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sábado, abril 07, 2012

CAMILLE (1936)

MARGARIDA GAUTHIER
Um filme de GEORGE CUKOR


Com Greta Garbo, Robert Taylor, Lionel Barrymore, Elizabeth Allan, Henry Daniell, Laura Hope Crews, Rex O'Malley, etc.


EUA / 109 m / P&B / 4X3 (1.37:1)


Estreia nos EUA a 12/12/1936
(Palm Springs, California)
Estreia em PORTUGAL a 19/10/1937
(Lisboa, teatro S. Luiz)



Marguerite: «I always look well when I'm near death»

A mais famosa cortesã criada pela literatura, para a mais lendária vedeta do cinema. Marguerite Gauthier foi amadurecendo no corpo de outras grandes actrizes até se encontrar com aquela para quem parece ter sido criada. Mais do que Mata-Hari, Maria Walewska, a rainha Cristina ou Ninotchka, Garbo é Marguerite. O célebre romance de Alexandre Dumas Filho, que o próprio escritor adaptou ao teatro, tornou-se o arquétipo do melodrama, que a transformaçâo em ópera, com música de Verdi ("La Traviata") cimentou. Foi, inevitavelmente, uma das obras mais adaptadas ao cinema e neste campo proporcionou a algumas actrizes outras memoráveis criações. Mas nenhuma terá tido a dimensão do papel de Garbo. A primeira Marguerite cinematográfica foi nem mais nem menos do que Sarah Bernhardt (tinha a divina já 67 anos, o que era obra para "cortesã"). Foi em 1912 num filme realizado por Henri Pouctal. Seguiu-se outra diva, esta italiana, Francesca Bertini (uma das "trágicas do silêncio"), em 1915, sob a direcção de Custavo Serena. Em 1921 Marguerite toma a pele de Pola Negri na Alemanha no filme de Paul Stein, "Arme Violetta", cabendo o papel nos EUA à lendária Alla Nazimova (sendo Armand Duval, neste filme, interpretado por Rudolfo Valentino). Antes de Garbo, e já sonora, Marguerite tem o corpo, a voz (e a tosse) de Yvonne Printernps no filme de Abel Cance, "La Dame aux Camélias" [1934]. Foi este que tendo-se estreado em 1935 entre nós, recebeu por cá o título de "A Dama das Camélias". O de Cukor, para evitar confusões, receberia o nome da heroína. Mais tarde a personagem seria interpretada por Micheline Presle [1952] na "Dame aux Camélias" de Raymond Bernard, e por Isabelle Huppert em 1980 na versão de Mauro Bolognini.

Em 1936 Ceorge Cukor tinha já o peso suficiente dentro da MGM para poder escolher os filmes, graças aos êxitos de "David Copperfield" e "Romeo and Juliet", para além da sua mais que provada eficácia na direcção em geral, e na dos actores em particular. Devido a esta última característica (em especial no trabalho de direcção de actrizes), o estúdio convidou-o a dirigir o filme seguinte de Greta Garbo, dando-lhe a escolher entre Camille e Maria Walewska. Sentindo-se pouco à vontade com personagens históricas (dizia que lhe "pareciam saídas de um museu de cera"), Cukor escolheu a obra de Dumas Filho (Maria Walewska seria depois feito por Clarence Brown com o título "Conquest"). O produtor era o mesmo de "Romeo and Juliet", Irving Thalberg, mas a morte não lhe permitiu assistir ao novo triunfo, que lhe foi mesmo roubado por Mayer pois o nome de Thalberg foi retirado do genérico. Mas não era só por aquela razão que Cukor queria "Camille". Para o realizador o papel de Marguerite Gauthier parecia ter sido criado para Garbo.

Goste-se ou não do filme, admire-se ou não a mítica actriz, não há dúvida que Cukor tinha razão. O arquétipo da personagem parece ter encontrado a materialização perfeita tanto no corpo como no "estilo" da estrela: aquela forma "distante" e "superior" de olhar, uma certa frieza no aspecto. Há algo de etéreo que as identifica (Garbo e Marguerite), entre a carnalidade que se adivinha e a espiritualidade que emana. Apesar de mundana, da sua "profissão" ser mais que evidente, de a vermos passar de homem para homem, é difícil identificar a imagem desta Marguerite Gauthier com o sexo (a belíssima abertura do filme, que contra as convenções do tempo, mostra logo a estrela, não faz mais do que destacar a ideia de "pureza", com o ramo de camélias que a florista vem entregar-lhe à carruagem). O que ali se destaca também, como sublinhou Barthes é uma "idée platonicienne de la créature", uma imagem mais próxima das sacrificadas donzelas dos melodramas de Griffith (Lilian Gish em "True Heart Susie", etc.) do que das vamps e mulheres fatais de então.



