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domingo, 23 de outubro de 2022

O GATO SUMIU! (texto modificado)



A empregada, ao telefone, anunciou a tragédia. E completou:


– O menino está lá embaixo, na garagem, procurando pelo animal!


Só faltava essa, disse para si mesmo, e encerrou a conversa com uma promessa.


– Em quinze minutos estarei aí!


Era um desses dias comuns, plúmbeo, uma garoa fria encharcando a cidade. Na metade do caminho ele pensou que, possivelmente, estava perdendo tempo, melhor era ir cuidar da vida, porque, francamente, não sabia em que poderia ajudar. Se o gato, gordo como sói acontecer com gatos bem alimentados, escapou pela porta aberta e resolveu dar uma espiada no mundo, quem poderia fazê-lo desistir de tal aventura?


 Em todo caso, naquele momento de perda, movido pela solidariedade, ele foi até lá.


Ao redor da mesa, após o almoço, todos tentavam evitar que as lágrimas escorressem pelo rosto. Havia uma tristeza genuína pelo desaparecimento de um dos “integrantes da família”. 


Na companhia do menino, foram procurar pelo desaparecido nas ruas próximas. Enquanto caminhavam pela quadra (olhos atentos a qualquer movimento suspeito), conversaram sobre a possibilidade de algum morador do prédio, criança ou adulto, ter sequestrado o felino. Como sempre acontece nessas circunstâncias, não concluíram nada, inclusive porque pairava sobre eles outra possibilidade – tão terrível que em nenhum momento foi mencionada.


Desolados, voltaram ao apartamento.


A mãe do menino, um pouco antes de sair para trabalhar, disse que iria confeccionar cartazes com fotos do bichano para distribuir na vizinhança.


Movidos pelo desespero, o homem e o menino resolveram revistar, outra vez, possíveis locais onde o gato poderia estar escondido: dentro dos armários da cozinha, nos guarda-roupas, nas áreas desabitadas do apartamento. Nos poços de ventilação e nas janelas imaginaram voos e outras bobagens – e nem sombra do animal.


Em algum momento, a voz do menino interrompeu as buscas.


– Você está ouvindo?


– O quê?


– Um miado.


Cético, o homem pediu que ele parasse de imaginar coisas e se concentrasse na procura.


– Não estou sonhando, eu ouvi o gato.


Depois disso, o menino olhou para o pai, com os olhos cheios de esperança. 


– Onde?


– Daquele lado.


Fez-se o silêncio. Esperaram que alguma coisa mágica acontecesse, um desses instantes típicos de cinema, a comprovação de que a vida, apesar de provas em contrário, é um encanto.


O som, fininho, abafado, foi invadindo o ambiente. De repente, tudo fez sentido. O menino se ajoelhou diante de uma das camas, ergueu a colcha e abriu a gaveta escondida ali embaixo. Ato contínuo, começou a gritar de alegria. Dormindo dentro da gaveta, o gato somente despertou quando ouviu que estavam chamando por ele. 


Aquele que até então estivera desaparecido, e que se chama Gato, espantado por tanto barulho, bocejou.


domingo, 16 de outubro de 2022

BREVE CRÔNICA SOBRE A INADIMPLÊNCIA (texto modificado)

 


Depois de protelar o máximo possível, ele foi até o banco. Assunto? Uma daquelas conversas chatas sobre saldo bancário. Após explicar a situação de insolvência em que estava vivendo, ouviu de Marli, a funcionária, um discurso muito educado, cordial. Na verdade, ela usou uma linguagem retórica, perigosamente sutil, cheia de ameaças veladas sobre procedimentos judiciais. Ele ainda tentou discutir alguns pontos. Tudo em vão. O banco queria receber – e rápido.

 

Enquanto a funcionária estava vasculhando, no computador, os arquivos implacáveis dos débitos, ele ficou esperando, sentado em uma confortável poltrona marrom. Tentou folhear o livro de crônicas do Antônio Maria que andava relendo. Esforço inútil: aquele ambiente não comportava espaço para a poesia.

 

A paisagem estéril envolvia todos aqueles que estavam dentro do prédio. Os passos apressados das pessoas, o dinheiro sendo manipulado nervosamente por alguns caixas, o olhar apreensivo dos funcionários burocráticos, conversas rápidas, soando como sussurros que encobrem graves segredos, o medo gotejando pelas paredes – tudo parecia conspirar para uma soma angustiante de terror. Ninguém estava interessado em saber as últimas trapalhadas dos políticos brasileiros. Nada era importante para o office boy que, na fila de depósitos, ouvia rock pelo fone de ouvido. Uma inconfundível funcionária pública conversava com uma amiga sobre as “últimas” da sua repartição (Aquela lambisgóia do terceiro andar, a loura, peguei ela com o chefe. Estavam em atitudes suspeitas no banheiro!). A estagiária estava sonhando com o vestido que usaria na festa de sábado. Para o chefe da segurança do banco, uma vitória do Flamengo era muito mais importante do que a remarcação de preços no supermercado.

