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sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

CONTAGEM REGRESSIVA

 


Ao se aproximar o fim do ano, cabe lembrar uma cena do romance O Leopardo (Il Gattopardo), escrito entre 1954 e 1957, por Giuseppe Tomasi, Príncipe de Lampedusa, e publicado em 1958 pela editora Feltrinelli. Trata-se de uma interpretação ficcional do período histórico italiano conhecido como Risorgimento.

Em conversa privada, ao comentar a necessidade de unificar a Itália, Tancredi, príncipe de Falconeri, diz ao seu tio, Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina, Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude.

Mais do que uma lição sobre a volatilidade das ações humanas, a frase carrega dentro de si a projeção sobre o quanto nos iludimos com a possibilidade de que as mudanças acenam com aspectos positivos. O autoengano é uma benção divina. E a crueldade do real (seja lá o que isso for) não tem limite.

As festas de réveillon produzem a sensação de que basta arrancar a última folha do calendário e o paraíso se instala. Ano novo e vida nova – anuncia uma frase de autoajuda muito lembrada por parte da população. De acordo com essa proposta, os problemas (familiares, econômicos, políticos) podem ser dissolvidos entre taças de espumante e colheradas de lentilha. Pular sete ondas, comer romã e vestir roupa de determinada cor também serve como portal para a prosperidade.

O idealismo cotidiano se alimenta na mitologia de que a tábua de salvação une a esperança com a alegria.  

Também conhecido como o ano da vacina, 2021 injetou (literalmente) uma dose de otimismo na população brasileira. Não faltarão pitonisas para prever que, com as energias renovadas, chegou o instante de lutar por um novo tempo.

E isso significa que cada ação, cada decisão, pode servir de catapulta para mudanças mais significativas. Ter-se-á fôlego para todo esse esforço?  Nas palavras de Romain Rolland (citado por Antonio Gramsci), o pessimismo da inteligência não deve abalar o otimismo da prática. Então, diante da visão lastimável que o presente nos oferece, cabe tentar modificá-lo. Mas, vamos com calma. Historicamente, nenhuma revolução garantiu contentamento ou delicadeza. Em alguns casos, resultou em mais confusão. Faz parte do espetáculo – e deve servir de alerta para as ilusões de felicidade instantânea. O ceticismo é o elixir da sanidade.  

Inadmissível é o discurso da servidão voluntária, o acomodamento, o imobilismo. Na perspectiva do arqueiro zen-budista, mudar a direção da seta significa escolher entre o acerto e o erro. Resta saber qual é o alvo.

Esperar pelo fim do ano e por mudanças estruturais deve ser um objetivo, mas não pode ser confundido com algumas atividades humanas – que oscilam entre a má-fé, a falta de coerência e os inúmeros valores pessoais. Deve-se ter consciência de são raros os momentos em que o interesse coletivo superou o interesse pessoal. Muitas vezes, a catástrofe acompanha os ladrões de galinha – essa espécie abundante no cenário nacional.

Também é necessário entender que algumas mudanças são apenas uma forma de fornecer um papel de embrulho novo para um produto antigo. Qualquer semelhança com as eleições presidenciais de 2018 não será mera coincidência.

Feliz ano novo!


sábado, 11 de dezembro de 2021

PORQUE TEMOS O DIREITO DE SONHAR

 


Na pátria de chuteiras, sempre fui um perna-de-pau. No colégio era o último a ser escalado nas aulas de educação física. Alguns companheiros de time ficavam irritados por ter que me aceitar na equipe. Diziam que estavam recebendo um estorvo, alguém que, em algum momento, cometeria um erro grave (desses que resultam na perda da partida). Não é possível negar, aconteceu – umas duas vezes, talvez mais, não sei, o inconsciente bloqueou esse tipo de lembranças. Inclusive porque, naquelas circunstâncias, a honra da senhora minha mãe foi agraciada com doses exageradas de carinho.


Em algum momento, desisti do futebol. Infelizmente, nunca consegui me separar do esporte. Durante alguns anos precisei acompanhar os jogos de futebol de salão do filho. Foram partidas sofridas, nas manhãs de sábado e domingo. Muitas vezes saímos de casa antes das sete da manhã – embora o confronto só acontecesse lá pelas dez horas. Bocejando, vi os meninos perderem incontáveis vezes. Eles não jogavam mal, mas eram ineficientes no ataque.


