_é hoje o concerto! Temos bilhetes para um camarote !
_quantas pessoas podem estar no camarote ?
_ acho que cinco…
_Tens mesmo o bilhete do camarote? Onde é que o arranjaste ..?
_ não te digo !! tenho !! e é hoje ! …rias-te …
Esperávamos há meses pelo concerto do Gilberto Gil , ao vivo no Coliseu . Ouvíamos todas as músicas, vezes e vezes sem conta.
O “Realce”, rolava no gira-discos, sempre para o mesmo lado e sem tonturas ! Ouvíamos e dançávamos, horas seguidas, tardes inteiras. Sabíamos as letras de cor.
“Realce …..Quanto mais porpurina …melhor …l ala la ….”
Pulávamos , e respirávamos tudo o que era positivo naquelas músicas que nos faziam crer que tudo, mesmo tudo e apesar de tudo …iria ficar sempre bem .
_ tens mesmo os bilhetes ??!! Eu nem acredito
- È um bilhete só , parva ! É um camarote …
_E quem é que vai ?
_ Vamos nós todos …
- Mas somos mais que cinco….
_Não faz mal, vais ver que cabemos lá todos .
Doía-me a barriga , a espera dava-me cólicas, ou formigueiro… as horas não passavam !
_ Põe o “Realce” outra vez …
O disco dançava connosco, sem saber o que nos fazia, rodava e rodava . A agulha gasta dava mais carácter aquela voz clara.
_ Jantas cá ?
_ Tenho que telefonar para casa …. A minha mãe vai já dizer que não …mas enfim …não vou perder este concerto nem por nada .
Peguei no auscultador do telefone , era preto e reluzia … disquei os números , 3---1---3---7---6---, nessa altura os telefones tinham poucos números e eu gostava de prender o disco com força e ouvir o ruído da marcação do número.
_ Está …sou eu mãe…Olha ..? Posso jantara aqui … e ir ao concerto do Gilberto Gil , logo à noite ?
_ Olá filha, podes. Claro que podes, tem cuidado. Vai ver o Gilberto Gil que é muito bom. Por favor não venhas tarde.
_Posso mãe??!! Posso mesmo ? – Está bem eu não vou tarde , prometo . Beijinho mãe, obrigada .
Desliguei o telefone , e nem queria acreditar …
_ Posso ir ! A minha mãe deixa-me, e posso jantar cá. A que horas vem a tua mãe ?
_ Sei lá, vem sempre tarde …fazemos uns ovos mexidos e vamos , temos que lá estar cedo .
_embora até ao café ver quem lá está …temos lugar para cinco !
_para cinco…ou mais !! quantos couberem ….
Ríamos sem parar.
Chegámos , devagar porque não corríamos , quase nunca corríamos .
Chegámos como quem não quer a coisa.
_Sabem que mais ??? temos um bilhete para um camarote , para ver o Gilberto Gil , hoje …
Olharam todos para nós como se nos estivessem a ver com cabeças de porco !
_ A sério ?!
_ Sim …a sério… quem é que quer vir ?
Todos queriam ir , claro . Mas o bilhete era só para cinco …
_ Os camarotes só têm cinco cadeiras …
_ Não faz mal , ficamos uns em cima dos outros …ficamos em pé !
_ Por mim tudo bem , se nos deixarem entrar …
_ Mas como é que tens o bilhete ?
_ aAranjaram-me …
_Quem ??
_ Um amigo da minha irmã , que conhece o Gilberto Gil ..
_ Mentirosa ! És tão mentirosa …ria-me...
Ninguém acreditou
Dizias isto com um ar de quem não dá importância nenhuma .
Os rapazes olhavam uns para os outros , com olhos que falavam …. _ arranjas as cenas para logo ?
_ Ok arranjo, do melhor …
_Ok , mas vê lá o que é que arranjas , não quero gajos a mandarem-se do camarote lá para baixo !
Ouvia e não queria saber se queria ouvir ou não.
“ Seja o que Deus quiser, é um concerto …e vou-me querer rir!” pensava sem fazer barulho .
Nem comemos nada de jeito, fomos todos fazer ovos mexidos com batatas de Pála- Pála , e engolimos uma comida sem sabor .
O disco continuava a rodar …sem parar, as colunas estavam no máximo, e dançávamos de prato na mão , depenicando bocadinhos de ovo e batatas fritas .
Desacertava-mos os passos ao som dum reage tão suave , tão envolvente …
Apanhámos o 44 , que nos deixava na Av. da Liberdade, depois era um instante até ao Coliseu .
Quando chegámos à porta, já se amontoava uma multidão que ansiava por entrar por ali dentro, ainda faltavam algumas horas para o concerto.
Bebemos cerveja num café , mesmo ali em frente , bebemos cerveja até as portas , do Coliseu, abrirem …nem sei quantas cervejas bebemos .
Apagávamos os Sgs Filtros nos gargais das garrafas de cerveja , os rapazes guardavam as pratas dos maços de tabaco , mais tarde faziam os cachimbos .
Entramos todos no meio dum enorme empurrão, quase que não havia controle nas entradas , e nós só queríamos ouvir o “Realce” e o, …”no woman no cry……” ao jeito do Bob Marley , cantarolávamos pelas escadas cima.
Cabíamos todos no camarote, eu fiquei “à janela” , as meninas à frente para verem melhor , os rapazes atrás ..para arranjarem “as coisas” .
Fumávamos cigarros ,…. Naquele tempo fumava-se nos concertos do Coliseu.
