domingo, 2 de fevereiro de 2025

2- A incrível história do casal a quem saiu o euromilhões

À voz irritada ela responde com um soluço “sim-sim” com a cabeça! Ele acentua a exaltação, ralha irracionalmente e não a ouve, mesmo quando ela, com o ritmo cardíaco descontrolado e a expressão de quem acaba de saber que lhe morreu alguém, sussura timidamente “mas calhou!...” ele continua e arranca-lhe o talão que ela segura entre ambos os polegares e indicadores e, cego, ergue-o na mão, lança impropérios ao vício do jogo, atira-lhe a autoridade de marido que se esfola a trabalhar para ela, aquela que agora resolveu brincar com o dinheirinho dele, atira-o para o lume e grita-lhe “nunca mais!”.


- Mas calhou!... - repete ela na mesma entoação e na mesma pose com que dissera da primeira vez.

- Não interessa se calhou ou não calhou! Eu disse-te para não jogares e tu jogaste! E ai de ti se voltas a jogar!

- Mas calhou!...

- Não estejas com esse tom de madalena! Calhou o quê? Calhou o quê?

Acomoda-se à lareira a fumar um cigarro de ira e ela corre para o quarto a chorar. Senta-se na cama, repara que o talão ainda permanece apertado entre os seus indicadores e os seus polegares, deve ser o do Milhão!... Não é o... Ele tirou-lhe o errado, ele agarrou o do Milhão! Milagre! O talão com os números continua ali, nas suas mãos! Tenta recompor-se, ergue o corpo, a mente e o caráter, limpa os olhos, esconde o bilhete num dos sapatos de domingo. Dirige-se à cozinha, agora segura e disposta a enfrentar o companheiro.

- Tens aí o papel onde escreveste os números?

- Está aí em cima da mesa. Mas para que os queres tu se o teu talão já ardeu?

- 10, 20, 30, 40, 50 estrelas 2 e 5. Sim, eram estes! Calhou! Calhou! Cinco números e duas estrelas! Tenho a informar-te que acabaste de lançar para a fogueira uma fortuna em dinheiro! Escolheste viver na miséria até à morte! Mas eu não! Não tens perdão! Um dia destes vou-me embora!

Continuou sentado com a mão a esfregar a testa aquecida pela lareira. Resmungou baixinho frases avulso: “não tinhas nada de ter jogado sem a minha autorização”; “ de certeza que viste mal os números!”; “provavelmente enganei-me a escrever os números” ... “e mesmo que fossem certos? O dinheiro ia dar cabo de nós!”…

- Se agora chegasse aqui alguém e começasse a descarregar maços de notas nesta cozinha até a encher até ao teto, tu eras louco para passares a noite a lançá-los para as chamas?

Começa a cair nele, agita-se no banco, coça o carapinha, passa a mão pelo queixo, tira e volta a pôr um cigarro no maço, levanta-se e volta a sentar-se, dá uma volta à mesa incapaz de dispensar um olhar à companheira, dá um gole na garrafa, retoma o seu lugar à lareira.

- Estás a brincar com coisas sérias! Prova lá que o talão tinha estes números ou outros quaisquer!... Viste mal! Pronto! Tu nem sabes ler um papel desses! E se nos tivesse calhado? Que é que fazias agora? Diz lá! ...Vá, diz lá!

Silenciosa, resguardou-se de pé por detrás do marido sentado. Hesitou em dizer-lhe que ele queimou o papel errado. - Digo-lhe?... E se ele o queima também?...  Calo-me?... Mas isto é segredo que se esconda do homem? Sim, é sexta-feira, ele está com mais carga que o costume, pode ter-se enganado nos números...

- Diz lá tu, o que é que fazíamos agora? – perguntou ela.

- Estávamos metidos numa alhada. Primeiro que tudo teríamos de guardar segredo absoluto. Caso contrário, não nos faltariam aqui pobres e desgraçados à porta a pedir piedade, padres e catequistas a pedir caridade e até ricos a pedir participação em investimentos garantidos!... Para além da nossa própria segurança: uma faca ao pescoço e passa para cá uns milhões senão a tua mulher morre!... Eu não aguentaria tanto! Mesmo que fosse verdade que o papel que ardeu tivesse a sorte grande eu não reconheceria isso como sorte! Seria pela certa um pré-anúncio de grandes desgraças!