Aliás essa ideia de "sacrifício" é uma das bases do próprio drama, e Cukor jogou com ela para uma das sequências mais dramáticas do filme, e a decisiva: o encontro de Marguerite com o pai de Armand (uma notável criação de Lionel Barrymore). O que começa com um olhar de desprezo termina com uma manifestação de admiração. Entre um e outro momento, o General muda radicalmente a sua opinião sobre o carácter da mulher. O que vê não é uma frágil e indefesa criatura, explorando o seu estatuto sexual, mas alguém que acaba por reconhecer como "igual" (não da mesma classe, mas sim com idêntica ética e código moral, o que leva de imediato a acreditar na sua palavra de se afastar de Armand), apesar das aparências em contrário. De facto, o que está em causa neste drama é o jogo das aparências e, neste caso, Cukor está como peixe na água.

Ninguém como ele sabe "mostrar" num plano a faceta escondida do personagem (que se pense, para lembrar um dos exemplos mais fáceis, em "Sylvia Scarlett" ou Eliza Dolittle como "My Fair Lady"). "Camille" é um filme sobre aparências, sobre o tal "manto diáfano da fantasia," que cobre a "nudez forte da verdade". A verdade, aqui, irrompe de súbito de forma cruel, quando se rasga esse véu, que era a protecção do barão de Varville. O manto das aparências desaba e a imagem real das "amigas" de Marguerite mostra-se na realidade: megeras oportunistas que a roubam como podem. Às duas cenas de triunfo de Marguerite, a festa em sua casa e a conquista de Varville à sua rival, sobrepõem-se as duas cenas da queda: noutra festa, com o gesto de desprezo de Armand que lhe lança o dinheiro aos pés perante todos os presentes, noutro espectáculo teatral de novo com Varville e Armand, e o leque que por duas vezes cai e é o verdadeiro símbolo da sua própria queda.

Cukor construiu o filme inteiramente à volta de Garbo. Raros são os planos de que ela está ausente. Da mesma forma como começa, assim acaba. Rompendo com a convenção de demorar a entrada da vedeta, termina o filme também como o seu último suspiro. Num melodrama tão convencional como este a última imagem é menos enfática do que se esperaria. Quando os olhos se fecham e o rosto descai há uma rápida fusão que nos leva para a legenda do fim. Se "Camille" é Garbo, e com este trabalho se pode dizer que ela era também actriz, o filme de Cukor impôs uma outra estrela: Robert Taylor. Até então personagem mais ou menos apagada, em busca de uma "imagem" para impor, foi com o papel de Armand Duval que se impôs como galã e, nos anos 30, o herdeiro de Valentino nos sonhos de cinéfilas (e muitos cinéfilos), criando uma figura característica que passou a ser imitada pela maioria dos jovens, e que então receberam o nome de "bobbies".
Manuel Cintra Ferreira

Para se preparar para "Camille", Garbo leu tudo o que encontrou sobre Marie Duplessis, amante de Alexandre Dumas e heroína da vida real da sua Marguerite Gauthier. Longe da câmara, longe do set, interpretava sequências em que sentia, aparentemente, dor intensa. Ao passear pela praia, punha as mãos no peito e parecia ficar sem fôlego. Não se sabe se estava realmente doente na época; se não estava, vivia psicologicamente o papel de uma pessoa que sofre de tuberculose. A preparação ajudou-a a fazer talvez a sua melhor interpretação, e que restabeleceu a sua supremacia. A Marguerite de Greta tem sido submetida a tantas críticas microscópicas como o sorriso no rosto da Mona Lisa. Anos depois, escreveu-se o que o realizador George Cukor teria dito na altura: «Ela foi muito delicada, conseguindo com um leve gesto ser enormemente sugestiva. Nas cenas eróticas, Camille nunca toca, mas beija todo o rosto do amante. Muitas vezes é ela a agressora no amor. Muito original.»