Em uma oportunidade me vi torcendo entusiasticamente. Pelo outro time! Contaminado pela luta de classes, ao ver a precariedade econômica dos adversários, que representavam uma escola da periferia, só percebi a contradição quando era tarde demais. Constrangido, optei por sair do ginásio, fui respirar um pouco de ar puro, diminuir o estresse, esperar pelo fim do jogo com o coração acelerado.


Poucas vezes fui ao estádio Vidal Ramos Júnior, mas assisti – ao vivo e em cores –, na companhia do filho e de alguns de seus amigos, algumas partidas de futebol profissional do Internacional e do Lages Esporte Clube (LEC). Lembro que, em um jogo contra o Figueirense, válido pelo campeonato catarinense, os meninos estavam muito interessados no cachorro-quente, na pipoca e no churrasquinho de gato. É que, em campo, não estava acontecendo nada de importante. Foi uma pelada digna do Íbis (inúmeras vezes considerado o pior time de futebol do Brasil).


Porque temos o direito de sonhar. Foi com essa frase de impacto que o herdeiro de minhas dívidas e dúvidas me convidou para assistir ao jogo entre as Leoas da Serra e a equipe de Taboão da Serra, válido pela semifinal da Copa do Brasil de futebol de salão feminina. A pandemia e o distanciamento social tinham me feito esquecer o quão caótico é o mundo dentro de um ginásio de esportes. O barulho ensurdecedor do tambor no meio da torcida, as crianças correndo para lá e para cá, pessoas que esbarram em outras pessoas, fotógrafos e videomakers de celulares, o vendedor de cervejas e refrigerantes que não estava usando máscara, e as meninas (ponytail queens, como gosto de chamá-las) que, quase desesperadas, impuseram um ritmo frenético ao primeiro tempo do jogo. Tudo parecia conspirar para um final feliz. O desastre surgiu no segundo período, não só pelo placar (3 x 2 para as adversárias), mas porque foi um dos últimos jogos de Amandinha (uma das melhores jogadoras do mundo) e de Tampa, que estão se transferindo para outras equipes.


Dizem que o futebol é a continuação da guerra por outros meios e que, no esporte, a frustração é uma companhia constante. Não tenho como avaliar essas afirmações, mas lembrei das palavras de Nelson Rodrigues, em outro contexto, em futebol, o pior cego é o que só vê a bola.


domingo, 5 de dezembro de 2021

DUAS OU TRÊS COISAS QUE SEI SOBRE O MERCADO PÚBLICO

 


Em algum momento do passado, não lembro quando, eu era pré-adolescente, fui com meu pai ao Mercado Público. Talvez fosse próximo da Semana Santa. Minha família seguia o costume religioso de comer peixe nessa época do ano. E lá era o lugar ideal para comprar esse tipo de alimento, que vinha do litoral – naquela época ninguém se interessava pela piscicultura na região.


Minhas recordações estão enevoadas e talvez se confundam com outros momentos. O que tenho nítido é que havia um restaurante, desses com piso de oleado e paredes engorduradas. Em cima do balcão estavam vários vidros com doces e salgados em conserva (cebola, ovos, sardinhas). Provavelmente havia uma estufa de vidro com pasteis, coxinhas e croquetes. Em algumas mesas de fórmica, várias pessoas, enquanto conversavam em voz alta, bebiam cerveja ou faziam algum tipo de refeição. Era uma agitação que parecia não ter fim.


Dentro do mercado, numa ampla área coberta, vários estandes comercializavam hortifrutigranjeiros, galinhas (vivas e mortas), queijos, embutidos diversos e carnes. Tudo vindo diretamente do campo, como era normal em uma cidade de origens rurais. Os peixes (e aquele cheiro característico) ficavam em separado. Alguns estavam em um aquário, era possível levá-los vivos para casa Também eram vendidos em postas.


Naquele tempo, a inspeção sanitária não existia (ou era ineficiente) e as pessoas estavam imunizadas contra alguns tipos de bactérias. Não sei se a vida era melhor, o que posso dizer é que parecia ser menos complicada.


Provavelmente voltei lá outras vezes. O Mercado Público sempre foi uma referência, um lugar onde as pessoas se encontravam para fazer negócios ou para conversar. Em algum momento, a modernidade bateu nas portas da cidade e o lugar perdeu a importância. Foi substituído pelos supermercados – que descentralizaram os pontos de comercialização dos gêneros alimentícios. As compras mudaram de endereço e os produtos industrializados invadiram a vida familiar. Para as miudezas, ou para alguma emergência, o povo usava os mercadinhos de bairro, que adotavam o sistema de anotar as compras na “caderneta”. O acerto era feito no final do mês, quando as pessoas recebiam o salário e saldavam os débitos. Mas esse sistema também foi sendo ultrapassado pela diversidade das ofertas e pela competição predatória das redes de comercio varejista.


