoas durante esse período também sofrerá altos e baixos, vindo a ser ora motivo de aversão, ora de cuidados e de arrependimento:

(...) os homens da Idade Média podem recorrer a um outro médico além de Cristo. Pouco a pouco, os médicos da alma - os padres - se distinguem daqueles do corpo - os médicos -, que vão se tornar ao mesmo tempo sábios e profissionais, assim como uma corporação, um corpo de ofício. Surgem escolas de medicina, assim como universidades em que homens se formam em uma ciência que é considerada, sem dúvida, um dom de Deus, mas, igualmente, um ofício. Os médicos trabalham, pois, como profissionais pagos... (113).

Nesse sentido, as "tensões" da Idade Média não se limitavam apenas as questões corporais, mas estavam inevitavelmente ligadas a questões espirituais. O trato dos vivos com os mortos é um exemplo singular:

Desde a Antiguidade, com efeito, os vivos se ocupavam dos corpos dos membros de suas famílias. As mulheres, em particular, eram encarregadas de lavá-los, de prepará-los para juntarem-se ao reino dos mortos que, segundo a crença, retornavam às vezes para atormentar a alma dos vivos. Com o cristianismo, estabelece-se uma hierarquia entre os defuntos, sem colocar em questão as práticas herdadas do paganismo. Somente as sepulturas dos santos, danificadas e manipuladas de diferentes maneiras, podiam ser objeto de celebração e veneração. Reza-se para os mortos, é certo, mas com a intercessão de novos heróis, os santos (122).

É a conduta dos "vivos" que mediará seus destinos após a "morte". Aos que se comportaram adequadamente, o "Paraíso", aqueles que não, o "Inferno". Esse tipo de "horizonte" invadia o pensamento dos homens e das mulheres da Idade Média.

A dieta alimentar, o respeito às regras, o cultivo do espírito e a submissão à Igreja marcavam, assim, as expectativas dos homens e das mulheres. Desse modo, os cuidados com o nu, os excessos de alimentos, a "gula", as práticas corporais (particularmente, o sexo) e esportivas (a exibição do corpo em público) igualmente marcavam o tipo de conduta a ser respeitada. Durante a Idade Média, as normas quanto às condutas corporais não se limitavam apenas aos membros da sociedade, mas também faziam parte da própria organização das metáforas usadas para definir o espaço de convivência social, em especial, o das cidades.

As concepções organicistas das sociedades fundadas sobre metáforas corporais que utilizam ao mesmo tempo partes do corpo e o funcionamento do corpo humano ou animal em seu conjunto remontam à alta Antiguidade.

(...) O sistema cristão de metáforas corporais repousa sobretudo no binômio cabeça/coração. O que dá toda força a essas metáforas nesse sistema é o fato de que a Igreja, sendo comunidade de fiéis, é considerada um corpo do qual Cristo é a cabeça. Essa concepção dos fiéis como semelhantes a membros múltiplos, levados por Cristo à unidade de um só corpo, foi estabelecida por São Paulo (162).

Nessa medida, a metáfora corporal também será igualmente importante na definição da organização das cidades e da realeza, das funções do rei e de sua mediação entre a matéria e o espírito. Portanto:

A história do corpo oferece ao historiador e ao interessado em história uma vantagem, um interesse suplementar. O corpo ilustra e alimenta uma história lenta. A essa história lenta, que é, em profundidade, a das idéias, das mentalidades, das instituições e mesmo a das técnicas e das economias, esse interesse dá um corpo, o corpo (173).

Nesse sentido, o "corpo tem, portanto, uma história", o corpo foi o tema desta história escrita pelos autores. Resumido o enredo principal do livro, convém analisar alguns pontos. Primeiro, embora partam do suposto de que a abordagem cubra o período do século V ao XVIII, a interpretação privilegia os séculos X ao XIV. Segundo, por ser uma obra de caráter de síntese, e não monográfico, nem por isso deixa de ser oportuna a observação sobre as generalizações dos comportamentos femininos e masculinos para o período, sobre a maneira de controlar as vontades humanas por intermédio de um sistema de regras de conduta (elaborado e organizado pela Igreja) e das formas de representação dos corpos para toda a sociedade européia na Idade Média. Destaque-se ainda que, mesmo pouco explorado pela historiografia ocidental, a história do corpo mostra-se um tema rico e mais complexo do que supuseram os próprios autores, mesmo no que concerne ao período da Idade Média (Schmitt, 2007; Corbin, 2008). Deixando de lado as reservas, não há como negar os méritos e as contribuições desta obra, principalmente, por destacar as "metamorfoses", positivas e negativas, sobre as representações do corpo feminino e masculino, e suas tensões entre o material e o espiritual, na Civilização do Ocidente Medieval.