- Está bem, és um homem fiel aos teus princípios, tens 100 milhões de euros na tua cozinha em notas e, como não acreditas que o dinheiro traga felicidade, queima-los!... É isso?!... Nem sequer pensas em dá-lo a alguém que lhe faça proveito, queima-los e pronto!

- Cala-te com essa conversa e não brinques com coisas sérias!

- E se eu te disser que puseste o papel errado para o fogo e que eu tenho escondido o papelucho que vale uma fortuna?

- Ah! Ah! Ah! E tem-lo escondido aonde?

- Tenho-o escondido de ti e vou contar-te onde está? Tu és parvo ou quê? Queres ter uma segunda oportunidade do queimar?

- Então vamos falar, tens a certeza que os números são esses?

- Tu é que os escreveste!

- Então olha, eu não tenho a certeza de que os números são os que te disse!... E agora?

- Nesse caso vais ao café, devem estar lá afixados, pedes uma caneta e um papel e vens a correr para casa para confirmarmos se estamos ou não ricos! 

Interrompe-se aqui a conversa para curar o mau estar das personagens continuarem sem nome, muito embora isto seja mais gente do tu cá tu lá e, como caso possívelmente verídico, não ser aconselhável a identificação dos contemplados. Tenha-se pois como remédio, para proteção dos visados e conforto do narrador, chamar-lhes Francisca e Jacinto, nomes fictícios pelos quais aqui serão tratados.

Lembremos que a história começa com Francisca a exprimir, nos seus silenciosos pensamentos, que caso a sorte lhe saísse estariam entre destinos certos do dinheiro: uma casa, um carro, uns brincos, ir a Fátima e ao Brasil. Ora a ida a Fátima não seria certamente pelo passeio porque já lá fora muitas vezes, ou não fosse fácil da terra onde viviam, Vale dos Ovos, fazer promessas de ir e vir a pé com légua e meia, pelo que, já se vê, a prometida ida à falada cova da vizinha Serra de Aire, se faria para agradecer aos dois videntes, já beatos e não tardaria muito santos de pleno direito. Eis a forma encontrada para deixar escrita a devida homenagem aos pastorinhos, que alguma mão devem ter metido lá no Céus para que tamanha sorte caísse sobre a tesura do casal, acredita Francisca, não o autor, homem de pouca fé, que dá tão pouco crédito às  aparições que até o nome dos miúdos milagreiros troca.


domingo, 26 de janeiro de 2025

1- A incrível história dum casal a quem saiu o euromilhões



Ter passado os últimos dias envolta na fantasia: se ganhar vou logo pagar o que devo, dar a este e àquele isto e aquilo, dar ao próximo, não dar nas vistas, uma casa, um carro, uns brincos, ir a Fátima, ir ao Brasil, ser rica e continuar a mesma.

Acordar de vez em quando e pensar que milhões de jogadores passam pelos mesmos pensamentos; que há gente que não investe na sua vida, crente que é desta que a sorte lhe baterá à porta; que afinal não passa de mais um opiáceo que é dado ao povo para conter a sua razão - que importa? Deliciosa ilusão! Até ao momento em que o sonho se desfaz frente à televisão e se lança mais um papel para a fogueira:
– Mal empregue o meu dinheiro!
Depois começará uma nova semana, um novo ciclo em que aqui e ali se irá ouvindo:
- Tenho de ir meter o euromilhões!
Não ela, que só jogou desta e foi exceção! E ai se o homem sabe!...
 
Pensamentos interrompidos pelo ruído da Sachs a subir a pequena ladeira que leva à casa inacabada, uma barraca no julgamento malacioso de vizinhança pouco certa. A aceleração de todos os dias, o mesmo chiar de travão, o parar do motor no alpendre de chapa junto à porta da cozinha. O trolha vai entrar.
 