Olhando para esse tempo que ficou preso na memória, imagino que muitas histórias podem ter acontecido dentro do Mercado Público. Como não foram registradas, só nos resta fazer alguns exercícios de imaginação. Talvez o verdureiro tenha se apaixonado pela moça que vendia flores. Tímido, nunca confessou a paixão e acabou se casando com a mulher que trabalhava na banca de artesanato – e que jamais pensou em ter marido, o que ela ambicionava era comprar um par de sapatos novos. Talvez a senhora que escolhia berinjelas, brócolis e bergamotas estivesse pensando nas decepções que acompanham a vida. Talvez o jornalista caminhasse no meio da multidão, procurando por uma boa história – sem perceber que a beleza se esconde entre as coisas mais banais. Talvez aqueles trocados recebidos pelos meninos que faziam frete representassem a diferença entre ter um prato de comida e passar fome.


Talvez essas histórias (as que aconteceram e as que foram inventadas) não tenham a mínima relevância, o passado é constantemente soterrado pelo presente.


quinta-feira, 25 de novembro de 2021

SAUDADES DAS AGLOMERAÇÕES CULTURAIS

 


Frequentar vernissages e lançamento de livros era um dos esportes mais interessantes da vida cultural noturna. Era. A pandemia mudou essa forma de interação social, transportando os encontros para o mundo virtual. As lives e a ausência de materialidade dos streamings (um novo não-lugar) eliminaram ruídos e espaços para desavenças (a acomodação é uma espécie de câncer cultural). O contato humano (pele que transmite calor para outra pele) desapareceu e foi substituído pela atuação teatral diante da câmera. Todos se comportam como se estivessem em casa de chá. Tudo ficou anêmico.

As reuniões presenciais eram boas desculpas para ampliar o convívio social, praticar a trambicagem artística, estabelecer parcerias comerciais, fingir interesse pelas questões educativas e, se os deuses permitissem, iniciar algum contato amoroso (mesmo que fosse apenas por uma noite). Enquanto esses planos (modelo Dick Vigarista) eram colocados à disposição do distinto público, cabia se servir de bebidas alcoólicas e salgadinhos diversos. A qualidade dos quitutes  (queijos e embutidos, todos de procedência duvidosa) dependia do poder aquisitivo do artista ou dos patrocinadores do evento. O mesmo vale para o vinho que oscilava entre um chardonnay australiano e aquele tinto de garrafão, comprado no atacadista da esquina. No segundo caso (muitas vezes no primeiro), alguns convidados e penetras (mais aquinhoados pela vida econômica) costumavam levar aquelas garrafinhas de metal, escondidas no bolso interno do paletó, cheias de uísque ou conhaque de boa procedência – medida paliativa para evitar problemas hepáticos no dia seguinte.

Por pior que fosse o sortimento de acepipes, cabia forrar o estômago com euforia – a jornada era longa e as tentações, inúmeras. Depois do evento, a inevitável parada no boteco de preferência era de lei. Aditivados por incontáveis canecas de cerveja estupidamente gelada, ninguém poupava ninguém e os comentários politicamente incorretos não sofriam censura. Nada muito maldoso, apenas o necessário para firmar posição contra os medíocres. E isso incluía, em 99% dos casos, o artista e grande parte da lista de convidados.  

Recentemente, tomando todos os cuidados necessários (máscara, álcool em gel, distanciamento social) fui ao lançamento de um livro. Foi bom  porque estava com saudades de ver gente com quem se tem um mínimo de afinidade. Foi uma decepção  porque além de não oferecerem algum tipo de petisco, serviram água mineral (sem gás!). Parecia reunião dos Alcoólicos Anônimos (AA). Como é possível desenvolver a conversa sem poder “molhar a palavra” (como dizia um amigo)? Como é possível se livrar de um chato sem a boa e velha desculpa de pegar um pastelzinho na bandeja que adeja nas mãos do garçom?   

Encontrei uma cadeira no fundo da sala, próxima da janela, e lá fiquei fazendo pose de voyeur, triste compensação para quem não podia dispor, naquele momento, da sempre bem-vinda tonturinha alcoólica. Esporadicamente trocava algum comentário com os conhecidos. Mas, o ambiente não apresentava intensidade ou estímulo para diálogos mais significativos.