Referências bibliográficas

CORBIN, A.; VIGARELLO, G.; COURTINE, J-J. (orgs.) História do corpo. Petrópolis-RJ, Vozes, 2008.
PERROT, M. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru-SP, Edusc, 2005 [tradução: Viviane Ribeiro].
SCHMITT, J-C. O corpo das imagens. Ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Bauru-SP, Edusc, 2007.
* Resenha de LE GOFF, J.; TRUONG, N. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2006, 207p. [tradução: Marcos Flamínio Pires; revisão técnica: Marcos de Castro].

Cadernos Pagú

Freud não explica: a psicanálise nas universidades


O possível e o impossível: contingências do ensino da psicanálise na universidade

Ricardo de Sá

Psicanalista; membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica; professor do Departamento de Psicologia/UFF. ricodesa@terra.com.br

Freud não explica: a psicanálise nas universidades, organizado por Anna Carolina Lo Bianco. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006, 148 p.

O conjunto de artigos deste livro trata da delicada relação do discurso analítico com a universidade, partindo do pressuposto de que a função desse encontro não é a de explicar a psicanálise nem a de difundi-la para domínios mais amplos do que aqueles atingidos pela prática clínica. Assim sendo, de que modo e em nome de que é pertinente sustentar o ensino da psicanálise na universidade? São essas, basicamente, as questões que este conjunto de artigos se destina a responder.

Percebe-se que cada autor ilumina um ângulo do prisma multifacetado que se revela nesta relação. Certamente, não se trata de inserir a psicanálise na universidade para ensinar um saber que possa estar supostamente contido em seus conceitos. Isso introduz um impasse verdadeiro na prática do ensino da psicanálise que vemos perfilado ao longo dos artigos.

Escars, em " O leitor suposto" , entende que não é possível se pensar a transmissão da psicanálise sem lembrar que esta é operada sob transferência, visto que a posição de quem ensina determina a transmissão. Como efetuar, então, uma transmissão num dispositivo que privilegia o que há de universal no saber, ou seja, os predicados ao invés da enunciação do sujeito? Sua questão nos mostra que o ensino da psicanálise somente poderá atingir aquele que vier a recebê-lo a partir " de seu próprio inconsciente" . Sbano enfatiza o mesmo ponto, porém, valorizando a relação da psicanálise com a universidade hoje – um tempo em que a ciência e o capitalismo produziram efeitos incontestáveis. Seu reflexo mais contundente na universidade concerne ao fato de o professor não se responsabilizar mais pelos efeitos que seu endereçamento produz nos alunos. Zela apenas pela disciplina que ministra, corroborando, através da burocratização do ensino, a lógica do sistema de créditos que reduz a universidade a um posto de habilitação profissional. Mas, que efeitos essa mutação produz especificamente sobre o ensino da descoberta freudiana, dirigido aos alunos que ingressam hoje na universidade com suas dificuldades e resistências?

Para Julio de Castro, o ensino da psicanálise implica uma operação ética que lhe permite discernir duas dimensões que se articulam num perpétuo movimento de báscula: o ensino da psicanálise e a psicanálise do ensino. Ao nos conduzir às conseqüências dessa distinção, somos lançados mais uma vez à questão: o que se transmite do discurso analítico depende do ato de quem ensina.

Lo Bianco, baseando-se em Moisés e o monoteísmo (FREUD, 1938), utiliza a contraposição que ele estabelece entre uma tradição herdada e uma tradição comunicada para isolar o que é específico na transmissão analítica. Através dessa oposição, circunscreve o impasse do ensino da psicanálise na universidade. Se a intervenção analítica visa à emergência da verdade no real, torna-se incongruente com sua transmissão o recurso a um dispositivo que se apóia na comunicação de um saber. Para ela, a tentativa de fazer passar o saber recalcado no lugar da verdade ao lugar de agente visa positivar aquilo que é marcado pelo impossível.

Jeferson Pinto extrai dos impasses apontados por Lo Bianco alguns elementos que esclarecem a estrutura da relação do sujeito ao saber. O problema se impõe ao buscar ensinar uma prática que se funda na emergência singular do sujeito e que não encontra no saber universitário a possibilidade de uma formalização do caso-a-caso que a clínica exige. Por conta desta dissimetria, a psicanálise traz algo de novo para a universidade – uma posição " mais feminina" em relação ao saber. Ao tornar o sujeito mais afeito ao regime do contingente, ela possibilita fazer emergir uma verdade singular quando um saber se revela em fracasso.