Mas o mistério - e domínio - físico de Greta Garbo, ainda notável hoje, não foi criação dos magos de Hollywood. Embora lhe dessem papéis estereotipados, não conseguiram reduzir a sua capacidade de arrebatar homens e mulheres. O seu inescapável magnetismo não pode ser definido, mas pode ser explorado. E qualquer que tenha sido o sofrimento íntimo que a levou a construir o muro em torno de si e a deixar o mundo vê-la como um enigma, se não mesmo como uma curiosidade, ela nunca mais deixou-se explorar de novo.



O relacionamento de Greta com as suas plateias, sempre foi imediato e directo. Algumas actrizes usaram um único atributo para se tornarem memoráveis: um tom de voz dramático, uma capacidade de interpretação sensível, uma presença cativante. Greta na verdade tinha tudo isso; mas a sua grande realização foi saber, instintivamente ou através de treino, representar não com, mas através do seu rosto notável. A sua beleza era inata e viva, de modo que, mesmo em completo repouso, transmitia uma vasta gama de sugestões. Nunca teve de aldrabar no seu relacionamento físico com a plateia. E, conscientemente ou não, o público sabia disso, e correspondia-lhe como a nenhuma outra actriz. Talvez a adoração que essa honestidade provocava tornasse os relacionamentos na sua vida pessoal mais difíceis de atingir, ou depender.



O rosto de Greta Garbo parecia ter vida própria, uma vida que nenhuma maquilhagem conseguia - ou jamais devia querer - alterar. A sua misteriosa alquimia não requeria artifícios, e conseguia provocar profundas reacções apesar da barreira dos argumentos de segunda categoria. Sabia que tinha algo, embora ninguém soubesse dizer exactamente o quê. Às vezes isso assustava-a, porque não sendo criação dela, estava fora do seu controle, e ela sabia que não era a deusa de mármore com quem muitas vezes a comparavam. Mas este, é claro, era o seu maravilhoso segredo: por mais perfeito que fosse o seu rosto, não era de mármore, mas humano e vivo - e por isso acenava com a promessa de nos dizer, a qualquer momento, tudo o que quiséssemos saber sobre Anna Christie, Ninotchka ou Camille.

Aquele rosto - tão bonito - estava aberto para nós, e podíamos ler nele todos os nossos sonhos. Os realizadores mais sagazes tinham consciência disso, e sabiam, como a própria Greta, que a sua maior força estava no close-up, o grande plano. Ver o rosto de Garbo num filme feito aos trinta anos é compreender que ela jamais pode envelhecer como todos nós. A luz que irradia dos seus olhos dizia logo tudo, prometia tudo, eram confiantes como os de uma criança, experientes como os de uma mulher, indulgentes como os de uma mãe. As pestanas incrivelmente longas que inocente mas inescapavelmente sugeriam sedução. A boca, flexível, carnuda, bem desenhada, o lábio superior a faiscar mensagens particulares de decisão e força, o inferior a evocar uma sensualidade oculta. As pálpebras pesadas, a pele translúcida sobre os pômulos salientes, davam a Greta a capacidade misteriosa de criar estados de espírito e de tensão ao menor tremular.

Ela e os seus melhores realizadores sabiam que em close-ups ela não precisava de mover a cabeça para conseguir uma reacção desejada (lembrem-se do close-up final de "A Rainha Cristina"). Não, eles sabiam que não. Sabiam que não era sequer uma questão de "conseguir", mas de revelar, e por isso não obstruíam, com qualquer movimento ou emoção falsos, a verdade que a plateia veria ao olhar para aquele rosto. Esse era o seu impacto e o seu dom - levar os outros ao ponto de verdadeira identificação com a mulher que viam na tela, enquanto o seu inconsciente respondia em consonância com o dela. Como isso se dava, claro, é o que é o verdadeiro mistério de Greta Garbo e da arte.
(in "The Divine Garbo", de Frederick Sands e Sven Broman, 1979)


CURIOSIDADES:

- A peça original estreou-se em Paris a 2 de Fevereiro de 1852. Alexandre Dumas Filho baseou a personagem de Marguerite numa mulher com quem tinha tido um caso durante 11 meses, e que morreu com apenas 23 anos

- O filme inspirou Milton Benjamin a escrever uma canção em 1936 chamada "I'll Love Like Robert Taylor, Be My Greta Garbo"

- "Camille" era, dos seus filmes, aquele que Garbo preferia

- Greta Garbo foi nomeada para o Óscar de Melhor Actriz Principal. A vencedora nesse ano foi Luise Rainer pelo filme "The Good Earth", mas a Associação dos Críticos de Nova Iorque deu-lhe o prémio de melhor actriz de 1936.