O que eu queria, naquele momento, era sair dali o mais rápido possível e ir para casa: a cerveja estocada na geladeira estava me chamando. Foi o que fiz – logo depois de conseguir o autógrafo do autor.   

 

terça-feira, 23 de novembro de 2021

LAGES: 255 ANOS

 


A aventura protagonizada pelo Capitão-mor António Correa Pinto de Macedo (1719-1783), sob as ordens do Morgado de Matheus, Luiz António de Souza Botelho Mourão (1722-1798), teve inicio em 22 de novembro de 1766. Nessa data foi fundada a Freguesia de Nossa Senhora dos Prazeres das Lagens (elevada à condição de Vila em 1768), situada nas margens do rio Carahá, e próxima do rio das Caveiras. A vila foi desmembrada da Capitania de São Paulo em 1820. Mais tarde se transformou em cidade. A população se multiplicou.

 

Mas, até que isso acontecesse foi necessário superar muito perigos: animais selvagens, assaltantes e a resistência indígena. As ameaças de invasão das tropas do reino de Castela e Aragão (mais tarde, Espanha) também eram uma preocupação. Foram tempos difíceis para aqueles que desbravaram a região. O sucessor do fundador, Capitão-mor Bento do Amaral Gurgel Annes (1730-1812), que administrou a Vila entre 1787 e 1802, precisou ser enérgico e corajoso. O mesmo se pode dizer dos governantes seguintes.

 

Muitos anos depois, a cidade que, em certo momento, esteve dividida entre Colorados e Guarani “até debaixo d’água”, entre quem gostava de Crush ou de Capilé, entre quem ia ao cinema no Tamoio ou no Marrocos, foi unificada por Plínio Lürsen (aquele que deixava os adversários “comendo poeira”), Agostinho Malinverni Filho, Nereu Ramos, Vidalzinho e muitos outros. Sem esses personagens, a história de Lages seria mais pobre. Foram eles, os herdeiros dos desbravadores, que testemunharam a evolução do município e um de seus momentos mais emblemáticos, o ciclo da madeira (que misturou as palavras pinheiro e dinheiro). O que aconteceu depois ainda está para ser contado pelos historiadores e ficcionistas.

 

No aspecto geográfico, assim como Roma, Lages está cercada por sete colinas. Era isso o que dizia o escritor Marcio Camargo Costa, citando o Morro Grande, o Morro do Posto, o Morro do Sabão, o Morro do Tributo, o Morro do Juca Prudente, o Morro da Curva da Morte e o Morro que leva aos (atuais) bairros Ipiranga e Petrópolis. Talvez essa afirmação precise de correção, talvez ele tenha esquecido alguma coisa. O que importa saber é que a planície é uma ilusão – e, assim como a vida, está cheia de altos e baixos.

 

Há compensações em morar no interior de Santa Catarina. Poder olhar para o horizonte, um azul que parece pintado à mão, uma diversão da natureza, o sol multiplicando as cores, as flores e as nuvens (um convite para brincar de adivinhação), é um prazer que não se repete em outros lugares. E que se soma com outras qualidades, como a pureza da água e do ar. A vida, neste canto do mundo, é um encanto. O progresso e a tecnologia não eliminaram as delícias que são andar descalço na grama, visitar os familiares, namorar na praça, comer pão feito em casa. Tampouco excluíram o uso de expressões regionais como "homi du céu", "djáoji", "trezantonte" e "bombiá". Lages é o que é e há certo orgulho em ser assim.

Nesses 255 anos de existência de Lages, unindo a nostalgia, a saudade daqueles que não mais estão aqui, os amores, os amigos, as histórias complicadas, sobrou a sorte de morar em uma cidade que sempre conseguiu superar as adversidades, que nunca teve medo do futuro. 


segunda-feira, 22 de novembro de 2021

DANIEL LUCENA (1960 - 2020)


Louise Lucena, Daniel Lucena, Francisco José Soler de Matos
e Valéria Lucena em algum festival estudantil de música.  


No passado distante, talvez entre 1975 e 1977, fui colega do Daniel Lucena no Colégio Industrial de Lages (CIL). Não posso dizer que éramos amigos. Embora estudássemos na mesma sala, conhecidos me parece mais adequado. Mas isso provavelmente é culpa minha, sempre fui arredio a certas demonstrações de afeto. Além disso, conversávamos muito pouco, provavelmente porque tínhamos preocupações divergentes. Ele demonstrava grande interesse pela música (fazia parte de uma banda, dessas que se apresentavam em festivais) e eu passava todo o tempo livre na Biblioteca Pública, lendo e escrevendo.