Podia ter arranjado homem melhor, um engenheiro não que sempre fui burra na escola, um que ao menos conseguisse tirar a carta de condução!... Rico não, que sempre fui pobre demais para gostar deles... 
Com o andar dos anos vai mudando a maneira como gosta dele mas ainda gosta, não é de se cuidar no que veste ou no cabelo mas não bebe mais que os demais.
Hoje, por ser sexta-feira, é capaz de já vir um bocado entornado. Vê-se, entrou nem disse ai nem ui, daqui a um bocado começa a mandar vir por qualquer coisa. Acende o lume, é ele sempre que acende o lume, acende um cigarro com uma brasa na tenaz e é capaz de ficar dócil se se entretiver com a televisão. Vai dar o euromilhões. Ai de mim se ele sabe que eu joguei!
 
O homem também joga e tem uma forma estranha de jogar que quase todas as semanas ganha: preenche com uma, duas ou mais chaves num boletim mas não o entrega. Assiste ao sorteio, regista a chave e diz para a mulher:
- Esta semana não joguei três apostas, ganhei sete e meio, sempre dá para um almoço!...
- Quais foram os números?
- 10, 20, 30, 40, 50 estrelas 2 e 5.

Não pode ser escrito, tem de ser decorado. Desconfiará ele se lhe pedir para repetir? Repetiu. Dirige-se ao quarto onde guardou o boletim como quem caminha para a retrete quando tem diarreia, o tempo do percurso não limpará a memória dos sete números. Aguenta.

- 10, tenho... 20, tenho... 30 tenho – já dará para a despesa! - 40, tenho... – Elá! Calma coração!... 50!50!50? – Ai! Ai! Isto já é dinheiro! Estrelas? – 2 e 5!

Faz uma segunda, uma terceira leitura, confirma novamente a sequência: sim... Também, também, outro e outro! - Gaita isto deve ser muita massa! Duvida da sua memória. - Ai o meu coração! Não vejo mais! Vejo! Estrela! Estrela! Porra ganhei! Ganhei! Ai que não consigo ficar calada! Tenho de lhe dizer! Vou-lhe dizer! Controla-te! Controla-te!... E se ele viu mal os números?... Eu troquei os números, nunca tive jeito para decorar!

Regressa à cozinha, ele junta o fumo do cigarro à tiragem da chaminé. Em voz trémula e baixa pede-lhe a confirmação dos números. 

– Não te os disse? Também, que é que isso interessa? Não me digas que gastaste dinheiro nessa porcaria?

À voz irritada ela responde com um soluço “sim-sim” com a cabeça! Ele acentua a exaltação, ralha irracionalmente e não a ouve, mesmo quando ela, com o ritmo cardíaco descontrolado e a expressão de quem acaba de saber que lhe morreu alguém, sussura timidamente “mas calhou!...” ele continua e arranca-lhe o talão que ela segura entre ambos os polegares e indicadores e, cego, ergue-o na mão, lança impropérios ao vício do jogo, atira-lhe a autoridade de marido que se esfola a trabalhar para ela, aquela que agora resolveu brincar com o dinheirinho dele, atira-o para o lume e grita-lhe “nunca mais!”.

 

domingo, 19 de janeiro de 2025

Oficina de escrita

Bendita a hora em que inventaram os computadores, a internet, os blogues e as "nuvens". Se me entretenho a criar umas bacoradas, devo-o a estas contemporâneas criações.

Quando ganhei competências no maneio dum processador de texto, maravilhado por poder apagar, voltar atrás, emendar, escolher fontes várias, dar voltas à crónica e, por um clique, ver o resultado impresso em letra de imprensa, comecei a escrever para um jornal e a enviar cartas policopiadas para velhos amigos.
Aumentei a frequência destes contactos com essas amizades e reforcei a documentação dos assuntos que abordava, quando apareceu o serviço de email e a internet. 

Mas foram os blogues, a tecnologia que determinou a oportunidade de eu publicar aquilo que me apetecesse e de encontrar um nicho de leitores com abertura para me entender.
Depois de várias tentativas sem sucesso, assentei neste espaço, Rei dos Leittões, e neste pseudónimo, Pata Negra, e aqui experenciei os tempos áureos de José Sócrates e da blogosfera.

Entretanto, tal como perderam expressão as tabernas e as mercearias de bairro  - locais onde em tempos se debatiam ideias, se adquiriam conhecimentos e trocavam informações, ao mesmo tempo que se bebia bom vinho e se faziam as compras exclusivamente necessárias - atacadas pela monstruosidade das grandes cadeias de consumo - coloridas, confortáveis, sedutoras mas sem alma - os blogues foram vencidos por poderosas, irrecusáveis e apelativas redes sociais.