 

A vida é a soma de muitas loucuras, filosofou. Depois de imprimir uma página enorme, onde constava “tudo” sobre a doença econômica que atinge a vida de quem precisa viver com um minguado salário, Marli fez, sem rodeios nem piedade, um pequeno (porém cruel) balanço da situação. Detalhou as razões da falência, mostrou extratos, perguntou sobre fontes alternativas de crédito, descartou a possibilidade de depósitos milionários naquela conta e, didaticamente, sugeriu medidas restritivas nos gastos. Depois, fez um longo sermão sobre as responsabilidades que se deve ter com o uso do dinheiro do banco! Por um instante quase imperceptível foi possível perceber que por trás daquela lengalenga havia uma dose muito forte do mais puro tédio. A voz, monocórdia, discurso decorado, alertava pela milionésima vez o horror dos tempos de crise.

 

Em seguida, utilizando-se impiedosamente do poder que lhe foi conferido pelo capitalismo, Marli começou a fazer cálculos sobre o montante que estava no negativo. Sugeriu um financiamento. Em seguida, relacionou uma série de documentos que deveriam ser apresentados e, sem sequer olhar para a “vítima”, repetiu as ameaças do início da conversa. Nada muito declarado, explícito. A velha linguagem da persuasão. Ficou no ar um clima pesado, difícil, daqueles que dá para cortar com faca. Ele sentiu que a conversa estava encerrada – nada mais havia para ser dito. Então, levantou da poltrona e foi embora. Antes, articulou alguma bobagem, qualquer coisa como Vou pensar no assunto. Depois eu volto.

 

Entre a poltrona e a escada, o sapato deslizando pelo chão, começou a recuperar os sons da cidade. Alguém riu, um carro buzinou, uma cadeira caiu e provocou olhares curiosos. Na porta do banco, o sol lambeu o seu rosto numa breve carícia. O dia estava bonito, como só podem ser bonitos na primavera. Sem muitas pretensões, deixou os olhos serem levados pelo doce ondular do corpo de uma mulher que passava. Tomado por uma súbita alegria, perguntou ao mundo, de que importam os naufrágios, se a vida se mantém na superfície – lúcida?


quarta-feira, 12 de outubro de 2022

E A COBRA FUMOU!

 

Foto de arquivo

O sangue lageano foi derramado em terras italianas. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), alguns integrantes do 2º Batalhão Rodoviário, sediado em Lages, fizeram parte do contingente brasileiro na luta contra a Alemanha nazista e a Itália fascista.

 

Depois de alguma hesitação do governo brasileiro, que demonstrava simpatia pelos governos autoritários que estavam transformando a Europa em um imenso campo de batalha, a situação se modificou. Entre os dias 05 e 17 de agosto de 1942, seis navios mercantes foram afundados por submarinos alemães. A morte de 600 pessoas em alto-mar comoveu o Brasil. O presidente Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954), um pouco a contragosto, e pressionado pelo governo de Estados Unidos, declarou guerra à Alemanha em agosto de 1942.


Os 25 mil soldados (de um total previsto de 100 mil homens), que constituíram a Força Expedicionária Brasileira (FEB), criada em 13 de novembro de 1943, foram comandados pelo General João Batista Mascarenhas de Morais (1883-1968). Treinada e equipada pelo exército estadunidente, a FEB somente entrou em combate em julho de 1944. Em um dos piores invernos do século XX, com uniformes inadequados para as baixas temperaturas, os brasileiros participaram de importantes batalhas na península italiana (Monte Castelo, Montese e Castel Nuovo, além de diversas escaramuças). Salvo engano, 462 soldados da FEB morreram em combate. Possivelmente, todos foram sepultados no cemitério militar de Pistóia (comuna da região da Toscana).


Em 1960, o governo brasileiro decidiu repatriar os restos mortais dos “pracinhas”. Com exceção de um soldado que não foi identificado (e ficou enterrado em Pistóia, no monumento construído em homenagem aos brasileiros que combateram na Itália), todos os demais corpos estão depositados no Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, localizado no Parque Eduardo Gomes, no bairro do Flamengo, Rio de Janeiro.


Foram 36 soldados do 2° Batalhão Rodoviário que combateram na Itália. Infelizmente, nove não regressaram: Oswaldino M. Rocha (2° sargento), Luiz Ribeiro Pires (3° sargento), Harry Hadlick (cabo), Manoel de Souza (soldado), José Garcia Lopes Filho (soldado), Octacílio de Souza (soldado), Joaquim Pires Lobo (soldado), José Januário da Costa (soldado) e Waldemar M. dos Santos (soldado).


