A masculinidade exige esforços
insuspeitáveis. Aos oito anos de idade, Constantino Curtis, protagonista de Cloro (Alexandre Vidal Porto, 2018), ouve o insulto proferido por um colega
de aula. Imediatamente o instinto acionou o alarme: Aquela palavra, “bicha”,
que me definia contra minha vontade, tirava de mim a possibilidade de
inocência. Depois daquela revelação, caberia a mim a responsabilidade de quem
eu iria ser ou me tornar.
Antecipando qualquer situação ambígua, Constantino
resolveu ser homem. E isso significa que namorou, casou, teve dois filhos
(André e Léa), e procurou evitar situações em que a sua sexualidade pudesse ser
colocada em xeque.
Aos cinquenta e um anos de idade, teve um
enfarte. Prisioneiro em alguma espécie de limbo, espaço impreciso entre a vida
e a morte, Constantino relata para o leitor a história de sua vida. Morri, mas
não vi a cara da morte, escreve, tentando explicar a circunstância inusitada.
Nessa confissão póstuma, a angústia de
quem precisou reprimir o desejo está descrita de maneira límpida. Em nenhum
momento, Constantino tenta negar que sempre se sentiu atraído por homens. Ao
mesmo tempo, ciente de que não possuía estrutura psicológica para pagar o preço
social, defende que foi necessário manter as aparências. Essa postura se sustenta
durante muitos anos. Uma tragédia familiar o faz reavaliar procedimentos e
ações: (...) a morte de André acabou me abrindo para o mundo, e isso foi uma
coisa positiva, se é que algo positivo pode advir da perda de um filho. Para
sobreviver a sua morte resolvi mergulhar na minha vida, coisa que nunca tinha
feito antes.
O sentimento escondido durante tanto
tempo se manifesta. Com quase 50 anos de idade, Constantino, ao ver uma cena de ménage à trois em uma série televisiva, fica excitado. Depois, quase como
consequência imediata, se torna assíduo nos sites de pornografia: (...) acabei
pulando de um extremo ao outro. Passei da abstinência à masturbação
compulsiva.
Faltava o contato físico. Em Brasília
conhece Alano. Uma breve conversa, algumas caipirinhas e o quarto do hotel. Sem
traumas, sem arrependimento. Vida que segue.
Uma vez que as barreiras são destruídas,
não há mais como retornar ao ponto de partida. O prazer demanda por repetir a
experiência – o medo e a adrenalina se confundem e estimulam. Algum tempo depois,
encontra um parceiro regular – por quem se apaixona. As viagens “de trabalho”
se tornam mais frequentes.
A situação perfeita desaparece diante das
forças do destino. O amante, por razões profissionais, precisa deixar Brasília.
O castelo de cartas desmorona. Constantino volta ao celibato.
Um dia, em Tóquio, talvez para reavivar
o passado, resolve visitar uma sauna gay. Em meio ao vapor e o cheiro de cloro,
Átropos (uma das Moiras) corta o fio da sua vida. Um cadáver encontrado nas
condições em que foi o meu perde todo direito à privacidade.
Não houve nenhum contato sexual, mas a
presença física em lugar inadequado configura o delito. A partir desse
instante, as peças vão se encaixando no quebra-cabeça. A esposa e o cunhado
começam a lembrar de alguns detalhes. A perplexidade inicial se transforma em
sentimento impreciso. O morto passa a ser visto com outros olhos.
Cloro está dividido em três partes. Na
primeira, composta por 24 capítulos curtos, quatro ou cinco páginas no máximo, Constantino
revela os limites impostos à sua identidade. Na segunda, há o depoimento de
vários personagens importantes na trama. No epílogo, a morte.
A linguagem que Alexandre Vidal Porto utiliza
em Cloro é cristalina. Os acontecimentos são descritos em ordem direta, sem
deixar espaço para mistérios ou alusões. Tudo está no lugar certo, no tempo
adequado, sem pressa, sem complicações.