Há alguns que se mantêm por crédito, estatuto e valor dos seus autores e outros que resistem por teimosia, capricho ou por opção, como é o caso deste reino, deste palácio ou desta pocilga, tanto faz, que, tendo perdido o estado de espírito que o animava a interagir com outros blogueres,  aqui continua, quase indiferente ao facto do número de clientes ser, agora, apenas residual.

Já lá vai o tempo em que eu escrevia um ficheiro de texto, guardava-o no disco e depois publicava. Com o tempo comecei a escrever diretamente no bloguer, até chegar ao presente, em que a caixa de  rascunhos do bloguer é praticamente a drive da "nuvem", onde guardo tudo o que escrevo nos domínios da ficção e da reflexão.
 
Aonde quero chegar eu com esta conversa?

Que vou tentar reencidir num exercício de escrita que me obrigue a ser regular e disciplinado, sendo que, para tal, é recomendável e obrigatória a sua publicação neste espaço, como fase preparatória da sua formalização em livro físico.  
Assim sendo, vou tentar que a história se desenvolva em capítulos semanais, convido os eventuais leitores a participarem na revisão e no ato criativo, podendo dar assim, divertidamente, o seu contibuto para que a história chegue a bom porto e esta Oficina de Escrita seja uma espaço coletivo - aceitam-se anónimos.

Vou pois escrever de gaveta aberta, determinado a que não volte a acontecer o que se verificou com experiências anteriores similares: no "Quarto", na "Fábrica" e no "Caminho do Fim da Terra", os finais precipitaram-se por cansaço  do autor, e noutras histórias imperfeitas como as capelas do Mosteiro da Batalha, como foram o caso de "7 anos numa J7" ou "todas a manhãs", perdeu-se o fio à meada e acabei por desistir.

Começa de hoje a oito, domingo, "A incrível história dum casal a quem saiu o euromilhões".

sábado, 11 de janeiro de 2025

A ternura dos sessenta


A primeira vez que me sentei na sanita sem levantar o tampo, não estranhei.
Puxar do comando televisão para telefonar a um amigo foi porque me tinha esquecido dos óculos algures não sei onde.

Dos óculos afinal estarem no nariz, pensei: o olfato perde-se com a idade!

Chegar à cama e, em vez de vestir o pijama, voltar a vestir as calças de bombazina - pareceu-me estranho.

Dormir com os pés no travesseiro, pareceu-me cansaço.

Distrair-me 40 minutos no chuveiro, achei que era a descoberta de novos prazeres.

Pôr a espuma de barbear na escova de dentes - foi por dormir pouco!

Estar a pôr a chávena no frigorífico e procurar o leite no forno do fogão - foram outros pensamentos!

Dar por um par de cuecas a espreitar num sapato e reparar que um dos sapatos era diferente do outro – sou um despistado!!!

Passar três vermelhos - distrações da manhã! 

Cumprimentar o chefe por, então pá!? – não me pareceu normal!

Esquecer-me de almoçar – foi um mau pressentimento.

Não fazer a mínima ideia de onde deixei o carro – que dia de trabalho!!!

Mas, por engano, entrar no 3º esquerdo em vez do 2º; ouvir uma voz de mulher a gritar: “fui violada!”…

E da caixa das escadas uma voz tão familiar: Puta!!!... Putão!!
Já não foi entendido como sintoma da idade!… Foi traição! Fui traste!...

Ninguém acredita que estava convencido que estava a sonhar que estava a dormir encavalitado no meu único amor!

Entrei em casa, não se trocaram palavras, apenas reparei que todas as torneiras que pingavam há meses estavam reparadas.