Poli, ainda sobre a questão do saber, demonstra que essa intrincada relação universidade/psicanálise diz respeito, mais fundamentalmente, à ciência. As operações da ciência constituem o solo sobre o qual a psicanálise pôde emergir, na medida que a ciência foracluiu o que a psicanálise veio a recolher.

A que serve a psicanálise na universidade, uma vez que ela não depende desta para estar no mundo, posto que o trabalho de transmissão da qual ela depende é promovido e continua a ser realizado nas instituições analíticas? Isabela de Sá coloca a questão admitindo, porém, que a psicanálise não opera fora do mundo do qual ela tira suas conseqüências. Assim, ainda que saibamos que o discurso universitário é impróprio para a transmissão da psicanálise, não devemos esperar fazê-la operar apenas em um suposto território limpo. Na verdade, a psicanálise deve subverter o funcionamento universitário do sujeito mantido cotidianamente em nome da economia de seu próprio exercício.

Elizabeth Juliboni sustenta que o ensino de Lacan pôde transmitir a radicalidade da descoberta de Freud porque se estabeleceu como uma verdadeira barreira ao saber. Para tirar as conseqüências desta posição, ela percorre a teoria da linguagem de Lacan, destacando que é no fracasso inerente à comunicação que se inscreve um limite no interior da linguagem, sendo ele mesmo a causa que move a transmissão.

Por fim, o texto de Juliana Castro apresenta o cenário no qual está se desenrolando a globalização irreversível do ensino universitário e a conseqüente abolição do sujeito. Com a valorização da lógica empresarial e a adoção de instrumentos de gestão definindo protocolos de ensino, desaparece a heterogeneidade de lugares entre professor e aluno e a possibilidade de que o ensino seja transmitido a partir da transferência. Esta marcha progressiva dos fatos está a serviço da economia de responsabilização do sujeito, pois como alguém regulado por textos padronizadores, pronto a consumir um saber, poderá fazer-se sujeito a este saber?

Assim, encontramos em Freud não explica: a psicanálise nas universidades o questionamento do tema, porém, ao nos perguntarmos sobre as condições de seu ensino resta ainda interrogar em que implica entrar em contato com a descoberta de Freud pela porta da universidade.

Revista Ágora

Psicanálise interminável ou com fim possível?


Sobre um fim em análise

Irene Gondim GretherI; Alzira Costa de OliveiraII

IPsicóloga e psicanalista, mestre em Teoria Psicanalítica pela UFrJ e professora do Instituto de Psicologia e Psicanálise da Universidade Santa Úrsula. gigrether@yahoo.com.br

IIPsicóloga e psicanalista, mestre em Teoria Psicanalítica pela UFrJ, pós-graduada em Docência do Ensino Superior na Unicarioca e professora da Face-Bennett de Psicologia e Psicopatologia da Terceira Idade. costalzira@hotmail.com

Psicanálise interminável ou com fim possível?, de Theodor Lowenkron. Rio de Janeiro: Imago, 2007, 80 p.

Trata-se de uma obra que oferece uma contribuição decisiva para a transmissão da experiência psicanalítica. Tomando como base a narrativa clínica, o autor – um dos principais especialistas em psicanálise de nosso meio – utiliza-se, para cumprir seu objetivo, do recurso da transcrição de parte das sessões psicanalíticas realizadas com um dos seus pacientes durante seis anos. Seu estilo é preciso, num texto que por si só torna-se explicativo, e reúne os aspectos essenciais das consultas, permeados pela teoria e demonstrações práticas da mesma, o que torna acessível para o leitor, psicanalista ou não, conceitos bastante complexos, sem ser simplista.

Assim, ao apresentar o relato detalhado e envolvente do caso desse paciente, vai além do propósito terapêutico, no sentido de que se volta para a tríplice perspectiva da terapia, da investigação e do ensino, com base em sua sólida experiência como professor, pesquisador e clínico.

É importante ressaltar que tal obra é oferecida a nós por Theodor Lowenkron, um autor com experiência e competência para produzir um trabalho de significativa magnitude, uma vez que é, dentre muitos títulos, mestre e doutor em Psiquiatria pela UFrJ.