Estivemos próximos em uma ocasião em especial. As professoras de português do CIL, Vânia Albuquerque e Célia Regina Ranzolin, inventaram um concurso literário. Não sei se desejavam movimentar a vida dos estudantes ou se estavam entediadas com o esquema quadro-negro e decoreba que caracterizava o ensino formal da época. Nós dois, além de dezenas de outros alunos, nos inscrevemos na competição – que foi realizada no Salão Nobre do CIL (que também era a sala de recreação). Convidaram o Nereu de Lima Goss (1924–2004) para ser um dos jurados. Talvez outras pessoas, além das professoras, fizessem parte da banca julgadora, mas não me recordo de ninguém.

Daniel apresentou uma proposta muito diferente da minha. Ele apostou em uma crônica satírica sobre o ensino profissionalizante. Eu escrevi um poema que defendia a consciência social em um mundo que (na minha visão) estava em ruínas. Felizmente, para o bem da literatura, as duas “obras de arte” não existem mais.

A parte chata da programação estava na apresentação do trabalho. A vítima precisava subir em um estrado e ler o texto diante de quase toda a escola. Exigia-se boa dicção e simpatia. Nisso nós também nos diferenciamos: ele era um sujeito extrovertido, que não tinha medo da plateia; eu, tímido, mal consegui ler o poema, queria era fugir daquele lugar o mais rápido possível.

Depois de deliberarem sobre a qualidade do material apresentado, os jurados resolveram premiar os nossos escritos. Não lembro qual foi o prêmio. Talvez um ponto a mais na média mensal. Tenho certeza que não foi dinheiro. Também fomos publicados no jornalzinho da escola (editado pelo Centro Cívico), que era uma folha A4 dobrada ao meio, mimeografada a álcool. 

Uns dois ou três semestres depois, deixei o CIL no meio do ano e fui tentar resolver minhas crises pessoais em outro lugar. Possivelmente, Daniel  terminou o curso secundário no CIL.

Fiquei muito tempo sem ter notícias dele. Em algum momento, vários anos depois, e não sei precisar quando, descobri que era o vocalista e o principal compositor do Expresso Rural (provavelmente o grupo musical mais importante da história de Santa Catarina). Mas, quase nada sei sobre como isso se tornou possível.

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Fui, dia 20 de novembro, ao lançamento de Algum caminho que me leve ao sul, a biografia autorizada de Daniel Lucena, escrito pelo psicólogo Felipe Rigon Borba. O evento aconteceu no Casarão Juca Antunes (esquina das ruas Benjamin Constant e Coronel Córdova) e contou com grande público. Aos poucos a vida cultural da cidade vai retomando o seu rumo.



quarta-feira, 17 de novembro de 2021

MIOSÓTIS E O BETÃO DA PENHA (versão modificada)

 


Vestindo a bombacha suja, arregaçada na perna esquerda, tomando a sua cervejinha básica de toda hora, ali no balcão do bar Grenal, Adalberto Medeiros Silva e Souza, o Betão da Penha, viu Miosótis passar. Quer dizer, naquele momento, ele não sabia que a moça se chamava Miosótis, mas com aquele ar de delicadeza só podia ter nome de flor.

Betão deixou sobre o balcão uma nota de dez reais e, tastaviando, saiu à rua. A mulher tinha desaparecido na multidão. Quer dizer, pela rua caminhavam umas cinco ou seis pessoas, mas nenhuma delas era Miosótis. Como acontece nesse tipo de situação, a ausência instalou uma fenda no peito de nosso herói. Buraco que ele tentou preencher com um Amazonas de cervejas, quando voltou ao balcão do boteco. Só tentou. Um sentimento complicado impediu a inundação. Será possível sentir saudades de uma mulher que lhe era − até aquele momento − estranha?

Betão sentiu medo. Para aquele que anulava os finais de semana domando touro e cavalo, medo era uma palavra difícil de aceitar. E, por mais estranho que isso possa parecer, Betão estava com medo. Medo de se apaixonar.

Foi então que o seu olhar, até aquele instante vago e incerto, se encheu de alegria e esperança. Ele viu, na parede do bar, um cartaz da festa do Pinhão. Não sei se foi a cerveja, o destino ou pura sorte, mas ele teve a premonição, naquele instante, de que Miosótis estaria lá, na festa. Recuperou a consciência e a lucidez. E tomou uma decisão. Iria à festa. Iria encontrar aquela prendinha mimosa qui nem orquídea na encosta da serra, qui nem pelego em noite di inverno, qui nem....