Caraças da idade!


sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Este ano de 2025 gostava de

 Este ano de 2025 gostava:

- de perder um pouco de barriga para começar de novo a ver todas as partes do corpo quando estou no chuveiro;

- de aparecer na TV numa entrevista de rua, nem que fosse só atrás de alguém, desde que tivesse tempo para telefonar cá para casa e dizer à família: por uma vez liguem a dois;

- de começar a gostar de futebol para não comentar só o tempo com os colegas de trabalho;

- de deixar de receber fotos de mamas grandes no whatsapp e de arriscar finalmente os links do facebook que prometem a paz e a felicidade;

- que se tornasse público o clip de vídeo em que o Costa e o Marcelo deram um beijo na boca;

- que os impostos e os preços deixassem de subir às mijinhas e tivessem aumentos dignos de se verem, de tal forma que o pagode ganhasse força para dizer "aí paras!";

- de deixar de ver na TV o Marques Mentes, o general Isidro e a aquele dos óculos com aros azuis da última página do Público;

- de beber e comer à vontade sem ouvir dizer olha que isto faz mal;



- que terminasse a guerra.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Pontos de vista

 


  • Do ponto de vista do mocho, do morcego, do boémio e do ladrão, o crepúsculo é a hora do café da manhã.
    A chuva é uma maldição para o turista e uma boa nova para o camponês.
    Do ponto de vista dos autóctones, o que é pitoresco é o turista.
    Do ponto de vista dos índios das ilhas Caraíbas, Cristóvão Colombo, com seu chapéu com plumas e sua capa de veludo vermelho, era um papagaio de dimensões nunca vistas.
  • Do ponto de vista do Sul, o verão do Norte é o inverno.
    Do ponto de vista de uma minhoca, um prato de espaguetes é uma orgia.
    Onde os hindus vêem uma vaca sagrada, outros vêem um grande hambúrguer.
    Do ponto de vista de Hipocrátes, de Galeno, de Maimónídes e de Paracelso, existia uma doença chamada indigestão, mas nenhuma doença chamada fome.
  • Do ponto de vista do Oriente do mundo, o dia do Ocidente é a noite.
    Na Índia, os que estão de luto vestem-se de branco.
    Na Europa antiga, o negro, cor da terra fecunda, era a cor da vida, e o branco, cor dos ossos, era a cor da morte.
    Segundo os velhos sábios da região colombiana do Chocó, Adão e Eva eram negros e negros eram seus filhos Caim e Abel. Quando Caim matou o seu irmão com um golpe de bastão, a cólera de Deus trovejou. Diante da fúria do Senhor, o assassino empalideceu de culpabilidade e de medo, e empalideceu tanto que continuou branco até morrer. Nós, os brancos, somos todos filhos de Caim.
  • Se os santos que escreveram os Evangelhos tivessem sido santas, como seria explicada a primeira noite da era cristã?
    São José, contam as santas, era mal-humorado. Era o único amuado na creche em que o menino Jesus, recém-nascido, resplandescia em seu berço de palha. Todos sorriam: a Virgem Maria, os anjinhos, os pastores, as cabras, o boi, o asno, os magos que vieram do Oriente e a estrela que os conduzira até Belém. Todos sorriam, salvo um. São José, entristecido, murmurou: “Eu queria uma filha.”

Eduardo Galeano

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Em modos de Natal.

 - Que tens tu?
- Nada. É Natal!
(Alexandre O'Neil)
- A árvore?
- Cortaram-na!
(Pata Negra)

sábado, 14 de dezembro de 2024

Chega para todos

É difícil alguém vir ao fim de semana a minha casa sem ter a oportunidade de observar a sequência de afazeres do Zé, serrador, criador de gado e meu vizinho.

Propus ao Gonçalves que viesse filmar um sábado do Zé, desde a primeira urinadela da manhã, que faz, note-se, de costas para o meu quintal e virado para o lado para onde pode dizer "já estou levantado ó Sol, podes nascer!", até ao lusco fusco, altura em que me dirá, mais alto ou mais baixo, consoante  a distância que nos separe, "também não tardo lá muito em cima dela!"

Fiz-lhe a proposta com frases cuidadas e recebi de imediato a reação dele, apoiada pela mãe viúva que com ele vive: sábado é bom dia porque vamos aqui ter um rancho na apanha da azeitona!

Não era bem isso que se pretendia mas não havia modo de explicar porque teria de ser de outra forma. E assim foi, no dia marcado, o Gonçalves apareceu e soltou o guião ao Manda-chuva que a mandou a potes, obrigando o operador a resguardar-se com a câmara em espaço coberto, motivo que fez com que a personagem principal, em vez do Tó Zé, passasse a ser a mãe enquanto cozinhava.