Inicia seu trabalho retomando um questionamento crucial para o campo da psicanálise, enquanto sustenta uma discussão importante sobre o fim da análise, em um contexto atual em que as análises intermináveis se configuram quase como uma lei.

Do ponto de vista clínico, trata-se de uma narrativa clínica bastante detalhada. Também por esse motivo é texto paradigmático, uma vez que essa modalidade de publicação cada vez mais fica escassa na comunidade analítica da atualidade. Isto, em oposição ao passado em que tais publicações eram costumeiras. Então, mais um motivo para se saudar a obra de Lowenkron como um resgate precioso na transmissão do campo teórico e clínico da psicanálise.

Seu relato ainda se faz sob a forma de um texto articulado a outras contribuições teóricas nesse campo, por meio de distintos olhares científicos, aproveitando-se assim da técnica da atenção flutuante, sob a forma de uma teoria flutuante proposta por ele, como a contrapartida do pesquisador analista; ou seja, busca enriquecer sua reflexão sobre o material clínico com autores que melhor possam contribuir para o entendimento das diferentes questões. Assim, autores como Winnicott, da escola inglesa e outros de origem francesa e norte-americana, são citados na abordagem teórica em diferentes etapas do trabalho. Dentre esses autores diferenciados, identifica-se no texto mais as semelhanças entre eles do que suas diferenças, quando o autor sempre oferece um gancho teórico apresentando assim uma postura voltada para o campo clínico, com enfoque para o processo psicanalítico e sua eficácia terapêutica.

Também somos convidados a valernos do uso da idéia da teoria flutuante em nossa clínica e também a acrescentar, se possível, outros aportes teóricos no exercício criativo de sua leitura.

O livro não esgota aí suas possibilidades já que reflete sobre a pesquisa em psicanálise, quando tal modalidade de prática teórica se torna cada vez mais rarefeita na comunidade psicanalítica. Mais uma vez o autor resgata a tradição freudiana na qual a experiência psicanalítica sempre serviu como fonte permanente da teorização em psicanálise.

Ao final, o autor apresenta suas considerações e conclusões. Enfatiza a importância do referencial teórico utilizado e ressalta ainda sua teoria flutuante, que torna essa obra uma demonstração viva que exemplifica e por isso auxilia no processo de esclarecer e habilitar o profissional de saúde no exercício da psicoterapia e, ao mesmo tempo, serve de estímulo e ajuda no enfrentamento de possíveis resistências, bem como no encorajamento para um estudo mais aprofundado dos conceitos fundamentais da psicanálise – e, em especial, o término da análise.

Considera que, embora Freud tenha marcado em sua teoria e prática a importância da investigação e da pesquisa, muitos de seus seguidores desconsideram que esse método se faça tanto na teoria quanto na prática. O professor Lowenkron vem reforçar deste modo que se revise essa definição da psicanálise para que ela possa continuar a considerar e estimular as pesquisas para o progresso desse saber no campo da saúde mental.

Referindo-se especificamente à avaliação da pesquisa clínica que deu origem ao livro, retoma as questões iniciais do estudo. Assim é que, em suas próprias palavras, ao decidir nomear a tese Psicanálise interminável ou com fim possível?, Lowenkron enfatiza o limite para o tratamento psicanalítico. Afirma que o objetivo da análise não é decifrar todas as peculiaridades do caráter humano em benefício de uma " normalidade" , também não se trata de exigir que a pessoa que foi completamente analisada esteja isenta das paixões ou de novos conflitos internos. Sendo assim, embora a análise tenha sua contingência intrinsecamente interminável e, sendo a experiência infinita para cada paciente – já que se impõe o interminável desejo –, isso não implica que a análise não deva ter concretamente um fim.

Para o principiante, os fatos relatados neste contexto científico e ao mesmo tempo numa forma literária – similar ao modelo que Freud utilizava em seus artigos sobre casos clínicos – possibilitam a oportunidade de acompanhar suas atividades psicoterápicas, nesta obra especificamente psicanalítica. Ao expor com generosidade sua prática, também nos é franqueado o espaço ético e clínico vivido tanto por Lowenkron como por seu paciente. Tal conduta acaba funcionando também como uma espécie de sala de consulta do psicanalista e sala de aula do professor e nos torna testemunhas de seu trabalho como pesquisador.