Para comemorar essa decisão, solicitou ao garçom uma garrafa de água mineral. Sem gás. O garçom ficou apavorado com o inusitado do pedido.

Durante a semana, com o olhar de cachorro pidão, Betão aguardou. Aguardou pelo dia da festa. A espera corroeu a alma, atiçou a úlcera que cultivava com carinho e o tornou irritadiço. A isso devemos acrescentar outros horrores: roeu unhas, se alimentou mal, empalideceu. Como um personagem romântico, sofreu de amores.

No sábado, por cima da camisa de seda amarela, fez questão de usar um lenço colorado. E assim vestido, como um piá que vai para a primeira comunhão, esticou as canelas até o Parque de Exposições do Conta Dinheiro.

Mal chegou lá, encostou-se no primeiro balcão que viu e, pra firmá o purso e diminuí o nervoso, pediu um liso de cachaça. Depois, tomou uma cerveja − para rebater.

E teria ficado ali durante uma eternidade se não tivesse encontrado um amigo de infância. Começaram a contar causo dus antigamente. Betão se distraiu e a conversa ficou loca di especiar, qui nem dinhero achado.

Depois de umas dez cervejas e duas porções de linguiça frita, Betão foi procurar pela futura namorada. Queria conquistar aquele coraçãozinho de gazela.

No quiosque do Gervásio pediu um engradado de cerveja e disse, em alto e bom tom, para quem quisesse ouvir, que o amor precisa ser comemorado como uma dádiva divina. Em seguida, mandou distribuir pra xiruzada macanuda metade das ampolas. A outra metade fez corredeira na garganta de Betão. Pelo entusiasmo, poder-se-ia dizer que o cara estava disposto ao crime.

Isso era apenas aparência – tanto que Betão estava bebendo para afogar as mágoas. Em sua mente, a vida parecia letra de bolero. Só faltava ouvir as vozes de Lucho Gatica e Altemar Dutra: El día que me quieras / la rosa que engalana se vestirá de fiesta con su / mejor / color.

Pediu mais alguns quilos de cerveja, vários centímetros de cachaça e diversas coxinhas de galinha (uma gota de óleo escorreu pela camisa). Algum tempo depois, debruçado sobre a mesa de metal, babando ligeiramente, entrou em coma alcoólica.

Foi nesse instante que Miosótis, na companhia de amigos, sentou-se próxima da mesa onde o esqueleto de Betão da Penha roncava. Com voz de puro veludo, a garota pediu um guaraná diet. E, intimamente, lamentou não ter namorado.

 

domingo, 7 de novembro de 2021

DISTRAÍDO

 


Sofro de distração. Algumas vezes pensei em pedir ajuda especializada para, no mínimo, tentar entender o que está acontecendo. Enquanto isso, acrescento no currículo várias confusões e encrencas − algumas absolutamente ridículas. Um amigo, em momento de irritação e mau humor, disse que sou tão alienado em determinadas situações que – se um dia o mundo acabar – vou perder o espetáculo.

Diferente de alguns distraídos clássicos, minha patologia nunca passou pela humilhação de usar sapatos (ou meias) diferentes. Tampouco precisei amarrar fio de barbante (ou de linha) nos dedos para recordar alguma coisa importante. Jamais saí à rua faltando botão na camisa. Sempre tirei os óculos antes de ir para o banho. Em tempo algum entrei na sessão errada de cinema. Ah, consegui evitar o vexame que é esquecer o lugar onde o carro está estacionado (embora isso não seja vantagem: nunca tive carro e não sei dirigir).

O meu problema sempre foi de outra (des)ordem: nomes, datas, rostos. Repetidamente esqueço o dia de vencimento das contas – o que me causa problemas com multas. Raras vezes consigo recordar do rosto das pessoas que me foram apresentadas na semana anterior. Certa vez quase viajei para Florianópolis sem documentos e dinheiro (a carteira ficou em cima da mesa e só percebi a tragédia dentro do táxi). Prometo escrever textos e só percebo a proximidade do “dead line” umas duas horas antes (nessas situações, pedidos de desculpa sempre se mostraram insuficientes). Raramente me lembro dos aniversários (irmãos, sobrinhos, amigos). Sou um desastre na arte cavalheiresca das boas maneiras sociais e familiares. Quem me salva é a agenda do telefone celular, programada para avisar que o circo vai pegar fogo se algo não for feito em regime de urgência.