Toda a gente que já viu o filme deu por bem passados os trinta minutos.




quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Movimento contra a extinção das dúzias nas grandes superfícies

(Título alternativo: Divagações à volta do número 12)

Enganar fez sempre parte do negócio: o camponês que arrancou dentes ao burro velho para o vender na Feira dos 12, a balança propositadamente desafinada do merceeiro do bairro, o vinho com água do taberneiro da esquina, o homem que vendeu gato por lebre.

Mas o engano tomou descaradas proporcões com a consolidação da vitória do capitalismo das grandes superfícies comerciais sobre o comércio tradicional. Eles enganam com os grandes reclames e as letras miúdas, com as cores das luzes e os embrulhos opacos, com o lugar das prateleiras e com os descontos e ofertas e, como toda a gente sabe, com os preços terminados em 99. E o pior de tudo é que, mesmo com consciência disso, nós vamos ao engano como se este sistema fosse uma fatalidade à qual nos temos de render.

Depois de terem implementado a subtil subida de preços pela diminuição discreta de volumes e pesos, eis a sua mais recente invenção: embalagens de dez estão a substituir as de dúzias, essa referência numérica milenar.

Não sei se já se perguntaram porque é que os sistemas duodecimal (12) e sexagesimal (60), com origem suméria (onde em vez de se contar pelos 10 dedos se contava com o polegar da mão direita as 12 falanges dos outros 4 dedos e se ia multiplicando, até 60, pelos 5 dedos da mão esquerda), têm sobrevivido durante séculos ao sistema decimal?

Na verdade, o número 12, para além da sua presença em motivos históricos e religiosos, é, a par com o número 60, naturalmente utilizado nas medidas trigonométricas e de tempo. Mas como se explica que as dúzias e meias dúzias continuem a dar bastante jeito na gestão das quantidades domésticas?

Também nisso, os gestores do grande comércio mostram a sua insensibilidade ou, quem sabe, a sua ignorância, já que estamos em acelerado processo de substituição das embalagens de 12 por embalagens de 10, isto, claro, sem incomodar o consumidor com alterações de preços!

Sim, trata-se de gente que não está habituada a dividir com outros, pois que eu divido irmãmente uma dúzia de ovos por 2, 3, 4 ou 6 comensais, enquanto uma dezena apenas posso dividir por 2 ou 5, sendo difícil fazer a terça ou quarta parte.

12/12/24

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Peditórios de todo o país, uni-vos!

Quando chegou a minha vez de chegar à caixa registadora respondi:
- Não não vou dar nada, não dou aos pobres pela mão dos ricos!
 Tudo ficou de me comer: a senhora que ia atrás, o senhor que saía à frente, a operadora, a caixa , a câmara de videovigilância, o maior acionista!... 
Mas ninguém me comeu, ninguém se atreve a engolir ou mastigar aquele que lhes parece um monstro.
Também ninguém se prestou sequer a pôr a hipótese de eu ser pobre.

A verdade é que estou farto de peditórios.

É na caixa registadora e à entrada e saída do supermercado, e lá dentro o produto com a esmola incluída no preço, é à entrada e à saída do emprego e é lá dentro a colega irresistível, é o filho que traz umas rifas da professora de religião, é o professor de grego que quer ir com a turma à Grécia, é o cunhado que é sócio da associação columbófila, é a sogra que é confreira de São Vicente Paulo, a vizinha bombeira, é campanha, é sorteio, é na feira, é na rua, é nos semáforos,  é a santa de Fátima, é o relógio para a igreja, é contra a fome, o cancro e a cegueira, é pelas crianças, pelas mães solteiras e pelos idosos e é, sobretudo, porque é Natal, porque o Natal é economia, é dinheiro, é consumo, é comer, é uma gaita. O Natal é uma gaita!

Mas ao menos que concentrassem a atividade, que fizessem um império do ramo.

Façam  um único e grande peditório porque já não há paciência para tanta caridade avulso.Peditórios de todo o país, de todos os motivos e de todas as ocasiões: uni-vos!

(A água do rio não se trata na foz, cuida-se desde da nascente)


quarta-feira, 27 de novembro de 2024

O "homem que me persegue" não se dá na escola mas vende-se.

