– Pois lembre-se do ditado: com
mulher e vento, tomar muito tento.
(A Carta Esférica, de Arturo Pérez-Reverte)
Os romances de aventuras estão quase em
extinção – sobraram apenas os romances policiais, que (por razões diferentes) também
perderam suas características iniciais. Parte da explicação para esse fenômeno
está no fato de que os limites humanos e geográficos não mais interessam como
temas literários. Júlio Verne, Karl May e Emílio Salgari, entre outros, se
tornaram nomes perdidos dentro dos dicionários de curiosidades literárias. Um
pouco dessa "terra arrasada" está relacionado com a falta de imaginação que
caracteriza o a-pós-a-moderna-idade (lugar indefinido nas escalas cronológicas e
humanas; e povoado por milhares de quinquilharias eletrônicas). Além disso, o
cinismo e a falta de escrúpulos de alguns setores sociais contemporâneos
(especialmente aqueles que estão ligados à escravidão econômica)
praticamente impedem o ressurgimento do herói ético – aquele indivíduo que, sem contar
com muitos recursos físicos ou tecnológicos, coloca em risco a própria vida para
defender uma causa que (considera, imagina) “superior”.
Os tempos são outros. Escritores e
leitores perderam parte do prazer lúdico. Mesmo quando apostam em algumas fantasias
escapistas (Harry Porter, de J. K. Rowlings, Crônicas de Fogo e de Gelo, de
George R. R. Martin) ou certas distopias adolescentes (Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, e Maze Runner, de James Dashner), há
visível cansaço narrativo. Nessas sagas (que se desdobram em vários volumes e
milhares de páginas),
todos os protagonistas se assemelham com semideuses (a série Percy Jackson, de Rick Riodan, que emula a mitologia grega, evidencia a regra). As ações são intensas, velozes,
destacando que a heroicidade se opõe frontalmente ao “mal” (seja lá o que isso
for). Os diálogos são ágeis e repletos de referencias culturais. A soma de
todas essas características (que estabelecem um padrão narrativo próximo da
pasteurização) visa impedir que o leitor tenha algum tempo para recuperar o fôlego
– e perceber o quanto tudo o que está sendo narrado se afasta do verossímil.
Ao mesmo tempo, toda essa estrutura quer
afirmar duas questões básicas. A primeira é que o que aproxima (ou afasta) os
homens dos deuses é a ambição, a vontade de realizar tarefas extraordinárias. Em
contrapartida, é o fracasso – diante de situações épicas – que determina a
humanidade dos personagens. Provavelmente porque, como representação da vida “real”,
algumas situações não podem ser salvas por um truque de mágica ou pela ajuda que
surge no ultimo momento, um segundo antes da catástrofe – efeito narrativo que
está cristalizado no inconsciente daqueles que foram “educados” pelo cinema
estadunidense.
Um dos poucos escritores “modernos” que
coloca o seu talento narrativo a serviço da literatura de entretenimento é o
espanhol Arturo Pérez-Reverte, autor de romances como O Clube Dumas, O Mestre
de Esgrima, O Quadro Flamengo e a série As Aventuras do Capitão Alatriste, entre
outros. Sem se preocupar com propostas narrativas inovadoras, ele quer apenas contar uma boa
história. Por isso, procura reconstruir ficcionalmente situações incompatíveis
com o a modernidade tecnológica. Enfim, Pérez-Reverte cria enredos inusitados,
repletos de cenas intensas – onde se deslocam personagens anacrônicos
(esgrimistas, marinheiros, bibliófilos, enxadristas, homens e mulheres
apaixonados pelos mistérios da vida).
Um dos romances de Pérez-Reverte, A
Carta Esférica, tem o mar como cenário. Seguindo o caminho trilhado por Joseph
Conrad (Lord Jim, A Linha de Sombra), Herman Melville (Moby Dick), Robert
Louis Stevenson (A Ilha do Tesouro), Jack London (O Lobo do Mar), Daniel
Defoe (Robinson Crusoe) e Homero (A Odisséia), comprova, no ritmo A + B, que sempre [existe]
um barco naufragado, uma ilha, um refúgio, uma aventura, um lugar em alguma
parte do outro lado do mar, na linha difusa que mistura os sonhos com o
horizonte.