O livro constitui-se, assim, num exemplar único e indispensável para médicos, psicólogos, psiquiatras, psicanalistas, pesquisadores, demais trabalhadores de saúde mental e alunos de graduação das ciências humanas

Revista Ágora

Sublimação: clínica e metapsicologia


Sublimação: a lente da metapsicologia foca o alcance da clínica

Eurema Gallo de Moraes

Psicóloga. Psicanalista. Doutora em Psicanálise pela Universidade Autônoma de Madri. Membro Pleno da Sigmund Freud: Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Miembro Pleno de la Asociación Psicoanalítica del Sur de Buenos Aires, Argentina. eurema@terra.com.br

Sublimação: clínica e metapsicologia, de Sissi Vigil Castiel. São Paulo: Escuta, 2007, 144 p.

O livro é fruto de importante articulação entre dois eixos que norteiam a psicanálise: a investigação teórica e o incessante questionamento oriundo da clínica. Trata-se, sem dúvida, de um livro que vem ocupar um espaço importante entre as publicações psicanalíticas contemporâneas, escrito pela psicanalista, doutora em psicologia pela Universidade Autônoma de Madri, coordenadora de seminários e supervisora do Núcleo de Estudos Sigmund Freud, de Porto Alegre, coordenadora do comitê de psicanálise da Sociedade de Psicologia do rio Grande do Sul, Sissi Vigil Castiel.

O escritor argentino Mempo Giardinelli1, referindo-se à lacuna conceitual que implica para os psicanalistas o termo 'sublimação', afirma que essa não é uma lacuna exclusiva da teoria psicanalítica: " é uma lacuna, talvez, da cultura universal" . Esta afirmação coloca-nos diante de uma problemática desconcertante e, ao mesmo tempo, desafia a necessidade de precisar sua especificidade em nosso campo de ação.

Para Nasio2, a sublimação está no limite da psicanálise, mas, sem dúvida, em zona muito fértil do lado de dentro de suas fronteiras. A psicanalista Sissi Castiel, ao reconhecer a lacuna conceitual, comprometeu-se com o desafio e incursiona no campo teórico psicanalítico.

Como resultado desse processo investigativo, temos em mãos este livro, cuja temática, por sua complexidade, sempre promove debate entre os psicanalistas. A autora propõe que pensemos a sublimação como um processo intrapsíquico, o qual, se inscrito no eixo metapsicológico, pode ser entendido por sua forma de produzir-se e, não apenas, por seu produto. É uma proposta teórica que articula 'o produzir' a uma forma de subjetivação na qual evidencia que os reconhecimentos sociais podem existir, porém não são os que definem o processo sublimatório.

A autora, com a vivacidade que lhe é peculiar, percorre, reflete e interroga a obra freudiana, construindo o alicerce para a sólida argumentação de suas formulações teóricas. A pertinência de tal percorrido reflete-se em sua afirmação: " torna-se importante resgatar a sublimação como processo psíquico para poder repensá-la como processo psíquico e como procedimento clínico" . A sublimação pensada por Sissi transita entre os impasses da dessexualização pulsional, recebe o vigor conceitual do narcisismo e encontra no terreno da segunda tópica o alinhamento que amplia o alcance desse destino tanto como conceito teórico como potencialidade no processo de análise. Nesse sentido Sissi enfatiza: " o trabalho da análise é que através da transferência o sujeito crie a partir do pulsional e constitua objetos para as pulsões que lhe proporcionem prazer segundo um outro contexto. As criações singulares de um sujeito na cultura têm essa marca."

Como todo bom livro esta leitura inquieta. recomenda-se a leitura aos iniciantes no oficio da psicanálise, pela clareza e precisão com que o tema é apresentado; e, aos experientes, por viabilizar um exercício sempre saudável de desalojar convicções e certezas.

Sublimação: clínica e metapsicologia está escrito em um estilo que torna a complexidade do tema acessível à compreensão, ao mesmo tempo em que prende a atenção do leitor na originalidade da sua proposta. A autora, mediante atitude ética, reconhece os desdobramentos da falta, da ausência e da castração, no entanto, encontra na especificidade estética a possibilidade de recuperar a dimensão 'perdida' da sublimação.

1 " Diálogo entre um psicanalista e um escritor" , in Sublimación, revista da Asociación Escuela Argentina de Psicoterapia para Graduados. Buenos Aires, 1993.
2 NASIO, Juan David. Lições sobre os sete conceitos cruciais da psicanálise. rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989.