O "homem que me persegue" - à venda na FNAC e na AMCRC.


Foi na sala da fotografia, agora transformada em Centro de Convívio, que aprendi a ler e a escrever. 
O senhor Carlos, que veio "lá de cima" com uma "retraite", fez-se voluntário e toma conta do bar e coisa e tal. 
O senhor Carlos é também o meu agente de vendas local e o anúncio que escreveu no quadro de giz, faz do "homem que me persegue" um sucesso entre alfabetizados de poucas leituras.
Eu gostei muito de olhar para o quadro e constatar que um livro ainda pode valer o dobro dum chapéu com o emblema da Associação.
O senhor Carlos também está a ler o livro, segundo ele o primeiro que lê desde que saiu da escola, já lá vão quase 50 anos, e diz que o livro é uma pedra.
A semana passada fui à terra, mas o senhor Carlos não estava porque tinha ido a Paris ver a barriga da filha que está grávida e diz-se que lá vai voltar quando o neto for nascido.
Quando o senhor Carlos regressar, o livro voltará a estar à venda no balcão do bar da Associação.
O senhor Carlos diz-me que, quando está a ler as minhas histórias, não precisa de fumar mas há pessoas que, identificando indícios de acontecimentos ou de personagens lá da terra, dizem que eu sou um grande mentiroso. 
Pois eu digo que numa história que se inventa, a verdade deve ser pouca e é até provável que, na presente "mensagem", para além do facto de eu ter um amigo no facebook que se chama Carlos, apenas seja real a imagem da parede interior duma escola primária do tempo do outro senhor.

O livro agora também está à venda na Bookmundo:


sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Se não há desculpa para não comprar, é melhor arranjar razão para não ler!

(Desculpem lá aproveitar-me do espaço da pocilga para denunciar o "homem que me persegue" mas não tenho ao meu alcance muitas outras formas de divulgação).

Não me rendo à máquina monstruosa dos monopólios do capitalismo mas... 
Quem teriam sido as almas cibernéticas que puseram à venda na FNAC "o homem que me persegue" como se ele fosse um homem escravo, um aspirador ou um bacalhau?!

- Não sei mas faço ideia. 
Isto não me mete medo mas, se começaram a pingar os "royalties"... (ah!ah!ah! - boneco amarelo a rir - não sei pôr isso). 

Mas atenção: não me rendo nem me vendo!





sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Novo livro do Pata Negra

Cá estou eu novamente armado. Comprem! Comprem! Leiam! Leiam!...


quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Trump chegará a Portugal, como o Desejado, numa manhã de nevoeiro

Cenário: 

Uma festa familiar de classe média. Três casais, seis filhos, dois avós e uma avó. Três gerações.

Duas crianças, em idade escolar, divertem-se com um videojogo de guerra onde "vestem a farda" Delta Force num cenário nova-iorquino. 

Dois adolescentes em idade de liceu, um vê no tablet uma série policial passada em Los Angels e o outro delicia-se com um reality show da TV Las Vegas.

Dois jovens universitários entretêm-se mostrando um ao outro os telemóveis, com umas novas aplicações made in USA e que, estão convencidos, irão revolucionar a revolução digital.

Porque se trata de novas gerações, os seis filhos não se separam por sexo, o mesmo não se dirá dos adultos.

As mulheres estão na cozinha, a ver na TV um talk show americano que, segundo uma, chegará rapidamente a Portugal. Excepto a avó que anda de volta dos netos a perguntar se querem coca cola e se gostaram do almoço - se não gostaram da próxima vez leva-os ao Mac Donald´s.

Os homens estão a partilhar um whiskey Jim Beam pós refeição, na varanda. Excepto o avô que está sem poiso certo vagueando pela casa, parando junto das crianças a procurar atenção e tentando convencê-los a jogar pião, junto dos adolescentes para procurar carinho e desafiando-os para um dominó, junto dos universitários para os tentar entender e recomendando-lhes um livro de João Rato. Passa pela cozinha e mostra falsa curiosidade pelo que vêem. Vai à varanda e pergunta se não querem antes um tinto alentejano e manifesta claro desprezo pela conversa.