Em Estórias de Minha Cidade (Lages: Gráfica Wilson, 1978), Edézio Nery Caon (1921-2008), ao fazer algumas considerações sobre a participação dos lageanos na II Guerra Mundial, diverge da relação publicada em O Continente das Lagens (Lages: Graphel/Eirali, 2021. 2ª ed.), de Licurgo Ramos da Costa (1904-2002). Provavelmente, os soldados (profissionais ou voluntários) citados por Caon serviram em diferentes unidades do exército. Entre outros nomes, menciona Edmundo Soldatelli, que voltou ferido e faleceu algum tempo depois.


PS 1) Há uma placa em homenagem aos soldados que perderam a vida na campanha da Itália no quartel do 1º Batalhão Ferroviário (que, em 1970, substituiu o 2º Batalhão Rodoviário – que, por sua vez, se transformou no 8º Batalhão de Engenharia de Construção, com sede em Santarém, no Pará).


PS 2) A expressão a cobra vai fumar, muito usada na primeira metade do século XX, significa algo difícil de realizar e que pode resultar em graves consequências. O equivalente contemporâneo é o bicho vai pegar. Nos anos iniciais da II Guerra Mundial, alguns jornalistas escreveram que É mais fácil uma cobra fumar do que o Brasil entrar na guerra. Talvez tenha sido essa brincadeira que incentivou o uso da expressão A cobra vai fumar pela Força Expedicionária Brasileira (FEB) – seu símbolo era uma cobra verde fumando cachimbo.



segunda-feira, 10 de outubro de 2022

NEWTON



Kafkaniano. Não há dificuldade em encontrar o adjetivo adequado. O obstáculo está em explicar o que existe de perturbador em Newton (São Paulo: Fósforo, 2022), de Luís Francisco Carvalho Filho.

O Estado, máquina aniquiladora das individualidades, tritura tudo o que fuja dos procedimentos regimentais. As leis, instrumento máximo do poder opressor, em lugar de estabelecerem regras para o comportamento social, se transformam em braços tentaculares das ações punitivas. Tudo o que não estiver devidamente regulamentado na legislação precisa percorrer caminhos árduos para adquirir substância – correndo o perigo de ser enquadrado nos dispositivos penais por desvio da norma.

Newton, o protagonista da novela homônima, adotou uma postura inusitada. Seja por idiossincrasia, seja por desobediência civil, resolveu revogar o passado. Ou seja, se despiu de sua gênese, de sua história, dos laços familiares. Disposto a viver à margem, não quer manter rastros identificáveis. Sem documentos, sem contas bancárias, acredita que estar vivo basta. Quer que o seu único contato com o mundo seja através dos textos que publica em um blog ou em livros.

Em algum momento, Newton comete um descuido (uma postagem sobre animais domésticos). Essa insignificância (potencializada por interpretação inadequada) desencadeia uma série de ações que revertem a invisibilidade desejada. Semelhante ao enredo de Der Prozess, mas com características provinciais, entra em cena o horror. Soterrado por uma avalanche de procedimentos policiais e jurídicos, que exigem informações, papéis, testemunhos, Newton conclui que o Estado quer que o indivíduo participe de um jogo viciado – e que dispõe de regras, muitas vezes, mutáveis. Caso contrário, será visto como uma aberração.

A narrativa, com grande dose de humor negro, amplia o absurdo. Dividida em 17 pequenos capítulos e estruturada no diálogo (próximo do texto teatral), diluí um dos elementos essenciais da literatura contemporânea, o narrador. Mas essa falta não compromete o enredo – ao contrário, o torna mais eficaz, porque apresenta uma proposta visual e tátil, onde o leitor consegue perceber a angústia e a violência em cada fala, em cada gesto dos personagens.

Nas conversas, os interlocutores não conseguem encontrar qualquer ponto em comum. Em nenhum momento do texto existe sintonia. Os personagens falam para as paredes – ou para o leitor –, mas nunca entre si. E isso ocorre porque Newton, guiado por suas convicções, recusa qualquer tipo de conciliação.

O mecanismo repressivo usa essa postura como combustível para se tornar mais ativo, mais cruel. Depoimentos na delegacia, investigação da polícia federal, processos judiciais – a lista de acusações se multiplica e exige que advogados surjam como intermediários entre o inferno burocrático e o sossego. Evidentemente, nada se resolve (seja pela lentidão do mecanismo jurídico, seja porque o caso precisa constituir um modelo exemplar contra aqueles que ousam desafiar as instituições).   

Dentro do labirinto, acuado por todos os lados, Newton se torna vítima de procedimentos que não possuem compaixão, que não querem compreender os argumentos que lhes são contrários. A condenação, antes do julgamento, não demora.    

Na cena final, desfecho quase óbvio de uma sucessão de insanidades, a lição darwiniana surge cristalina: somente sobrevivem aqueles que se adaptam ao meio, os que se submetem à servidão voluntária. 

Narrativa asfixiante, incômoda, nonsense – mas, particularmente, verossímil –, Newton comprova que a tragédia costuma acompanhar o mundo jurídico brasileiro.