O vexame maior ocorre em relação ao nome das pessoas. É um problema sério para quem trabalha com cultura (e jornalismo). No meio de alguma conversa... você olha para a vítima e não consegue lembrar se o sujeito se chama Joaquim ou Adalberto. É o horror. Então, para tentar diminuir a agonia, é preciso improvisar e tirar da manga alguma palavra mágica: senhor, doutor, mestre,... E fingir que tudo está bem. 

Um exemplo clássico (e constrangedor) ocorreu quando encontrei alguém que estudou comigo. Fazia tempo que não o via. Por convenção, costumo tratar todo mundo pelo primeiro nome. Depois de conversar um pouco sobre os velhos tempos, me despedi. Abraços, Paulo! E fui embora. Coincidentemente, encontrei “Paulo” várias vezes depois disso. Estaria tudo bem se ele não tivesse perdido a paciência: Meu nome é Júlio. Meu primo, que também estudou conosco, é que se chama Paulo. Então, não esqueça: eu sou o Júlio! Passar vergonha não tem preço!

Quando preciso ir ao supermercado, faço uma lista do que devo comprar. Muitas vezes a esqueço em algum lugar entre a geladeira e o microondas. Então, trago para casa produtos que não são necessários. E aqueles que deveria ter comprado ficam para trás. Resultado: nova visita ao templo do consumismo. 

Vivo caminhando nas nuvens, como diz a sabedoria popular. Como não tenho aptidão marqueteira para transformar minhas deficiências em algo positivo, muitos adjetivos ofensivos (antipático, esnobe, entre outros) costumam ser disparados em minha direção. Alguns acertam o alvo.

Na Internet, escuto algumas vezes um sucesso antigo, cujos versos eu deveria aceitar como um resumo de minhas bagunças: O acaso vai me proteger / Enquanto eu andar distraído.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

DESAFI(N)ANDO

 


Dizem que não há desgraça pior do que nascer desafinado. A pessoa pode acreditar em extraterrestres, ser viciada no jogo do bicho, praticar o veganismo ou pior, muito pior, dominar a trigonometria, são os azares da vida, ninguém está livre desses acidentes. Mas, desafinar, ah, desafinar é um defeito imperdoável.

Basta uma nota musical fora do tom e o sujeito se transforma em pária social. A harmonia desaba, o caos se instala, o universo mostra as suas ruínas. É algo que se aproxima do horror que existe nos dramas gregos, nos tsunamis, na derrota do império bizantino em 1453, no gol do time adversário aos 50 minutos do segundo tempo.

Ninguém se compadece dos desafinados. Ao contrário. Querem retirá-los da festa. Dizem que quem não sabe brincar não deve descer para o playground. Alegam que é de conhecimento amplo, geral e irrestrito que a vida fica mais tranquila quando se segue as instruções contidas na partitura, a beleza expressa no conjunto de instrumentos e vozes uníssonos. Abençoados sejam os bem-comportados, aqueles que não encontram maldade no mundo!

Condescendente, tentando acalmar os ânimos, alguém lembra que no peito dos desafinados também bate um coração. Bobagem. Tolice. Asneira. Disparate. Sandice. Sobram adjetivos. E nenhum é subjetivo. Os corações desafinados são corações mais maltratados do que os corações maltratados que encontramos pelas ruas da cidade. Ninguém deseja esse tipo de sofrimento. Ou deseja? Inúmeros boleros, tangos e tragédias parecem dizer que sim. E isso soa estranho.

Pois é, o amor se parece com música desafinada. Diversos elementos concorrem para esse abismo: os desentendimentos entre a soprano e o tenor, o gozo desencontrado, a flutuação do dólar, o amargor do mel, as fronhas de listras que não combinam com os lençóis floridos. Parece que há uma guerra em curso e que tudo gira em torno de migalhas e estilhaços. Às vezes o melhor a fazer é trocar a playlist do Spotify.

O que sei é que está cada vez mais difícil de viver sem desafinar. Em algumas ocasiões o desafio ocorre quando estamos tentando batucar caixa de fósforos, num desses sambas de fundo de quintal. O ritmo se esfarela nos dedos sem musicalidade. Em outros momentos, basta atravessar a rua – o lado oposto da calçada fica distante quando a música urbana parece não se importar com a vida.