Um dos homens é oficial de infantaria e fala da sua aventura no Afeganistão dando razões à intervenção americana e à NATO e elogios às armas e ao treino que eles têm. Ninguém o contradiz. O outro homem, que é bancário, mudando a conversa, explica a crise financeira e a inevitabilidade de adoptarmos o modelo capitalista americano. Ninguém o contradiz. Muda-se o disco e o mais novo, que é pequeno empresário, dá vivas às leis laborais da América e assegura que ficaremos na cepa torta enquanto não se acabar com os sindicatos. Ninguém o contradiz. Fechada a conversa, dirigem-se à sala e perguntam aos filhos se não querem antes ver um filme de índios e cowboys como nos bons velhos tempos. 

Todos dão pela falta do avô, procuram-no, encontram-no. Está na casa de banho a limpar o rabo a um boné que tem a bandeira americana estampada e as iniciais USA. Pergunta-se, de quem é o boné? Pode ser de todos, dele é que não é!
A avó invoca o Nome de Deus em vão tal como os americanos fazem continuamente.

Poder-se-ia dizer, o velho enlouqueceu de vez. Provou-se que não quando ele disse para a família que se juntou atrás da avó, à porta da retrete:
- Ainda terei lucidez quando um dias destes assistir à eleição, com o vosso voto, dum Trump à portuguesa! Infelizmente ainda lúcido e felizmente mais que vós. 


sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Este dia não é de todos os santos mas de todos nós

1- Quando eu era pequenino o dia 1 de novembro era o dia do Bolinho. Nós,  os petizes,  íamos em bandos pedir, de porta  em porta, o Bolinho que podia não ser bolo mas nozes, tremoços, castanhas peladas, cinco tostões, rebuçados franceses,  "não tenho aqui nada" ou "sumam-se daqui para fora cachopos pedinchões!". 
No fundo tratava-se duma iniciação áquilo que os portugueses tanto gostam de fazer: pedidos e peditórios, recolhas de bens e angariações de fundos. 

O facto de sermos muitos ou poucos, filhos de fulano ou sicrano, mais ranhosos ou mais engraçados, tinha bastante influência na qualidade e quantidade das iguarias recolhidas. 
Um dia, já grandito, a esperta da minha mãe aconselhou-me a ir sozinho e recomendou-me as palavras e modos como devia chamar pelas tias e pedir o Bolinho - tive de ir três vezes a casa despejar a saca e juntei uma nota de Santo António de tostões, tal foi o sucesso.

2- Quando ganhei buço, o dia 1 de novembro passou a ser o Dia de Todos os Santos. Durante os loucos anos 70 e 80, o dia era de festa, de baile ou de andar de pipo em pipo para eleger a melhor água-pé da aldeia. Lembro-me num dia em que, pelas quatro da tarde, começámos quatro, e pela meia noite éramos  quarenta,  visitando todas as adegas, deixando em todas as casas do lugar um rasto de melodias e alegrias que avivaram as lareiras adormecidas das gerações mais antigas.

3- Agora que sou grisalho, queriam que eu começasse a viver o dia como o dia de ir ao cemitério mas está quieto: a minha gratidão não é de pétalas, a minha memória não é de mármore e a minha fé não é de cera. 

Enquanto dia especial do calendário, a especialidade do dia tem origem em celebrações pagãs aproveitadas pelo culto católico. Se a ligação aos santos não fosse leviana, a  bispalhada não teria prontamente oferecido ao governo "passosportas", em 2012, a sua extinção como feriado. Não fossem, posteriormente, os comunistas a exigir aos socialistas a reposição dos feriados extintos e ainda hoje estaríamos a trabalhar um dia à borla em nome não sei de que santos. 
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Focado nestes três tempos, vivente destas três idades, eis-me hoje em casa, sem crianças a bater-me à porta, sem amigos ou adega para virar uns copos e descascar uns tremoços, mas gozando um feriado de raízes ancestrais, dos celtas ou dos romanos, das bruxas ou dos padres, dos vivos ou dos mortos, mas de direito. Porque, se eu fosse trabalhar, trabalharia mais um dia do que no ano anterior e, assim sendo, a entidade patronal teria usufruído de mais um dia de trabalho meu do que no ano anterior, sem me pagar mais nada.

Viva o 1º de novembro! O feriado que é de todos os santos e, como santos não vemos, não é de ninguém.