O Gilberto Gil entro no palco, as luzes acenderam-se, eu hipnotizei-me , imediatamente, pela enorme estrela dourada , pintada na sua cabeça , quando se voltou …vi que tinha uma Lua do outro lado
As luzes faziam com que brilhassem , faziam reflexos de pequenos cristais de caleidoscópio , eu olhava fascina … e …ia fumando o que me passavam para as mãos , cada vez mais feliz , embriagava-me no som , nas letras e naquela estrela virada para mim .
Não me voltava para trás , só sentia o calor de todos os corpos que se moviam perto de mim , ao som da música . Entre odores e fumo, não sentia mais nada , só o ritmo e o fascínio das luzes .
As luzes faziam brilhar a Estela e a Lua … que pareciam enormes …
Sem me aperceber , batia palmas sem ritmo …
Não acertava o compasso, as mãos não obedeciam ao ritmo da música que se instalava dentro de mim…
olhando para as pessoas , lá em baixo, pela “ janela “ do camarote, via toda a gente a bater palmas num compasso que já não era o meu , as luzes começaram a brilhar com mais intensidade….
Ia batendo palmas , assim como sabia , fumava o que me passavam para a mão , entre cigarros e cachimbos ..Descompassava-me, cada vez mais.
Apercebi-me que me assustava, que já não compassava, que já não me sabia obedecer , que já não “mandava” nos meus gestos, e a partir daquele momento…nunca mais fumei o que não sabia .
Depois de vários retornos ao palco, o Gilberto Gil acabou o espectáculo. Assobios que pediam mais , e mais .
Palmas compassadas que não ritmavam com as minhas .
Saímos no meio duma massa de gente feliz, estavam felizes , pareciam felizes… todos se riam .
Eu deixei de rir, assustada com o meu descompasso,
Voltámos para os Olivais. No caminho cantavam as músicas que ouviram no concerto, eu …estava calada , olhava-os com os olhos muito abertos …esperando que passassem as horas e que me conseguisse ritmar outra vez .
Demorámos imenso tempo a chegar aos Olivais , a mim pareceram-me horas infindáveis , as paragens estavam cheias de gente , que bem nos tinha sabido um carro naquela altura , mas carros ..não os havia assim para toda a gente .
Ríamos por isso mesmo e por tudo e mais alguma coisa
Chegámos ao “prédio” alto, nos Olivais , eu nem sabia como iria para casa …
Ficámos a “matar” o resto do tempo sentados nos degraus das portas , continuavam a fumar …. Eu não queria fumar mais nada . Já não me ria, já não me dava vontade de rir …
_ Vamos até minha casa? Ficamos lá um bocado…
_ Está bem , eu nem sei como vou para casa agora , tenho medo de ir sozinha…tenho que atravessar o Vale do silêncio ….a esta hora …e já foram todos para casa…
Entramos em casa, era mesmo ali, no R/C , do prédio alto, nos Olivais .
Sentimos vozes e luzes na sala do sofá amarelo . Falavam brasileiro, parecia brasileiro , e naquela altura era tão bom ouvir falar brasileiro…
Ouvimos o som baixinho duma guitarra … alguém cantava , assim com uma voz exactamente igual à que tínhamos estado a ouvir durante horas,
Olhámos uma para a outra , incrédulas, abrimos a porta da sala do sofá amarelo .
E sem acreditarmos, vimos quem cantava assim tão suavemente. Sentado no sofá amarelo, acompanhado com mais duas ou três pessoas , estava o Gilberto Gil, horas depois do espectáculo, a tocar ali, naquela casa no meio dos Olivais.
_ Tu estás acreditar no que estás a ver…?
_Não …não estou
Desatámos a rir … mas porque raio é que o Gilberto Gil ali estava ….?!
_-tu sabias que o Gilberto Gil vinha para tua casa ?
_ Eu não !?
“..não …não chore mais …. No woman no cry…..”…. os dedos brincavam com as cordas da guitarra .
Parecia não estar a acreditar no que via
_ Mas olha lá …que raio de coisa esta …mas porque raio está o Gilberto Gil em tua casa …?
“ …quanto mais purpurina …melhorrr….” e recordava a música , e a estrela agora já não brilhava tanto..nem a lua , eram douradas , pintadas a ouro .
_ Espera …vou perguntar à minha irmã … o que se passa aqui …
“realce…..realce….quanto mais serpentina melhorrrrr….”…
.
o susto já me tinha passado, e meio embasbacada , sentava-me na pontinha do sofá amarelo , ele sorria-nos com uns dentes tão brancos e com uma voz que nem se explicava ,,,,
“..não desepera quando a vida fere fere …realce …realce quanto mais serpentina
melhorrrr….quanto mais purpurina ..melhorrr …”
_ Já sei ….já perguntei à minha irmã , parece que o motorista do Gilberto Gil , é amigo da minha irmã…e resolveram vir cá para casa no fim do espectáculo ….
Olhei com os olhos muito abertos ….Desatámos a rir às gargalhadas … sempre queríamos ver se amanhã, os outros acreditavam em nós …
_ hahaha , amanhã ninguém acredita em nós !
Ríamos e ríamos e começávamos a cantarolar as músicas que ele nos tocava , assim como um presente que nos dava , entre cervejas , cigarros de fumo e gargalhadas espalhadas no meio do som .
_ Eu nem acredito … phá! Mas que raio de coisa…e tu sabias disso
_ Eu não …
E assim ouvimos um mini- concerto , depois dum grande concerto, o mais inesperado da minha vida .
Ficámos por ali sentados no chão, encostados ao sofá amarelo , até o Sol nascer e a Lua adormecer...
TMQueiroz