Em outro canal desse dois prá lá dois prá cá é possível encontrar – em rota de colisão – a mentalidade dissonante. Torquato Neto disse da necessidade de desafinar o coro dos contentes. Carlos Drummond de Andrade, concordando com o piauiense, defendeu a ideia de que uma das tarefas da poesia (e do poeta) é ser gauche na vida. Nessa (des)ordem, eles não estão sozinhos. Étienne de La Boétie (amigo de Michel de Montaigne) era contra o discurso da servidão voluntária. Henry David Thoreau pregava a desobediência civil – uma forma de dizer não ao comportamento de manada.

Em uma das reprises do espetáculo, Nelson Rodrigues está cantarolando afinadíssimo – que toda unanimidade é burra.     

 

domingo, 24 de outubro de 2021

MINHA MÃE, A INQUIETA

 

Dona Vina (1939-2021), em algum lugar distante.


Quando põe o pé na estrada, ele obedece a uma força que, surgida do ventre e do âmago do inconsciente, lança-o no caminho, dando-lhe impulso e abrindo-lhe o mundo como um fruto caro, exótico e raro.                                       (Michel Onfray)


Minha mãe tinha espírito nômade. Ou cultivava – amorosamente – alguma espécie de distanciamento do mundo gregário. Essa coisa de fixar raízes era uma ideia estranha à sua vida (que estava sempre em mutação). Nunca pensou duas vezes antes de se deslocar. Quando não era possível fazer a mudança, trocava os móveis de lugar – e fingia que estava morando em outra casa.

Foram tantas as trocas de endereço que não me lembro de todas. Entre as mais importantes destacam-se as do bairro Brusque, onde residiu em pelo menos quatro oportunidades. Três na Carlos Vidal Ramos e outra na Cruz e Souza. Talvez se possa incluir nessa soma uma quinta ocasião, se valer a proximidade geográfica com a parte final da rua Coronel Córdova (quase na Av. Dom Pedro II). Duas vezes no bairro Universitário (antigo Aeroporto Velho): José Berlim e Germano Magaldi. No Coral, duas vezes: XV de Novembro e São José. Quatro vezes no Centro: Manoel Thiago de Castro, Irmã Laurinda, Sebastião Furtado e Lauro Müller. Também morou nos bairros Petrópolis, Popular, Santa Rita, Vila Nova, Copacabana, Caça e Tiro e Morro do Posto.

A média de estadia em algum desses lugares não excedia aos dois, três anos. Algumas vezes ela acordava com bicho-carpinteiro, disposta a fazer arte, e só sossegava depois de percorrer todas as imobiliárias, investigando quais imóveis estavam disponíveis para aluguel. Também telefonava para os amigos e conhecidos com o mesmo propósito. Às vezes, ia visitar os parentes  mas o que queria mesmo era ver se encontrava alguma placa de aluga-se, talvez fosse a possibilidade de morar em outro lugar, de preferência longe de onde estava. Muitas vezes, a transição entre um endereço e outro era imediata. Certa vez, ao visitá-la, encontrei a casa vazia – nem as lâmpadas sobraram para contar o que tinha acontecido. Fez a mudança e não avisou ninguém. Demorei uns dois dias para descobrir o novo paradeiro.

O movimento se opõe ao sedentarismo e afasta a estagnação mental. Creio que era isso que ela queria dizer instintivamente – mas por vias transversas (e travessas). Simultaneamente, não consigo perceber alguma base filosófica nessa peregrinação pelos quatro cantos da cidade. Algum psicólogo de botequim poderia dizer que, ao adotar uma proposta itinerante, ela estava fugindo de alguma coisa, talvez algum medo (físico, social, imaginário), talvez fosse apenas o exercício de negação das obrigações que acompanham o mundo convencional. Não tenho certeza da correção desse tipo de diagnóstico – que me parece artificial e ligado à etologia dos predadores. O que posso dizer é que, se ela tivesse nascido em Estados Unidos, possivelmente gostaria de morar em um trailer, a estrada como horizonte, o vento beijando o seu rosto. 

Quando cansava da cidade, viajava. Demorava seis meses, um ano, em terras distantes. E que ninguém sabia exatamente onde ficavam. Deixava tudo para trás: filhos, gatos, pertences. Às vezes, poucas vezes, mandava um cartão postal, um bilhete sem informações relevantes. Ou telefonava para dizer que tudo estava bem, que não estava com pressa para regressar.

Voltava revigorada – como se tivesse passado uma temporada em um spa ou em turnê turística pelo Mediterrâneo. Sempre interessada em recomeçar – como se o encontro com o novo inventasse um propósito para a vida.