Revista Ágora

Destinos da adolescência


A psicanálise responde aos desafios da adolescência

Maria Teresa de Melo CarvalhoI; Paulo de Carvalho RibeiroII

IPsicanalista. Professora do curso de Especialização em Teoria Psicanalítica da UFMG. mmelocarvalho@terra.com.br

IIPsicanalista. Professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFMG. icaro.bhz@terra.com.br


Destinos da adolescência, de Marta Rezende Cardoso e François Marty (orgs.) Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. 204 p.

Embora Freud não tenha explorado o tema da adolescência, isto não impediu que o assunto ganhasse terreno nos trabalhos dos primeiros discípulos, constituindo-se, pouco a pouco, como um campo de grande interesse para a psicanálise. A coletânea Destinos da adolescência, organizada por Marta Rezende Cardoso e François Marty, é um testemunho da maturidade atingida pela reflexão psicanalítica sobre esse tema. A coletânea reúne 11 artigos, que primam pela qualidade das reflexões teóricas, pela consistência das pesquisas que lhes deram origem e pelo lastro clínico da maioria de seus autores.

Por se tratar de coletânea que reúne autores brasileiros e franceses, nos oferece também a oportunidade de constatar a maturidade da pesquisa psicanalítica no Brasil, que não se restringe mais ao lugar de ouvinte dos pesquisadores dos grandes centros universitários europeus, mas se afirma como sua legítima interlocutora. Destinos da adolescência é a quarta coletânea organizada por Marta Rezende Cardoso que, atualmente, é pesquisadora do CNPq, da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental e do Núcleo de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporânea. As coletâneas anteriores (Adolescência: reflexões psicanalíticas. Rio de Janeiro: Nau/Faperj, 1999; Limites. São Paulo: Escuta, 2004 e Adolescentes. São Paulo: Escuta, 2006) já mostravam essa iniciativa de interlocução com centros de pesquisa no exterior, incluindo alguns artigos de autores franceses, espanhóis e argentinos.

Os artigos inserem-se em projetos de pesquisas com diretrizes bem definidas e mostram um cuidado especial com a fundamentação metapsicológica. Outro aspecto a ser ressaltado é a atenção dada à prática clínica, tanto de forma direta, como na apresentação e discussão de casos clínicos, quanto por meio de referências e reflexões teóricas sempre conectadas à clínica.

Uma apresentação escrita em conjunto pelos organizadores da coletânea traz uma clara justificativa de seus motivos, de suas diretrizes de pesquisa e um sumário dos trabalhos que a compõem. Em seguida, o artigo de Michele Emmanuelli, "A clínica da adolescência", serve como uma excelente introdução à obra, ao apresentar um apanhado do lugar da adolescência nas elaborações psicanalíticas, seguido de uma síntese dos pontos fundamentais do processo da adolescência, de suas manifestações psicopatológicas predominantes, além de considerar, em linhas gerais, o laço entre adolescência e sociedade. O exame de todas essas dimensões prepara o terreno para uma síntese das modalidades terapêuticas com os adolescentes.

Os artigos seguintes podem ser agrupados, para fins de apresentação, em alguns temas que vão se sucedendo na coletânea. "Entre a infância e o infantil - vicissitudes da adolescência", de Regina Herzog e Iná Susini Mariante, e "O genital, impasses e acesso", de François Marty, colocam em questão a concepção da adolescência como uma fase bem delimitada da vida do sujeito. O primeiro, abordando a distinção entre a infância e o infantil, tal como promovida por Freud, mostra como a psicanálise superou a ideia, presente no pensamento moderno, de um percurso evolutivo linear que definiria fases do desenvolvimento bem demarcadas. O segundo argumenta que o genital não é simplesmente o término bem-sucedido da organização sexual, mas um processo que se enraíza na infância, constitui-se na adolescência e permanece sempre por elaborar, por se desenvolver durante toda a vida.

Seguem-se os artigos "Transgressão pulsional e geracional: a perpetuação da adolescência" de Marta Rezende Cardoso, "Adolescência sem fim? Peripécias do sujeito num mundo pós-edipiano", de Joel Birman, "A linguagem do ato: entre o recolhimento narcísico e a busca de objeto", escrito por Florian Houssier e "Distúrbios de comportamento, narcisismo fálico e luta contra a passividade na adolescência", de Jean-Yves Changnon. Eles abordam um dos aspectos mais importantes da adolescência: a violência e sua relação com a sexualidade e com os laços sociais.

Os comportamentos violentos, muitas vezes excessivamente agressivos, dos jovens em nossa sociedade não cessam de nos surpreender e levam, imediatamente, à demanda de sanção, pela sua dimensão de transgressão da lei. Ora, cada um desses artigos, à sua maneira, nos alerta para a necessidade de levar em conta, aquém do problema da transgressão da lei, embora não independente dele, a relação dessas manifestações violentas com a questão pulsional e com os vínculos libidinais e sociais dos jovens de hoje.