Manuel Coy, o protagonista de A Carta Esférica, é um homem passional,
impulsivo, desses que agem por instinto, com essa expressão tímida que o
deixava com cara de criança e suavizava seus traços duros, seu nariz grande
demais e as feições toscas, o queixo quase sempre mal escanhoado. Em qualquer
situação que exija um pouco de paciência, prefere brigar. Ao mesmo tempo, ele
tem consciência de que Tinha a infelicidade, ou a sorte, de ser um desses
homens para quem o único lugar habitável fica a dez milhas da costa mais
próxima. Em terra firme seu corpo aderna, perde a sustentação, naufraga. Parte
desse sentimento se explica pela constatação de que, atualmente, a modernidade
e a tecnologia transformaram os marinheiros em caminhoneiros do oceano e
funcionários sindicalizados. O mundo objetivo mudou, mas Manuel Coy continua a
viver como isso não fosse possível. Ele é um saudosista, queria estar em outra
época, em outra aventura. Nem mesmo as sardas que desenham delírios (sexuais,
emocionais) na pele de Tánger Soto o fazem recuperar o equilíbrio. Um dos seus
maiores pesares ocorre no momento em que esquadrinha as ruas de Madrid e
descobre que a cidade não tem porto. Sem o oceano, a vida não tem propósito –
embora constate que Nem sempre os barcos afundados estão no mar.Uma pequena
surpresa: Manuel Coy gosta de jazz, Miles Davies, John Coltrane, Charlie Parker
– trilha sonora da melhor qualidade.
Tánger Soto é uma tempestade em forma de
mulher – dessas que arrastam tudo e todos para o vórtice da destruição. E na impossibilidade de defini-la de forma adequada, cabe concordar com
Manuel Coy e o narrador, quando dizem que Em tais condições, essa mulher era
um rumo tão bom quanto outro qualquer.
Ao ler sobre a jornada épica que está
narrada em A Carta Esférica, o leitor se pergunta: o que devia sentir o
homem que pela primeira vez saiu à caça de uma baleia, um tesouro ou uma mulher
sem ter lido isso antes em um livro? Há muitas respostas possíveis para essa
pergunta impertinente. Talvez nenhuma delas seja relevante. De qualquer forma,
não é possível abandonar as 529 páginas do livro (na edição brasileira) sem
arriscar um palpite. Cherchez la femme, dizem os francesas, cientes de que
essa é a única explicação possível para todos os desatinos dos homens. Ou, como
diz Néstor Perona, o narrador do romance, a ciência náutica não serve para
nada na hora de navegar em terra firme ou em torno de uma mulher.
Evidentemente, não cabe contar os
detalhes que vão sendo revelados – lentamente – no decorrer do livro. Ao leitor
cabe o exercício aritmético, somar isso e aquilo, e ir compondo, lentamente, o
quadro geral – apesar de saber que as ilusões de ótica são frequentes nesses
casos, o engano é um companheiro próximo. Essa técnica de enredamento vai
prendendo a atenção do leitor como se fosse uma âncora, peso destinado a
impedir que o barco aderne. Mas, para que ninguém reclame de estar navegando em
águas perigosas, a história contada em A Carta Esférica envolve dois barcos
que naufragaram em 1767, um tesouro, bandidos, traições e a inevitável troca de
fluídos corporais entre Manuel Coy e Tánger Soto. Muitos livros se sustentam em
pé com muito menos do que isso.
Enfim, No mar todos os caminhos são
longos. Alguns, inalcançáveis. Mesmo que os indivíduos utilizem de subterfúgios – como Ulisses, que precisou amarrar a si mesmo no mastro do
barco para poder resistir ao canto das sereias –, não há como fugir do pathos (paixão, sofrimento, doença) que acompanha a existência humana.
TRECHO ESCOLHIDO
Coy respirava a brisa deliciado,
farejando a iminência de mar aberto. Desde a primeira vez que pisou no convés
de um barco, o momento da partida sempre lhe dava uma sensação de calma
singular, muito próxima da felicidade. A terra ficava para trás, e tudo aquilo
de que podia precisar viajava com ele a bordo, circunscrito aos limites da
embarcação. No mar, pensava, os homens viajavam com a casa nas costas, como a
mochila de um explorador ou a concha que se desloca com o caramujo. Bastavam
alguns litros de diesel e de óleo lubrificante, velas e vento adequado para que
tudo o que a terra firme contivesse se tornasse supérfluo, prescindível. Vozes,
ruídos, pessoas, cheiros, tirania do ponteiro do relógio deixavam, aqui, de ter
sentido. Locomover-se até deixar a costa bem lá longe, pela popa, já era um
objetivo. Diante da presença ameaçadora e magica do mar onipresente, dores,
anseios, laços sentimentais, ódios e esperanças se diluíam na esteira,
amortecendo até parecerem distantes, sem sentido, porque o mar tornava os seres
humanos egoístas e concentrados em si mesmos. Havia coisas intoleráveis em
terra, pensamentos, ausências, angustias, que só podiam ser suportadas no
convés de um navio. Nunca houve analgésico tão poderoso como esse; e ele tinha
visto sobreviver, a bordo de barcos, homens que em outro lugar teriam perdido
para sempre a razão e a calma. Rumo, vento, ondas, posição, singradura, sobrevivência:
ali só essas palavras tinham algum significado. Pois era certo que a verdadeira
liberdade, a única possível, a verdadeira paz de Deus começava a cinco milhas
do litoral mais próximo. (p. 292-293).