Marta Rezende Cardoso destaca a sedução parental, em sua modalidade de intromissão violenta, no momento da revivência do Édipo, característica da adolescência. O artigo de Joel Birman, de inflexão sociológica, tece considerações relativas às transformações ocorridas na sociedade e analisa seus efeitos sobre a juventude, culminando com a proposição de uma tese que nos conduz a pensar na existência de um "novo paradigma civilizatório" (p. 98) e a indagar se estaríamos entrando num mundo pós-edipiano. Analisando um caso atendido no âmbito de um acompanhamento sócio-judiciário, F. Houssier trabalha suas hipóteses sobre o ato delituoso na adolescência como um sensível indicador da problemática psíquica do jovem deliquente, geralmente ligada a um movimento regressivo e, ao mesmo tempo, a um apelo ao ambiente, próprio das oscilações narcísico-objetais dessa fase da vida. Trabalhando também na intercessão da metapsicologia com a clínica, J-Y Changnon constata o horror à passividade em certos adolescentes de frágil estruturação narcísica que são tidos como hiperativos e violentos e desenvolve ideias bastante originais sobre o motivo pelo qual eles não podem parar ou descansar sem que sejam invadidos por afetos traumáticos.

O tema do corpo na adolescência é objeto de reflexão nos artigos de Isabel Fortes, "A adolescência e o corpo: considerações sobre a anorexia", e de Annie Birraux, "Projetar". O primeiro discute as hipóteses encontradas na literatura psicanalítica sobre a anorexia e avança no sentido de mostrar como fracassa, nesse quadro, a tarefa de rearranjo da imagem corporal ante as modificações da puberdade, ao mesmo tempo que é sistematicamente recusado o prazer que poderia advir do alimento materno. Essa recusa representaria o único meio possível de escapar da invasão do olhar da mãe. O segundo trata das dismorfofobias, patologias que condensam diversas questões teórico-clínicas muito bem elaboradas pela autora. A dismorfofobia é vista como um fracasso da projeção, o que leva o sujeito a viver com um objeto mau que o invade e do qual não pode se livrar.

Os dois últimos artigos tratam, por vieses diferentes, da problemática da psicose na adolescência. "Delírios e psicopatologia adolescente", de Faroudja Hocini, aborda os episódios delirantes agudos da adolescência numa tentativa de situá-los a partir de suas dimensões históricas e psicopatológicas, buscando, assim, superar as concepções defectológicas e prognósticas acerca de seu devir. Considera, também, a importância das referências psicoterápicas e da psicanálise, em particular, para a abordagem desses casos. "Adolescência e tratamento do impossível hoje", de Ana Beatriz Freire e Fernanda Costa-Moura, resulta de duas pesquisas que privilegiam, em sua fundamentação teórica, a concepção lacaniana do pai como recurso metafórico para enfrentar o impossível advindo da estrutura do significante. Dois casos clínicos são relatados e analisados, ilustrando, em cada uma das situações de pesquisa, o funcionamento dos dispositivos concebidos com o objetivo de possibilitar a suplência da função paterna.

Embora todos os artigos sejam muito claros e tenham seus objetivos bem delimitados, o leitor não deve esperar uma leitura fácil, pois as reflexões são complexas e os argumentos muito elaborados. Mas o esforço de leitura vale a pena, pois à medida que se avança no texto, percebe-se a grande sensibilidade e experiência dos autores, o que culmina com a constatação de que a coletânea nos conduz a lançar um novo olhar sobre alguns dos aspectos mais centrais da adolescência.

Revista Ágora

As pulsões e seus destinos: do corporal ao psíquico


Para desvendar o pensamento da psicanálise

Regina Herzog

Psicanalista, professora associada III do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia/UFRJ. rherzog@globo.com

As pulsões e seus destinos: do corporal ao psíquico, de Joel Birman. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, 161p. (Para Ler Freud)

A proposta da coletânea Para ler Freud é a de apresentar os textos freudianos de maneira concisa e didática. Com relação a alguns trabalhos de Freud, trata-se de uma tarefa oportuna. Com relação a As pulsões e seus destinos, trata-se, mais do que de uma tarefa, de um desafio.

Primeiramente, por se tratar de um texto da maior importância no que se refere à densidade conceitual, sendo necessário, para percorrê-lo, estar familiarizado com vários outros conceitos, para não dizer com praticamente toda a trama psicanalítica.

Em segundo lugar, porque muitos são os que não lhe dão o devido relevo, por fazer parte do que Freud denominou "a metapsicologia", considerando que de pouco serve no âmbito da clínica o conceito de pulsão.

De fato, o objeto da investigação psicanalítica é o inconsciente e o conceito de pulsão é concebido como aquilo que dá fundamento ao inconsciente e às suas formações. Daí a considerar a teoria pulsional de pouca serventia no trato com o sofrimento psíquico, é um pequeno passo.

Ora, dentre os vários méritos desta publicação de Joel Birman, decerto o mais importante é o fato de ter justamente abalado esta ideia. Na verdade, poderíamos dizer que o modo como ele se propõe abordar o texto parece atender a este objetivo: mostrar que o ensaio "As pulsões e seus destinos" é um trabalho da maior relevância tanto no plano conceitual quanto clínico.

É claro que 'esta aventura', como afirma o autor, não é sem riscos. Ela implica uma tomada de posição, exigindo que se enfrente "as contradições, dúvidas, impasses e os vários paradoxos" nos quais o texto nos lança. Apenas a título de ilustração das dificuldades que este pequeno grande livro aponta no ensaio freudiano, coloca-se a pergunta: a teoria pulsional se insere em uma visada científica ou não passa de bruxaria? Freud, ele próprio, já se indagava sobre isso. E Birman, fiel ao texto freudiano, buscou mostrar como e por que este conceito foi forjado, com o intuito não de responder às questões colocadas por Freud, mas de refletir criticamente para permitir fazer o próprio texto trabalhar.

Assim, começando por situar este ensaio de 1915 no seio da proposta freudiana, Birman ressalta em que medida sua elaboração teórico-clínica se distingue do que vinha sendo feito, tanto no campo da medicina quanto no da psicologia em fins do século XIX, início do século XX.

Daí a importância não só de uma contextualização histórica, mas também epistemológica, tal como aparece nos capítulos II e III do livro. No capítulo II, Birman conduz o leitor aos primeiros textos freudianos para mostrar como o discurso do criador da psicanálise vai "realizar uma leitura outra da psicologia". E é com este intuito que vai forjar "a palavra e o conceito de metapsicologia". É a partir da crítica à psicologia que Freud vai forjar 'o sujeito no além da psicologia', empreendendo o que Birman designa como um "descentramento do sujeito dos registros do eu e da consciência". Com estas ferramentas, chegamos ao conceito de pulsão, o que dá fundamentação teórica aos fenômenos inconscientes.

Embora os primeiros capítulos tenham como objetivo maior esta contextualização, Birman já mostra, desde aí, que a ênfase deve ser colocada na "experiência clínica" como "condição concreta de possibilidade" da constituição da metapsicologia. Isso é demonstrado ao trazer a questão da 'histeria e anatomoclínica'.

No capítulo seguinte, 'Epistemologia freudiana', a discussão se centra no âmbito epistemológico propriamente dito, permitindo trazer para a cena o conceito de pulsão. A explanação de Birman sobre o discurso científico e sobre a preocupação de Freud em sustentar a cientificidade da psicanálise é extremamente rica, fornecendo a base para entender este complexo ensaio que será trabalhado nos dois capítulos seguintes.

Nestes, o autor oferece, ao mesmo tempo, todos os elementos para pensarmos a clínica quando descreve a montagem e o circuito pulsionais. Poderíamos dizer que sua exposição é muito mais que um simples resumo das ideias contidas no ensaio freudiano. Temas como sexualidade, excitações pulsionais, aparelho psíquico, questão corpo e psique ganham destaque nesta discussão.

Com o último capítulo, denominado 'Destinos', vamos encontrar uma leitura crítica da maior relevância para a clínica psicanalítica, mostrando como "o ensaio sobre as pulsões na Metapsicologia é uma passagem teórica fundamental no discurso freudiano que conduzirá inevitavelmente à segunda teoria das pulsões e à segunda tópica". Com isto, Birman avança no texto freudiano, trazendo uma problematização que só vai se dar depois de 1920 e que comporta, dentre várias, a questão do outro, do desamparo e do masoquismo.

Por tudo isto é lícito afirmar que, mais do que a "leitura de um clássico da psicanálise", conforme pretende o autor, este pequeno grande livro nos oferece a leitura do pensamento da psicanálise.

Revista Ágora